Jamescley Almeida de Souza
Mestrando em Letras
(UFAM)
RESUMO:
Este
artigo tem como objetivo realizar um olhar sobre a loucura a partir do conto
“Homero”, de Sophia Andresen. Publicado em 1962, em Contos exemplares, o conto narra a história de Búzio, um homem velho
e louco que costumava aparecer, sem dia marcado, em uma cidade litorânea para
esmolar. No conto, sobressai principalmente o modo como Búzio parece agir de
acordo com uma ética de retribuir o próximo e a sintonia que ele parece manter
com a natureza, ao ponto de ser confundido com ela em dado momento. A loucura de
Búzio é analisada fazendo-se um contraponto com a forma com que outros pobres e
loucos praticam esmolas no conto, e tem a sua fundamentação teórica buscada,
sobretudo, em autores como Erasmo de Rotterdam e Michel Foucault.
Palavras-chave: Homero. Loucura. Ética. Religação.
ABSTRACT:
This article
aims to carry out a
glance at the madness from the short story “Homer”, by Sophia Andresen.
Published in 1962, in Contos exemplares, the
story tells about Búzio, an old and madman who was used to appears, without
scheduling a day, in a coastal city to beg for alms. In the story, stands out
chiefly the way how Búzio seems to act accordingly with an ethics of rewarding
one’s neighbor, as well as the harmony that he seems to maintain with the
nature, to the extent that he almost is confused with it at a given time.
Búzio’s madness is analyzed making a counterpoint with the way by which others
poor and crazy people beg for alms in the story. Theoretical principles were
sought especially in authors like Erasmo de Rotterdam and Michel Foucault.
Keywords: Homer. Madness.
Ethics. Reconnection.
Introdução
De autoria da escritora
portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), “Homero” é um dos mais
belos contos da obra Contos exemplares, publicada
em 1962. Ele aparece ao lado de outros contos igualmente famosos, como “O
homem”, “O jantar do bispo”, “O retrato de Mónica”, “A viagem”, “Melchior”, “Praia”,
entre tantos outros que, como bem disse a poeta portuguesa, “não há nenhum do
qual não se possa retirar um exemplo” (ANDRESEN, 1991). Neste conto, em
particular, o exemplo vem do modus vivendi
e do modus operandi do personagem
Búzio.
Búzio é descrito como “um
velho louco e vagabundo” que costumava passar pela praia de uma típica cidade
litorânea portuguesa. É apresentado como sendo de “barba branca e ondulada”,
com “grossas veias azuis” nas suas pernas, de andar “baloiçado como o andar dum
marinheiro ou dum barco” e de olhos “como o próprio mar”, ora zuis, ora
cinzentos, ora verdes e até mesmo roxos.
Ele trazia sempre em
mãos e ao seu lado três coisas: na mão direita, duas conchas, atadas por fios,
formando, assim, castanholas com as quais “marcava o ritmo dos seus longos
discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas”; na mão esquerda,
“um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas”;
e ao seu lado, “seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pelo
grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto”.
O que mais atraía, no
entanto, a atenção em Búzio, não era a sua barba, ou o seu andar baloiçado, ou os
seus olhos ou tampouco as coisas que trazia em mãos. Aos olhos da narradora, o
que mais causava admiração nele era o seu modo de viver e de fazer as coisas,
assim como um princípio de vida que parece ter escolhido para si. Mesmo sendo
descrito como “louco”, Búzio é um homem em conexão com princípios como o da
religação com o cosmo e o da “necessidade de cuidar de si e dos outros”
(OLIVEIRA, 2012, p. 14). Palavras que ao lado de mar, de dualidade, de
metapoesia, entre outras, são plavras-chave na obra de Sophia Andresen.
Visto como louco, Búzio
passa habitualmente pela praia da cidade com o objetivo de esmolar, assim como
faziam outros “pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos,
e que pediam esmolas pelas portas”. O “louco” Búzio, entretanto, era diferente
dos demais. Destes pobres e loucos se tinha pena, mas de Búzio, não. Ele “não
fazia pena”.
