Mônica
Lopes
Mestra
em Literatura
Instituto
de Letras - UFBA
RESUMO: Viver e escrever: a ficcionalização da existência - considerações
sobre a escritura clariciana busca dispor em evidência uma Clarice que se
constrói e se desconstrói ao longo da própria existência. Vêm à cena vida e
obra amalgamadas sem, contudo, implicar investigação biográfica. Clarice
Lispector transita por todos os textos que produz, assim como transita pela
vida, aos moldes de flâneur a
percorrer o universo interior de si e, em simultâneo, dos indivíduos.
Palavras – chave: literatura, vida, ficcionalização
RESUMEN: vivir y escribir: una ficcionalización de la existencia -
consideraciones sobre la escritura
clariciana busca poner de relieve a una
Clarice que se construye y se reconstruye
a lo largo de la propia existencia. Se manifiestan la vida y la obra amalgamadas,
pero, sin implicar la investigación biográfica. Clarice Lispector transita por
todos los textos que produce, así como transita por la vida, como un flâneur,
recorriendo el universo dentro de si mismo y, a la vez, de los individuos.
Palabras - clave: la literatura, la vida, la ficcionalización
Versar sobre Clarice Lispector
(1920-1977) é tarefa que exige responsabilidade. Isto porque a escritora possui
uma das mais vastas fortunas críticas na Literatura Brasileira. O montante da
obra foi largamente discutido dentro do universo literário, linguístico, psicanalítico,
filosófico, religioso, biográfico etc. Nesse sentido, o que se tem é uma
escrita caleidoscópica, por intermédio da qual se sobrepõem paixões, desejos,
projeções e identificações que se manifestam sutilmente na vida cotidiana. Na
retórica clariciana, há uma quebra no fluxo narrativo referencial; a escritora
não se atém a fatos e/ou acontecimentos; é uma narrativa que sugere se afastar
do desenvolvimento de ação, procedimento a que um texto narrativo usualmente se
propõe. No dizer de Bosi (1994), a autora dispõe a linguagem marcada pelo “uso
intensivo da metáfora insólita, pelo fluxo de consciência e pela ruptura com o
enredo factual” (BOSI, 1994, p. 424); Clarice Lispector capta e registra
sensações, privilegiando a vivência interior da personagem que passa a ser o
cerne da própria escritura. Daí o leitor se deparar com exercício retórico de
linguagem não convencional, sugestivo e enviesado que – para além de mera
recepção racionalizada – carece de apreensão pelo concurso dos sentidos. De
modo geral, o mundo retratado é o “das entrelinhas, dos sussurros, da
introspecção, das epifanias em meio ao cotidiano, das questões metafísicas,
além e aquém da realidade prosaica” [1].
O fazer literário em estudo sugere-se
ligar à própria concepção de mundo que rege a natureza do indivíduo, nele
atuando em estado de experiência vital. Assim, vida e obra amalgamam-se sem
necessariamente limitar-se à construção de discurso autobiográfico. Rossoni
(2002) afirma que Clarice “revisita e se busca no próprio ato do fazer [...] a
obra lhe é o meio; a vida original, a meta à qual se lança em busca de si
mesma” (ROSSONI, 2002, p. 20). No dizer de Yudith Rosenbaum, tanto a pessoa Clarice, como a escritora Clarice são movidas pelo
mesmo desejo: “ambas querem ‘a coisa’
irrevelada. O mistério, portanto, está no objeto da busca e não na autora e seu
cotidiano” [2].
Segundo Nolasco (2001), Clarice Lispector
fez da própria vida matéria para a ficção; e da escrita o processo de busca de
identidade. Enquanto autor-escritor,
vela-se, desvela-se continuamente na própria escritura.
Numa obra como a de Clarice, em que cada escritura
[texto] é a tentativa apaixonada de chegar ao seu esvaziamento, ao seu fracasso
ao eu sem “máscara”, torna-se quase impossível situar esse autor que se multiplica
para dentro, ressurgindo a cada nova escritura como “um eu enviesado” (NOLASCO, 2001, p.24).
