WILD IS THE WIND – DO AMANHECER AO ANOITECER COM VIRGINIA WOOLF E NINA SIMONE

Larissa Ceres Lagos[1]

Resumo: Esse ensaio tem a proposta de refletir sobre a percepção de três grandes artistas a respeito da modernidade e automatismo da sociedade, bem como seu papel como mulheres. São elas: a escritora inglesa Virginia Woolf, a cantora e pianista Nina Simone e a pintora Frida Kahlo. Woolf tem sua própria maneira de conduzir as narrativas, com sensibilidade e precisão que também são notáveis em seus ensaios. Nina Simone teve uma vida conturbada, cujo ápice foi sua apresentação no Festival de Jazz de Montreal de 1976. As visões se afinam em direção à obra de Frida Kahlo, em sua última pintura Viva la Vida de 1954. Passando pelo pensamento de Simone de Beauvoir, as três artistas marcam sua presença no século XX não só pelos diferentes meios artísticos em que atuam, como pela força representativa da mulher perante a sociedade.
Palavras-chave: Ensaísmo; Modernidade; Artes

Abstract: This essay proposes to reflect on the perception of three great artists about modernity and the automatism of society, as well as their role as women. They are: Virginia Woolf, Nina Simone and Frida Kahlo. Woolf has her own way to conduct the narratives, with sensibility and precision that are also notable in her essays. Nina Simone had a troubled life, and the climax was in the presentation of Montreux Jazz Festival in 1976. The vision attune to the work of Frida Kahlo, in her last painting Viva la Vida of 1954. Passing through the thought of Simone de Beauvoir, the three artist make their mark in the 20th century not only throughout their different artistic approaches, but also the representability strength of women towards the society.
Keywords: Essay; Modernity; Arts 



Observando pela janela do ônibus (porque poucas coisas têm tanto poder de induzir à reflexão sentimental que as boas e velhas janelas de um ônibus) o amanhecer e o entardecer, à minha mente ocupam imagens de duas mulheres bem distintas: Virginia Woolf, a escritora inglesa e Nina Simone, a cantora de jazz, soul e blues norte-americana.
Os contos e os romances de Virginia Woolf funcionam como as encruzilhadas do pensamento, onde em cada esquina em que se esbarra com um personagem diferente, escutamos suas vozes de diferentes frequências ecoando desde o leve desinteresse à tentativa de resposta às perguntas mais antigas da filosofia, como neste trecho

Sim, sou poeta. Só posso ser um grande poeta. Barcos cheios de jovens e árvores distantes, a fonte das árvores pendentes. Tudo isto vejo. Tudo isto sinto. Sinto-me inspirado. Os olhos enchem-se-me de lágrimas. Todavia, e apesar de me sentir assim, tento refrear o mais possível o frenesi que sinto. Este espuma. Torna-se artificial, pouco sincero. Palavras, palavras e palavras, observem o modo como galopam, como abanam as longas caudas e crinas, mas, e por qualquer falha minha, não me posso dar ao luxo de as montar; não posso voar junto com elas. Existe em mim um qualquer defeito, uma qualquer hesitação fatal, que, se não lhe prestar atenção, se transforma em espuma e falsidade. Contudo, mal consigo acreditar que não possa vir a ser um grande poeta.[2] (WOOLF,1980, p.30)

A vida e a obra de Virgínia Woolf já inspiraram livros, dissertações e adaptações cinematográficas de grande beleza, por isso não será necessário fazer um retrospecto de sua bibliografia, características principais, movimento artístico ou o quanto de sua obra é influenciada pelo tempo e pelo lugar em que morava.
Antes de tentar explicar (ou pior, forçar uma interpretação) de seus contos e romances, talvez seja mais interessante simplesmente respirar o frescor e sentir o peso de suas palavras.
Talvez não tenha sido Virginia que escolheu sua “profissão” (ainda que ela consiga fazer parecer tão monótona e simples em Profissões para mulheres). Talvez tenha sido somente pela sorte que as Moiras conseguiram tecer um fio tão fino e tornou não só uma grande romancista, contista, mas também ensaísta.
Seus ensaios são ritmados no compasso de uma conversa e apesar de variarem seus assuntos, constituem um mesmo princípio, o qual descreve em The Modern Essay: “The principle which controls it is simply that it should give pleasure; the desire which impels us when we take it from the shelf is simply to receive pleasure [...]. It should lay us under a spell with its first word, and we should only wake refreshed, with its last.”[3] (WOOLF, 1925, p.04)
Em seu ensaio Walter Sickert: uma conversa, partimos do relato de uma conversa em um jantar entre amigos onde, de repente, uma dessas inesperadas dúvidas correm toda a sala e acabam sendo a nascente de uma corrente que – depois de muito bem regada por afluentes – desemboca em um oceano de questionamentos e sem abusar de nenhuma conclusão, e com algum talento, pequenas gotas de beleza se cristalizam transformando-se em reflexões sobre a modernidade:
           