Ancorado em autores como
Erasmo de Rotterdam (1466-1536) e Michel Foucault (1926-1984), entre outros,
este trabalho tem como objetivo lançar um olhar sobre a loucura a partir do
homem Búzio, personagem deste conto. A loucura do personagem será analisada principalmente
fazendo-se um contraponto entre a sua conduta de acordo com os princípios de
cuidado de si mesmo, de ética para com o próximo e de religação, destacados no
conto “Homero”.
O
louco Búzio e o cuidado de si
Uma dos traços
psicológicos de Búzio que mais impressionava a menina, memória trazida à baila
depois de “muitos anos” pela mulher agora já madura que ela havia se tornado,
era o fato de ele não conseguir suscitar nela sentimento de comiseração. Os
olhos pueris que o viam passar, sem hora nem dia marcados, o viam realmente
como um homem louco e solitário, mas nunca como digno de compadecimento. Em
certo sentido, é possível dizer que isso decorre da forma como Búzio mantém uma
relação justa com real e se responsabiliza por si mesmo, dá conta de si mesmo.
No excerto abaixo, o contraste que se faz entre ele os pobres que esmolavam na
cidade pode ser vista como uma chamada à responsabilidade por si mesmo, enviada
a todo ser humano:
Havia
na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e
trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos,
surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos seus trapos, eram mães
escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as
pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços
torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um
murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações [...] Mas o Búzio
aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito,
lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena
(ANDRESEN, 1991, pp. 159, 160).
Para a menina, o grupo de pobres que aparecia “aos
sábados em bandos acastanhados e trágicos” era digno de sua compaixão e de seu
enternecimento. Não somente pelo fato de se encontrarem todos na mesma situação
de pobreza, de doença e de miséria, mas principalmente pela mensagem que suas
imagens transmitiam. Como ela mesma lembra, era uma mensagem de “murmúrios”, de
“gemidos”, de “queixas” e de “lamentações”. Antes de tudo, eles eram dignos da
comiseração por parte das pessoas da cidade e da menina, principalmente.
Não constituiria exagero afirmar que a condição
deles era gravemente pior que a de Búzio. Mas o que os olhos de uma menina
observam é que eles zelavam por andar e se comportar como esmoladores. Além do
mais, o grupo havia feito da esmola uma instituição, pois havia escolhido o
sábado para aparecer, fazendo da prática uma forma de ganhar a vida.
Já Búzio, não. Ele era
diferente. Uma diferença assentada sobre quatro razões. Em primeiro lugar, ele
“aparecia sozinho”, não vinha em bando como os demais. Apenas por seu cão ele
se fazia acompanhar. Sozinho chegava, passava e desaparecia. Em segundo, ele
aparecia “não se sabia em que dia da semana”, pois não havia instituído o
sábado ou qualquer outro dia para esmolar. Em terceiro, ele andava “alto e
direito, lembrava o mar e os pinheiros”. Praticava a esmola, mas parecia não se
importar em transmitir, para os seus ajudadores, a mesma mensagem de alguém que
precisava. Dito de outra maneira, ele não tentava controlar ou monitorar a
opinião que estes formavam a respeito dele. E por último, Búzio “não fazia
pena”. Talvez não somente porque não apresentava “nenhuma ferida” ou
amputações, deficiências ou outras morbidades consideradas mais graves, mas por
ser apenas um “louco responsável”. Aos olhos da menina, um louco que cuidava de
si e que cumpria “a função do indivíduo”, que é “apossar-se de sua existência
material, tornando-a parte de seu caráter e de sua capacidade, fazendo com que
dessa maneira ele tenha um lugar no mundo” (HEGEL, 2001, p. 124).