A espécie de “jogo de cena” que a autora
imprime ao texto literário dissimula o lugar do sujeito-escritor o que confere à obra a impossibilidade de totalizar-se;
vez que a incompletude, marca de sua literatura, pontua-se na própria
linguagem, na investida de nominar o inominável; de dizer o não–dito: o
inacabado do ser que incessantemente se busca – “Eu estou sempre incompleta”
(BORELLI, 1981, p. 25).
Clarice Lispector institui uma transição
gradual ao ato da escrita que provém sair da condição de característica
inerente à autoria: “Escrevo simplesmente como quem vive. Por isso todas as
vezes que fui tentada a deixar de escrever, não consegui. Não tenho vocação
para suicídio” (BORELLI, 1981, p.24). Deste modo, avança pelo construto de
negação da obrigatoriedade em detrimento do desejo de exercê-lo ou não: “eu não
sou profissional, eu escrevo quando quero” para − categoricamente − declarar
literatura como íntimo sopro de vida: “Quando não escrevo, estou morta”. Na adolescência, aquela que seria uma
das maiores escritoras do Brasil encontra, no âmbito literário, o lugar no qual
escolheu para viver: “O mundo onde eu gostaria de morar” (GOTLIB, 2009, p.171):
o mundo dos livros. Clarice Lispector, portanto, sugere viver o/no discurso
literário; reconhece que a vida é sempre representada, mas não dissocia a
inquietação subjetiva da realidade objetiva. Jacob David Azulay, amigo e
psicanalista da escritora, assinala que Clarice aventurava-se com a própria
escrita: “Citava trechos e ia construindo seus livros durante as sessões”
(BORELLI, 191, p.18). Ao escrever, inscreve-se no texto e visita o desconhecido
da própria existência, pontuando em intermitente procura o que ainda não foi
possível revelar e/ou o que é.
CONTRADIÇÃO
E MISTÉRIO: “NASCI DE UM CHOQUE ENTRE NÃO E SIM”
Mistério parece ser a palavra recorrente
utilizada por críticos, leitores e até mesmo amigos para designar Clarice Lispector;
como endossa Carlos Drummond de Andrade, no poema Visão de Clarice:
Clarice veio de um mistério, partiu para outro.
Ficamos sem saber a essência do
mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.
Era Clarice bulindo no fundo mais
fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem
(DRUMMOND, 1997, p. 4-5).
Assim, em torno do slogan Clarice Lispector, edificou-se
uma teia de acepções que culmina por situá-la em patamar praticamente isolado
dentro do cenário das letras nacionais. Desde os dados referentes ao respectivo
nascimento – “Nasci na Ucrânia. Quando?... não, não quero dizer” (GOTLIB, 2009,
p. 39) − até a natureza, reservada e silenciosa, avessa a entrevistas: “[...]
não gosto de dar entrevistas. Em geral me fazem muitas perguntas. E eu não sei
me explicar [...]” (LISPECTOR, 2005 p.135), tudo parece ser envolvido por uma
áurea de nublamento que sugere recobrir e ampliar o tom de mistério que ocorre
tanto na obra quanto na existência de tal personalidade.
Em Clarice uma vida que se conta (2009), Nádia Gotlib observa ao
conhecimento do leitor as incertezas que circundam a data de nascimento de
Clarice Lispector e a idade com a qual teria chegado ao Brasil. A certidão de
nascimento, documento original escrito em russo, disponibilizado pela família
em 2007, atesta: 10 de dezembro de 1920, (nascimento); 14 de novembro de 1921
(data de emissão); Tchethélnik, na região de Vínnitsia, na Ucrânia-Rússia, o
lugar de origem. Gotlib chama a atenção para um reforço ,à tinta no número zero
da data; insinuando uma possível adulteração do documento. O fato é que Clarice
apresentou, ao longo da trajetória, o desejo de esconder a veracidade dos dados
pessoais e de reescrever a própria história, apropriando-se de datas distintas
para o ano de nascimento.