Aos olhos de um motorista, vermelho não é uma cor; mas simplesmente um sinal de perigo. Muito em breve, perderemos a noção das cores, outro completou, exagerando, é claro. Agora elas são tão usadas como sinais que logo irão meramente sugerir ações – isso é o pior de se viver em uma sociedade altamente organizada. Outras mudanças impostas aos nossos sentidos pelas condições modernas foram então citadas; como estátuas e mosaicos removidos de suas antigas estações e confinados no interior de igrejas e casas particulares perderam as qualidades que lhes eram próprias ao ar livre. (WOOLF, 2009, p.197)[4]

Ao ler esse trecho, penso na obra Viva la Vida, a última que Frida Kahlo pintou antes de morrer. Nela, sob um céu divido entre uma tonalidade mais clara e outra mais escura de azul, vê-se sete suculentas melancias. Dessas sete, quatro estão cortadas e mostrando (com maior ou menor intensidade) seu interior. Em uma delas, quase na base do quadro, está escrito o nome da pintora, data, local de execução da tela e seu nome, Viva la Vida. Não será feita uma análise do quadro tentando descobrir algo que ainda não foi dito ou conduzindo a uma ideia, pois acredito que tentar explicar uma obra de arte é diminuí-la. Expressar com cores e texturas o que não podem dizer é o que distingue esses artistas, mas o vermelho vivo da tela de Frida, aos olhos da sociedade, foi substituído pelo vermelho das placas e dos sinais de trânsito. É o vermelho que significa pare ou perigo. É o vermelho usado nas propagandas publicitárias de redes de fast-food ou embalagens alimentícias. O azul e branco deixaram de pertencer a esse céu e agora são as cores usadas por empresas de tecnologia em suas logomarcas.
Os olhos das pessoas se acomodaram com a recolocação das cores, sons e formas, de maneira que não é mais aceitável perceber a arte, a não ser que ela esteja colocada em um ambiente separado da “poluição” externa, confundindo-se muitas vezes não como arte, mas puro entretenimento transitório cuja existência só se justifica para o amortecimento cognitivo momentâneo.
Poderíamos, inclusive, fazer uma releitura irônica e moderna da tela de Frida Kahlo, substituindo as melancias (frutas grandes, suculentas, desajeitadas e de difícil transporte) por várias Apples. Uma homenagem à comunidade consumista que se perdeu no meio do caminho entre a catarse e a alienação.
Toda essa reflexão sobre as vias sanguíneas da modernidade não coagularam, assim como obviamente não se restringem ao seleto grupo Bloomsbury. Pois quando em 1976 em um festival de jazz em Montreux, Nina Simone (visivelmente alterada) interrompe a canção Be My Husband e diz:

Yesterday I went to see Janis Joplin's film here, and I started to write a song about it, but I decided you weren't worthy. Because I figured most of you were here for the festival, and you just really... Anyway, the point is, it pained me to see just how hard she fell. Because she got hooked into a thing, and it wasn't on drugs. And she played to corpses. You know what I mean?[5]