Como um homem
solitário, Búzio poderia facilmente cair no estereótipo do eremita (lat. eremitae, solitário), do homem que vive
em lugar deserto, isolado por penitência ou por fuga ao convívio social. “Homero”
não cuida em apresentar o topos de
moradia — se é que o tinha— ou quaisquer vínculos familiares dele. Búzio é
simplesmente projetado no conto. É projetado à moda de Melquisedeque, “sem pai,
sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida”, como diz
o escritor aos Hebreus no capítulo 7, ao comparar esta personagem bíblica com
Cristo (BIBLIA, 1999)[i]. Nesse
sentido, o velho e louco Búzio seria também um “Homem de nenhum lugar”[ii],
um tipo imortalizado pela canção dos Beatles:
Ele é
realmente o homem de nenhum lugar
Sentado
em sua terra de nenhum lugar
Fazendo
todos os seus planos de lugar
Para
ninguém
Não tem
um ponto de vista
Não
sabe para onde está indo
Ele não
seria um bocado como você e eu?
Homem
de nenhum lugar, por favor, escute
Você
não sabe o que está perdendo
Homem de nenhum lugar, o mundo
está ao seu comando[iii]
Como é possível inferir da letra de John Lennon, o “homem
de nenhum lugar” também vive num topos ou
numa terra “de nenhum lugar”. Assim como a “personagem” dos Beatles, Búzio é um
“homem de nenhum lugar”.
Outro ponto que se
destaca em sua loucura e em sua vida solitária é a aparente não necessidade de
separação do convívio social. Búzio passeia livremente pela cidade litorânea,
cuidando de si e sem causar mal nenhum aos outros. Resguardadas, é claro, as
devidas proporções que só aos psiquiatras convém julgar, esse fato traz a lume
a questão da internação da loucura e a maneira da sociedade lidar com ela até o
final do século XVII. Segundo Foucault (1979, p. 69), em Microfísica do poder, a loucura só passou a ser sistematicamente
internada a partir do século XVIII. Antes disso, como diz o filósofo francês, ela
era “essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no
começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do
mundo; podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas
extremas ou perigosas”.
Ao contrário de estar
nos reconhecidos lugares “terapêuticos”, como passaram a ser chamados, não
seria excessivo afirmar que a loucura sempre circulou livremente entre os
homens e foi “a única capaz de alegrar os deuses e os mortais” (ROTERDAM, 2002
[1511], p. 13). Ela alegrou o coração de reis, pois até mesmo Salomão (ca. 1000
– 931 a. C.), tido como o mais sábio dos monarcas hebreus, a ela se inclinou:
“e apliquei o meu coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as
loucuras” (Livros de Eclesiastes, 1:16).
Arauto da alegria, a
loucura, na verdade, nunca deixou os reis “sozinhos”, como bem lembra Blaise
Pascal (1623 - 1662), para que ele mesmo não venha a se descobrir “um homem
cheio de misérias” (PASCAL, 2002). A loucura sempre esteve próxima do homem. Daí
Foucault (1999, p. XXI) mostrar, em As
palavras e as coisas, “a maneira como ela [a loucura] experimenta a
proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a
ordem segundo a qual é preciso percorrê-los”.
Em sua A história, Heródoto (484 – 425 a. C.)
deixou mostrado como a loucura esteve bem próxima de reis, quando comenta que
Cambises II (580 – 522 a. C.), ao invadir o Egito, “teve ainda outros acessos
de loucura, tanto contra seus compatriotas como contra seus aliados. Mandou
abrir túmulos antigos para identificar os mortos” (HERÓDOTO, 2006, p. 252). Na
tradição judaica, é famosa a narrativa, no Primeiro
Livro de Samuel[iv],
sobre a loucura do rei de Saul (1076 – 1004 a. C.). E até com aquele que é
considerado o maior dos reis de Israel ela flertou, uma vez que se sabe que
Davi (1040 – 970 a. C.), quando exilado, fingiu-se de louco para não ser morto[v]. Além
do que, inúmeros imperadores romanos loucos, como Calígula (12 – 41), Nero (37
– 68) e Cômodo (161 – 192), também dão testemunho dessa proximidade.