Nas duas últimas décadas de vida,
Clarice adota diferentes datas de nascimento. Embora alguns documentos seus continuem fiéis ao ano de
1920 e embora a crítica adote, durante longo tempo, o de 1925, Clarice
registra as de 1921, 1926, 1927... (GOTLIB,
2009, p. 36-7).
Em uma das raríssimas
entrevistas da autora, concedida ao Museu da Imagem e do Som (1976), no Rio de
Janeiro, Afonso Romano de Sant’Anna, amigo da escritora e um dos
interlocutores, refere-se a Clarice como uma adolescente em 1944, quando a
escritora se lança no mundo literário: “Em Perto do coração selvagem você já
era Clarice Lispector e ainda era uma menininha de dezessete dezoito anos”
(SANT’ANNA apud MONTERO; MANZO, 2005, p.144). Clarice, por sua vez, não se opõe
à colocação de Sant’Anna o que denuncia a intenção de não ratificar a
verdadeira idade.
Benjamin Moser (2009) relata que
Clarice teria aproximadamente um ano e meio de vida, ao desembarcar no Brasil,
em 1922. De acordo com o biógrafo, a insistência da autora em rebaixar a idade
transpõe a vaidade. É antes uma negação da vida que antecede a do Brasil, onde
se registra a migração da família Lispector, da Europa para a América do Sul,
fugindo da perseguição antissemita da Revolução Russa (1917) e da Primeira
Grande Guerra Mundial (1914-1918). Clarice nasce durante o translado e das
poucas vezes que se refere ao lugar de origem, fala superficialmente: “A minha
terra não me marcou em nada, a não ser pela herança sanguínea. Eu nunca pisei
na Rússia” (MOSER, 2009, p. 24). Despistar sobre o ano de nascimento insinua
tentativa de desviar-se da designação de russa, ucraniana e, portanto, de
estrangeira. É o meio de esquecer um passado sombrio do qual efetivamente não
lembra, mas que passa a conhecer através do sofrimento da mãe doente, do
depoimento das irmãs mais velhas, da luta do pai para sobreviver e,
principalmente, da condição sob a qual foi concebida. A mãe de Clarice,
vitimada pela sífilis, viu, na gestação de um filho, a possibilidade de cura;
Clarice viria ao mundo para salvar a vida da mãe, fato que não ocorreu. Em
crônica de 15 de junho de 1968, a escritora relata:
[...] fui preparada para ser dada à
luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição
bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma
doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei
minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão
determinada e eu falhei [...] sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em
vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu não me perdôo. Quereria que
simplesmente se tivesse feito um milagre; eu nascer e curar a minha mãe. Eu nem
podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como
desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido
[...] (LISPECTOR, 1999a, p.111).
A circunstância da orfandade
ressurge na obra, denunciando o sentimento de ausência que jamais conseguiu
reverter. A sensação de “não pertencer” é marca presente na literatura
clariciana. Personagens como Joana (Perto
do coração selvagem) e Macabéa (A
hora da estrela), órfãs de pai e mãe, fechadas em si mesmas, vivenciam o
esvaziamento das relações familiares, em silenciosa existência. Joana -
criança, apesar de ter todos os sentidos aflorados, carrega para dentro de si a
vida, experimentando, ao mesmo tempo, sentimentos opostos: “alegria quase
horrível, alegria quase de chorar, aperto e afrouxamento do corpo [...]”
(LISPECTOR, 1998, p. 38-9). Macabéa traz consigo culpa e erro, herança da
educação impositiva de uma tia que lhe impunha o silêncio através de agressões
físicas: “A menina não perguntava por que era sempre castigada, mas nem tudo se
precisa saber e não saber fazia parte importante de sua vida [...]” (LISPECTOR,
1998, p. 28-9). O silêncio de Joana sugere-se fundador, dele sai forte para
enfrentar as hostilidades da existência; Macabéa, parca de palavras, transita
anônima pela vida.