Eunice Kathleen Waymon era o verdadeiro nome de Nina. Negra, humilde e de uma família religiosa (sua mãe era ministra da igreja metodista), começou a tocar piano aos três anos de idade e teve uma educação musical composta por clássicos como Bach, Beethoven, Chopin, Schubert e Brahms. Teve ajuda de toda a comunidade para levantar o dinheiro necessário para estudar na Julliard (renomado instituto de artes) em Nova Iorque antes de tentar admissão no prestigiado Curtis Institute of Music na Filadélfia. No entanto teve sua admissão negada inexplicavelmente depois de um bom teste de admissão – que para ela era facilmente explicável por uma palavra: racismo.
Inicialmente sobrevivendo como professora de música, logo começou a tocar e cantar nas noites dos bares de Nova Jérsei e tornou-se conhecida no meio, o que sua mãe condenava veementemente dizendo que a filha trabalhava nos fogos do inferno.
Nesse momento nasce Nina Simone. Nina é tirado do espanhol (niña) significando “pequena” e Simone em homenagem à atriz Simone Signoret. Sua carreira foi errante, de gravadora em gravadora, altos e baixos na indústria fonográfica, violência doméstica e ativismo civil.
Assistir às interpretações de Nina – ainda a qualidade desses vídeos seja, na melhor hipótese, razoável – nos complementa a perspectiva a seu respeito. Entendemos que Nina Simone deixa de ser uma pessoa para se tornar em si mesma uma obra de arte. Raiva, solidão, incompreensão, doçura e tristeza permeiam suas expressões e a intensidade das suas palavras. Ainda que afirme que o que à leva a cantar seja a inteligência, em suas apresentações transbordam emoções.
A apresentação no festival de jazz de Montreux em 1976, citada acima, foi uma de suas mais polêmicas aparições. Rotulada por críticos como uma “grande queda” ou “absolutamente louca” – o tipo de atitude que tornou os shows do The Doors tão imprevisíveis nos anos próximos ao hiato da banda, que ver Jim Morrison agindo insanamente nos palcos era a principal atração. No entanto Nina, admitindo que esteja “half-high”, não se vê ou ouve uma mulher balbuciando irrelevâncias, ou declamando inarticuladamente poesias. O que vemos é uma mulher cansada e indignada se expor de uma maneira tão comovente que somente uma audiência destreinada e alienada não consegue entender.
Quase no fim da apresentação, ao emendar Stars e Feelings, Nina aparece visivelmente sensível. Ao começar a segunda canção, ela para de tocar e parece se dirigir não à plateia, mas a ela mesma dizendo: “Goddamn, I mean, you know... What a shame you have to write a song like that.(...) I’m not making fun of the man. I do not believe the conditions that produced a situation that demanded a song like that!  Oh, come on… clap! Dammit…  Have fun, will you?”[6]
Nesse ponto, essas duas mulheres – separadas por mais de trinta anos de revolução e história – convergem sobre o ponto no qual a sociedade se curva da linha distinta entre entretenimento e arte. Entretanto não é a única situação em que essas duas personalidades concentram suas ideias.
A condição feminina e a perspectiva de ser o “outro”, tanto para Nina quanto para Virginia, direciona inevitavelmente o olhar para a situação social que apresentam. Sobre a questão feminista, Virginia Woolf afirma que

quando um tema é altamente controvertido — e assim é qualquer questão sobre o sexo —, não se pode pretender dizer a verdade. Pode-se apenas mostrar como se chegou a qualquer opinião que de fato se tenha. Pode-se apenas dar à plateia a oportunidade de tirar as próprias conclusões, enquanto observa as limitações, os preconceitos e as idiossincrasias do orador. (WOOLF, 1990, p.08)[7]

            O talento incomparável de Nina, sua condição e a cor da sua pele transformaram o que poderia ser considerado incômodo ou irritável em armadura. Entre canções de protesto, destaco Backlash Blues – a qual compôs para a letra do poeta Langston Hughes – a emocionada Why – escrita por ela mesma em homenagem a Martin Luther King em ocasião do seu assassinato – Strange Fruit – originalmente advinda de um poema de Abel Meeropol que se tornou popular depois de interpretada por Billie Holiday, (além de muitas outras como Mississippi Goddam).
Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo escreve que

(...) há profundas analogias entre a situação das mulheres e a dos negros: umas e outros emancipam-se hoje de um mesmo paternalismo e a casta anteriormente dominadora quer mantê-los "em seu lugar", isto é, no lugar que escolheu para eles; em ambos os casos, ela se expande em elogios mais ou menos sinceros às virtudes do "bom negro", de alma inconsciente, infantil e alegre, do negro resignado, da mulher "realmente mulher", isto é, frívola, pueril, irresponsável, submetida ao homem. Em ambos os casos, tira seus argumentos do estado de fato que ela criou. Conhece-se o dito de Bernard Shaw: "O americano branco relega o negro ao nível do engraxate; e concluí daí que só pode servir para engraxar sapatos". (BEAUVOIR, 1970, p.17-18)[8]

Que dizer então de Four Women? Composta e escrita por Nina, essa música é o epíteto da fusão entre o racismo e androcentrismo, e se pudesse escolher uma interpretação, talvez a mais emocionante tenha sido no Festival Cultural do Harlem em Nova Iorque no ano de 1969 (também chamado de “Black Woodstock”) em que começa executando a canção com concentração, mas a cada passo que narra uma das “four women”, é visível a sua alteração e paixão até quase gritar a última palavra. Essas quatro mulheres que pode ser vistas como

(...) an instantly accessible analysis of the damning legacy of slavery, that made iconographic the real women we knew and would become. For African American women it became an anthem affirming our existence, our sanity, and our struggle to survive a culture which regards us as anti-feminine. It acknowledged the loss of childhoods among African American women, our invisibility, exploitation, defiance, and even subtly reminded that in slavery and patriarchy, your name is what they call you. (DAVIES, 2003)[9]