A loucura é tão próxima
aos seres humanos que Foucault (1999, p. 124) acrescenta “que todos os
raciocínios humanos não passam de loucura. E quando digo todos, não excetuo os
meus cálculos”. Em outra obra, ele ressalta a evidencia do “velho tema cristão[vi]
segundo o qual o mundo é uma loucura aos olhos de Deus” (FOUCAULT, 1978, p.
35). E Diderot (1979, p. 110) lembra “que não há grandes inteligências sem um
grão de loucura”.
A loucura, pois, na
pessoa de Búzio, passeia pela praia, e livremente. Ainda neste sentido,
Carpeaux (2011), em História da
literatura ocidental, cita a obra de Sebastian Brant (1458 – 1521),
intitulada Das Narrenschiff (1494),
que descreve a “viagem de um navio cheio de loucos, que personificam todas as
classes e profissões da sociedade”. Mais tarde, em sua tese de doutorado,
publicada sob o título História da
loucura na Idade Clássica, Foucault (1978, p. 12) irá lembrar que o Narrenschiff teve existência real:
Mas de
todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles
existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra.
Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos
de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram
confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era frequente particularmente
na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se
a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinquenta anos
que se seguiram, têm-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias,
tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais.
Ainda em relação ao
solitário Búzio, é possível fazer coro, com Jean-Paul Sartre (1905-1980), que
certa dose de misantropia no homem é não somente natural, mas fundamentalmente
saudável. Mesmo que ele seja “um animal feito para a sociedade civil”, máxima
imortalizada por Aristóteles (2002, p. 35), na Política, o filósofo francês pontua que
a
misantropia tem também o seu lugar neste concerto: não passa duma dissonância
necessária à harmonia do conjunto. O misantropo é homem: logo, é preciso que o
humanista seja, em certa medida, misantropo. Mas é um misantropo científico,
que soube dosear o seu ódio, que, se começa por odiar os homens, é apenas para,
mais tarde, poder amá-los melhor (SARTRE, 1964. p. 73).
A misantropia de Búzio, portanto, tem “o seu lugar
neste concerto”, que é a sua vida e a sua loucura. Na verdade, o próprio
Aristóteles (2002) reconheceu que o homem faz parte das duas espécies de
animais, as “gregárias” (koinonia) e
as “solitárias” (monadika). Por um
lado, ele precisa se unir a outros de sua espécie para alcançar a plenitude
como ser; por outro, ele tende a viver de maneira esparsa. Semelhantemente,
Morin (2007, p. 19, 20) identifica no ser humano dois princípios, “um princípio de exclusão e um princípio de
inclusão”. O princípio de exclusão é a fonte do egoísmo e “garante a identidade
singular do indivíduo”; já o princípio de inclusão é o instinto natural de
apego à pessoa próxima e “permite incluir o seu Eu num Nós (casal, família,
pátria, partido)”.
Assim, é possível afirmar que a misantropia de Búzio
é, de certa maneira, uma “dissonância necessária à harmonia do conjunto”.
Harmonia não somente no sentido de o fazer responsável por si mesmo, mas também
por ser um fator propulsor ligado à transcendência, a uma religação com o
cosmo, como será abordado mais adiante. Talvez por ser solitário, Búzio seja
capaz de se conectar “com a tarde”, de ter a companhia do sol “na sua cara e
nos seus ombros” e de conversar com o mar, invocando a “frescura das águas” e o
“brilho das estrelas”. Da mesma forma que, no passado, a fuga para lugares
ermos esteve ligada à recepção de revelações e de religação com o sagrado, homens
como Moisés, Buda, Maomé, Jesus, Paulo, entre tantos outros, vivenciaram essa
práxis.