Outro acontecimento que
interfere de maneira decisiva para a sustentação da aura de mistério e uma
possível crise de identidade reveladora, vivenciada pela autora, é a destituição
do nome de origem: de Haia/Chaya[3]
Lispektor passa a se chamar Clarice Lispector. Apesar da tentativa do pai
de Clarice de se familiarizar com a realidade brasileira, associando os nomes
russos a denominações comuns no Brasil, a atmosfera estrangeira insiste em
rondar a vida da escritora. Clarice foi recebida pela crítica especializada
como escritora de “nome estranho e até desagradável” (MOSER, 2009, p. 22),
evidenciando o estrangeirismo do nome. Moser revela ainda que “Clarice
Lispector já fora considerado pseudônimo, sendo o nome original apenas
mencionado depois da sua morte” (MOSER,
2009, p.14). Após o casamento com Maury Gurgel Valente, em janeiro de 1943, a
escritora desdobra-se em várias assinaturas: “Clarice Lispector Gurgel Valente,
Clarice Gurgel Valente, Clarice G. Valente, Clarice Lispector” (GOTLIB, 2009,
p.38) assumindo, enfim, Clarice
Lispector, marca literária, que estampou nos livros. Clarice, ao tornar-se
escritora, traz consigo uma série de especulações: a origem do nome Lispector,
um “sotaque estrangeiro” (na verdade um defeito de dicção) que a filia a
diversas línguas e nacionalidades; e, principalmente, o modo de ser e escrever:
enigmático, angustiado, dramático. A escritora, em movimento de
invenção/renovação, tece e busca a própria existência no mundo, envolvendo-se
em uma “capa de encobrimento” que, ao mesmo tempo em que a resguarda do
desnudamento, a dispõe em evidência pela faceta instigante do mistério.
A amiga e biógrafa Olga Borelli
conviveu com Clarice os sete últimos anos de vida. Presenciou de perto os
enfrentamentos; os entusiasmos e os silêncios; testemunhou-lhe as crises de
criação, bem como a escrita compulsiva. E ainda assim as impressões sobre a
escritora desemborcam em contradições. No livro, Clarice Lispector: um esboço para um possível retrato (Borelli,
1981) deixa entrever a dificuldade de delinear-lhe a personalidade. Quem era
Clarice Lispector? Borelli, ao mesmo
tempo em que revela ser Clarice “uma dona de casa que escrevia romances e
contos”[4]
confessa que os afazeres domésticos a
entediavam: “[...] fatigava-se e impacientava-se por ter que exercê-los. Mas
nunca se negou a enfrentá-los[5]
[...]” Segundo Borelli, Clarice tinha consciência do afastamento social, da
necessidade de isolamento que poderia acontecer a qualquer hora, em qualquer
lugar e em qualquer circunstância. Desse modo, precisava ser confluente com os
outros; cumprir os rituais preestabelecidos. “[...] Dizia não ter estilo de
vida, um modo de ser social como os outros[6]
[...]”. A própria Clarice ora confirmava a própria obscuridade: “Sou tão
misteriosa que não me entendo; ora se contrapunha: Meu mistério é não ter
mistério” (LISPECTOR, 1999a, p.116).
Ainda na infância, aos sete
anos, quando se propunha a escrever contos para serem publicados na coluna infantil
do Diário Pernambucano, os textos
jamais foram aceitos. Isto se deu por causa da maneira atípica de escrever
histórias que fugiam do padrão de “era uma vez”. “[...] Eu cansava de mandar meus contos, mas nunca publicavam, e
eu sabia por quê. Porque os outros diziam assim: ‘Era uma vez, e isso e
aquilo... ’. E os meus eram sensações” (LISPECTOR,
2005, p. 139). Não foi diferente com o livro de estreia que circulou por entre
críticos e editores da época, a exemplo de Álvaro Lins que, por fim, considerou
o escrito como não inteligível. Clarice, mistura de timidez e ousadia, propôs
ao editor do jornal, A noite, no qual
trabalhava, a publicação do romance, abstendo-se dos direitos autorais. Com o surgimento do primeiro romance, Perto do Coração selvagem (1943), Clarice constituiu-se em mistério,
desmitificando o caráter sequencial das narrativas ficcionais em vigor,
trazendo no interstício da linguagem as vivências interiores do ser humano.