Ambas, Nina Simone e Virginia Woolf impõem-se, do seu jeito, frente à uma sociedade da qual fazem contraste com o outro, o dominante. Não é mais uma questão de defender, mas liderar. Assumir um compromisso – ainda que de maneira distinta em épocas distintas. Por mais que não sejam as primeiras, que Virginia (como ela mesma coloca em Um Teto Todo Seu) siga um caminho que já foi traçado por Jane Austen, Fanny Burney, George Elliot; e Nina tenha, por exemplo, Billie Holiday e Bessie Smith como musas, isso não apaga ou diminui as suas obras. Engrandece o sentimento de que o que é importante não se perde no tempo. Por isso é que acho possível encaixa-las em um dia.
Ao tentar relacioná-las, penso da seguinte forma: Virginia Woolf é como uma manhã de primavera. Pálida, doce, sutil e ainda assim incisiva. Depois da gelada madrugada sem estrelas, a atormentada e infinita sensação de acordar e estar a salvo dos demônios que se proliferam no escuro. Virginia é o brilho melancólico do despontar do dia. O suspiro do vento pelos campos, o orvalho derretendo lentamente. O gole da certeza da vida.
Nina Simone é a explosão de cores do entardecer. Sua voz é a vibração que encharca as nuvens de diferentes tons de vermelho, fúcsia e alaranjado porque é como se sua voz sangrasse toda a dor que tentou nos fazer enxergar.
Se pudéssemos separar o dia como, deixaríamos alguns dos momentos mais marcantes representados por elementos femininos das artes. O amanhecer e o crepúsculo são femininos porque não poderiam ser de outra maneira, talvez por ser o momento de ascensão do prisma e pelas presenças caleidoscópicas das cores e pela erupção do vermelho. Mas não os vermelhos passáveis de hoje, os vermelhos das melancias e de Frida Kahlo.

REFERÊNCIAS
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. Tradução: Sérgio Millet. Difusão Europeia do Livro: São Paulo, 1970.
DAVIES, Thulani. Nina Simone, 1933-2003. Nov 2003, disponível em:
<http://www.villagevoice.com/music/nina-simone-1933-2003-6410700>
Acesso: 08 de dezembro de 2015.
WOOLF, Virginia. Walter Sickert: uma conversa. In: Serrote. São Paulo, volume 03, p.196-207, nov. 2009.
______. As Ondas. Tradução: Lya Luft. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1980.
______. Um teto todo seu. Tradução: Vera Ribeiro. Círculo do Livro: São Paulo, 1990.
______. The Modern Essay. In: The Common Reader. Hogarth Press: 1925. Disponível em:
<http://www.letras.ufrj.br/veralima/modernismo_ingles/textos/THE%20MODERN%20ESSAY_VW.pdf>
Acesso: 08 de dezembro de 2015.







[1] Mestranda do Programa de Estudos da Tradução (PGET), UFSC. Email: lariceres@gmail.com
[2] Tradução de Lya Luft.
[3] O princípio que o controla [o ensaio] é simplesmente que ele deveria dar prazer; o desejo que nos impele quando o tiramos da prateleira é simplesmente o de receber prazer (...). Deveria lançar sobre nós um feitiço na sua primeira palavra, e nós deveríamos somente acordar, revigorados, com a última. (Tradução minha)
[4] Tradução de Mariana Lanari.
[5] Os vídeos referentes ao Festival de Montreal de 1976 estão disponíveis no youtube.
Ontem eu fui ver o filme da Janis Joplin aqui, e eu comecei a escrever uma canção sobre, mas eu decidi que não eram dignos. Porque eu imaginei que estava aqui pelo festival, e vocês realmente... Enfim, o ponto é que, me doeu ver o quão duro ela caiu. Porque ela “era ligada” em uma coisa, mas não era em drogas. E ela tocou para cadáveres. Vocês entendem o que eu digo?
[6] Que droga, quero dizer, vocês sabem... que vergonha você ter que escrever uma canção assim (...) Eu não estou caçoando o homem [compositor]. Eu não acredito nas condições que produziram uma situação que exigiram uma canção assim! Oh, vamos lá... Aplaudam! Puxa vida... Se divirtam, não é?”
[7] Tradução de Vera Ribeiro.
[8] Tradução de Sérgio Millet.
[9] “Uma instantânea e acessível análise da maldição do legado da escravidão, que tornou iconográficas as mulheres que saberíamos e nos tornaríamos. Para mulheres afro-americanas se tornou um hino afirmando a nossa existência, nossa sanidade e nossa luta para a sobrevivência de uma cultura que nos considera antifeministas. Reconhece a perda de infância entre mulheres afro-americanas, nossa invisibilidade, exploração, desafio, e até mesmo sutilmente  lembra que em escravidão e patriarcalismo, o seu nome é o que eles lhe chamam.” Por Thulani Davis, em <http://www.villagevoice.com/2003-04-29/music/nina-simone-1933-2003/>