Depois de ler O Lobo da Estepe
(Hermann Hesse), Clarice confessa: “a viagem interior me fascinava. Eu havia
entrado em contato com a grande literatura” (GOTLIB, 2009a, p. 156).
Clarice Lispector configura uma
acepção multifacetada de escritora, atribuindo à prática da escrita procedimentos
particulares. A concentração prescrita para a elaboração do texto literário
ocorria de forma peculiar, pois a autora não se esquivava, enquanto escrevia,
da companhia dos filhos, de atender ao telefone, de direcionar a organização da
casa ou de receber amigos. Poderia interromper a trajetória por longo tempo e
retornar à escrita sem perder o fio de Ariadne. O trânsito por universos se não
divergentes, distintos, com propriedade, aponta para uma capacidade inerente à
autora que é o de exercer papéis dentro e fora da cena literária. Aliando a rotina familiar ao fazer literário,
Lispector escreveu os seus textos, encontrando na realidade subjetiva do
cotidiano, os tipos que iriam compreender a obra: os tipos humanos em estado de
busca lancinante de si mesmos.
A alma exposta em sua obra é a alma
de uma mulher só, mas dentro dela encontramos toda a gama de experiência
humana. Eis porque Clarice já foi descrita como quase tudo: nativa e
estrangeira, judia cristã, bruxa e santa, homem e lésbica, criança e adulta,
animal e pessoa, mulher e dona de casa. Por ter descrito tanto de sua
experiência íntima, ela podia ser convincentemente tudo para todo mundo,
venerada por aqueles que encontravam em seu gênio expressivo um espelho da
própria alma. Como ela disse, “eu sou vós mesmos”. (MOSER, 2009, p.17).
Deste modo, exercita fazer
literário onde efetiva procedimento de construção da linguagem diferenciado em
relação aos contemporâneos. Interessada pela repercussão da realidade exterior
nos estados interiores de cada personagem observa-lhes dúvidas e/ou
inquietações como repercussões inerentes à condição humana; assim, retoma o
exercício de aprendizagem sobre si – em âmbito de essencialidade. Beirando à
aleatoriedade intuitiva, frequentava bibliotecas e escolhia os livros pelos
títulos: “misturava Dostoievski com livro de moça, que hoje não existe mais. Eu
tinha lido uns romances [...] de Delly e Ardel [...]” (LISPECTOR, 2005, p.143).
Logo, compunha um mosaico de percepções que iriam acentuar a particularidade
nata de escrever, preocupando-se antes com as impressões do que com os fatos
enredados na história. A narrativa clariciana, de um modo geral, não centra
atenção especial aos elementos exteriores − no tempo cronológico e no espaço
físico − que envolvem as personagens e as ações e, sim, ao espaço mental,
explorando a consciência humana: “Os meus livros não se preocupam com os fatos
em si, porque para mim o importante é a repercussão dos fatos no indivíduo”
(LISPECTOR apud BORELLI, 1981, p.70).
Borelli (1981) relata que o
fazer literário de Clarice concebe-se por intermédio de ideias aparentemente
desconexas; fragmentos de imagens e sensações registrados em pedaços de papel
para, em dado momento, serem re-significados na condição de romances e contos.
“Aprendi a não rasgar nada do que escrevo” (LISPECTOR apud BORELLI, 1981,
p.84). A própria autora revela que Perto
do coração Selvagem, como as demais obras, foram resultado dessas anotações
“despretensiosas” ao adquirirem corpo na construção do texto: “[...] eu estava
com um montão de notas, assim, separadas, para um romance.[...] Estas folhas
“soltas” deram Perto do coração selvagem” (LISPECTOR, 2005, p. 143). As
palavras, portanto, enquanto signos sensíveis e inteligíveis, iam sendo
moldadas e interligadas pela escritora, transformando fatos aparentemente
banais em revelação capaz de despertar,
no indivíduo, o desejo de saber sobre a própria existência: “que é que eu sou?”[7];
entendendo-a enquanto experiência paradoxal: “viver, afinal de contas, é entre
dois nada: antes do nascimento e depois da morte”[8];
dentro de uma temporalidade múltipla, longe da lógica da razão e próxima dos
sentidos: “Eu procuro alguma coisa que não sei o que é. Algumas pessoas acham
que a procura dura o tempo de uma vida[9]”.
Diante dessa anunciação, o leitor
percebe que o processo tenso de busca da descoberta de si na condição humana
revela-se na dinâmica interna das personagens, por fluxo de consciência que
afasta as determinações e prioriza o sentido das coisas em si: “O leitor de
Clarice vê uma alma virada pelo avesso” (MOSER, 2009, p.16). A linguagem – além
de discurso ficcional − passa ser instrumento de investigação; no sentido de
fazer-se a si como efeméride de sentidos que tendem à negação da palavra e daí
ao silêncio que se constitui no estado de encontro primordial com a vitalidade
da poesia. Rossoni (2004) alega que Clarice Lispector, embora privilegie o que
se passa no âmago da personagem, o ponto de partida é sempre a realidade que
para escritora não é fenômeno puramente exterior: “O que é a vida real? Os
fatos? Não, a vida real só é atingida pelo que há de sonho na vida real” (LISPECTOR apud ROSSONI, 2004, p. 113).
De acordo com o estudioso, Clarice introjeta o exterior no mundo interior da
escrita e, dessa forma, busca, no âmbito da sagração da linguagem, a
essencialidade do ser e das coisas.
No dizer de Nunes (1966), a
concepção de mundo de Clarice Lispector tem marcas da filosofia da existência.
Exercita uma contingência visceral que está a todo tempo em busca do devir
humano. O autor destaca a experiência da
náusea, como característica constante
na obra da escritora: “[...] é o momento excepcional por que passam os
personagens de Clarice Lispector nas crises decisivas” (NUNES, 1966, p. 20).
Clarice Lispector, entretanto, em entrevista concedida ao Museu de Arte e do
Som do Rio de Janeiro (1976), revelou que a sua náusea se diferenciava da de
Sartre: “[...] Minha náusea é sentida mesmo [...] no corpo todo, na alma toda.
Não é sartreana” (LISPECTOR, 2005, p.151). Nunes observa certa perspectiva
mística na obra clariciana como elemento diferenciador entre a escritora e o
filósofo. Mais que mal-estar físico, as situações nauseantes são movidas por
profunda e violenta angústia a qual a escritora dramatiza e perpetua, como
espécie de elemento de salvação. É o momento que antecede a epifania, e resulta sempre da dolorosa
sensação de fragilidade exteriora que mascara a condição humana.
O mal-estar da angústia, diferente do medo, provém da
insegurança de nossa condição desnudada como puro estar-aí (Dasein), como
possibilidade originária que nada sustenta. Abandonado, entregue a si mesmo,
livre, o homem que se angustia vê diluir-se a firmeza do mundo. O que era
familiar torna-se-lhe inóspito. Sua personalidade social recua. O círculo
protetor da linguagem esvazia-se, deixando lugar para o silêncio (NUNES, 1976, p. 16-17).
Clarice jamais se referiu ao termo
“epifania”, mas a crítica identifica o fenômeno como elemento recorrente na
referida escritura e que não implica uma compreensão contemplativa da
realidade. É antes uma experiência vertiginosa e que compromete uma situação
aparentemente confortável. Entender o caráter epifânico da literatura de
Clarice Lispector constitui tarefa imprescindível para a compreensão da obra,
vez que possibilita às personagens vivenciar, num lapso de tempo, a
profundidade reflexiva de realidade até então não percebida. Rossoni (2007) diz
que o processo epifânico no discurso clariciano compreende três momentos:
1. Situação de normalidade: visualizada como pleno
gozo da consciência convencional [...]
2. Situação de
estranhamento: a consciência convencional se põe a perder [...]
3. Situação de pseudo-retorno à normalidade: a
consciência final não é mais a mesma que iniciou o processo [...] (ROSSONI,
2007, p.96).
Tanto nos contos como nos romances, as
personagens são tomadas de assalto pelo instante de percepção de uma realidade
na qual sempre estiveram inseridas, mas para a qual não atentavam. Do flash de consciência transposto para a
experiência ritual da epifania, aproxima a identidade perdida da vivência plena
e pulsante e, talvez por isso, a reação de angústia
diante do velho/novo. Com essa forma tão particular de escrever, a autora
distancia-se do mundo cientificista, regido por sistemas de leis, e estuda a
realidade à luz das exceções a essas normas. Assim sendo, capta o mais profundo
do ser humano que é flagrado na banalidade do cotidiano e, nos desvãos, anuncia
e denuncia a complexidade humana.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Perspectiva 1968.
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Lispector. In: _____. Vários Escritos.
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GOTLIB, Nádia Battella. Clarice, uma vida que se conta. 6.ed. São Paulo: Editora da USP, 2009a.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice fotobiografia. 2.ed. São Paulo: Editora da USP;
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009b.
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Battella. O olha crítico em cena. In. André Luis Gomes. Clarice em cena: as relações entre Clarice Lispector e o teatro.
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LISPECTOR, Clarice. A Hora da estrela. Rio de janeiro: Rocco, 1998a. (1ª ed. 1977)
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encenam: a dramaturgia em Clarice Lispector. III Encontro Baiano de Estudos em Cultura - EBECULT. Cachoeira/BA:
UFRB, 2011. Disponível em:
<http://www.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/04/Vidas-que-se-encenam-a-dramaturgia-em-Clarice-Lispector1.pdf>.
Acessado em: 11 dez 2013.
LOPES, Mônica de Jesus. Viagem a
Petrópolis: a narrativa de Clarice Lispector. Revista Literatura. Edição 46, Rio de Janeiro, 2012, p.50-57.
MOSER, Benjamin. Clarice. Trad. José Geraldo Couto. São
Paulo: Cosac Naify, 2009.
NOLASCO, Edgar Cezar. Clarice Lispector: nas entrelinhas da
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NUNES. Benedito. O drama da linguagem. São Paulo: Ática,
1989.
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tigre. São Paulo: Perspectiva, 1976. ROSEMBAUM, Yudith. Entrevista concedida por e-mail a IHU on
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<http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1141&secao=228>.
Acessado em 11 jan 2013.
ROSSONI, Igor. Zen e a poética auto-reflexiva de Clarice Lispector: uma literatura de
vida e como vida. São Paulo: Editora UNESP, 2002. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1981.
[1] Yudith Rosembaum em entrevista
concedida por e-mail a IHU on line - www.ihu.unisinos.br
[2] Ibidem
[3] Na biografia Clarice uma vida que se conta (2009), Nádia Gotlib refere-se ao nome
original - russo de Clarice Lispector como “Haia”; e na biografia Clarice, (2009) Benjamim Moser como “chaya”. De acordo com o dicionário hebraico,
Haya é variação de Chaya e ambos significam “viver”, “vida”.
[4] Última entrevista de Clarice
Lispector, entrevistada por Julio Lerner para a TV Cultura, em janeiro de 1977
e publicada na revista Shalom, nº 296, v.2, 1992.
[5] CLARICE
apud BORELLI, 1981, p. 14-19.
[6] Ibidem
[7] BORELLI,
1981, p. 14
[8] Ibidem p. 19
[9] Ibidem p.19