Os
olhos pueris que viam Búzio passar pela praia também observam que ele andava “alto
e direito”. Um andar alto e direito que não se importava com a mensagem que
estava a passar: se era a de alguém que precisava das esmolas que das pessoas
recebia, ou não. Por isso, a menina observa, muitos anos mais tarde, que o
velho não suscitava pena ou compaixão. Se aplicássemos à pessoa de Búzio o
pensamento de Baudrillard (1991, p. 9), presente em Simulacros e simulação, seria possível dizer que o velho transeunte
não simula nem dissimula. Pois “simular é fingir ter o que não se tem”, e Búzio
não finge ter feridas, braços amputados ou doenças mais graves como tinha o
bando de pobres. E “dissimular é fingir não ter o que se tem”, assim como Búzio
não finge não ter um andar “alto e direito” que “lembrava o mar e os pinheiros”,
incapaz de despertar o sentimento de pena. Que Erasmo fale:
Não
existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração.
Sou sempre igual a mim mesma, de tal forma que, se alguns dos meus sequazes
presumem não passar por tais, disfarçando-se sob a máscara e o nome de sábios,
não serão eles mais do que macacos vestidos de púrpura, do que burros vestidos
com pele de leão (ROTTERDAM, 2002, p. 17).
Assim,
Búzio é a loucura em pessoa, tal como, nestes termos, a retratou Erasmo de
Rotterdam, “o primeiro grande intelectual da Europa moderna” (CARPEAUX, 2011,
p. 597).
O
louco Búzio e a ética para com o próximo
Com sua melopeia como
moeda de troca, alegrando aqueles que lhe ouvem, Búzio corrobora a tradição de
que a loucura sempre divertiu a humanidade:
Parava
em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas
castanholas de conchas. Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental
branco que lhe estendia um pedaço de pão e lhe dizia: — Vai-te embora, Búzio. E
o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões,
abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda
cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio (ANDRESEN, 1991,
pp. 158-59).
Muitos anos depois, a
mulher madura na qual a menina da praia havia se tornado, também traz à baila uma
memória de ética. Talvez agora, já com idade, ela passasse a recordar o bem que,
ao mesmo tempo em que recebia as esmolas, o louco Búzio procurava infundir nas
pessoas à sua volta. Talvez ela não entendesse o porquê de se sentir um pouco
melhor quando ele assumia a posição “em frente duma porta” e começava a entoar
“a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas”. Ou,
ainda, na praia, quando, escondida, observava Búzio falar com o mar, e pôde
sentir a alegria que as suas “palavras brilhantes” espalhavam.
É interessante observar,
outrossim, que o “bando de pobres” que ia e vinha para a cidade, religiosamente
todos os sábados, apenas a essa práxis se limitava. Trazia sempre a mesma
mensagem — de murmúrio, de queixas e de lamentações. E da mesma forma que
surgia, da mesma forma desaparecia. Mas Búzio, não. Búzio parecia um louco
ciente de que era dono de algo especial. Um algo especial com o qual poderia
retribuir àqueles que lhe ajudavam com as esmolas. A sua melopeia, à entrada
das portas, acompanhada das suas duas castanholas de conchas, era a moeda com a
qual ele procurava espalhar harmonia, o riso ou o bem. E “fazer o bem aos
outros é melhor que fazer o mal” (BAUMAN, 1997, p. 36).
Com
esta práxis, Búzio parecia agir de acordo com a “regra de ouro”, como ficou
conhecida a afirmação de Cristo, que diz: “tudo o que vós quereis que os homens
vos façam, fazei-lhe também vós a eles”[vii].
A mesma regra aparece nos Analectos de
Confúcio (551 – 479 a. C.) nos seguintes termos: “não faça aos outros o que
você gostaria que não fizessem a você”. A diferença é que Cristo a coloca “de
uma forma positiva. Isso é algo muito diferente. Deixar de ferir é uma coisa;
estender uma mão para ajudar, é outra” (EARLE; SANNER; CHILDERS, 2006, p. 68).
Mas em relação a Búzio, o princípio se traduz em moeda de troca. Ele paga com
um bem o outro bem que espera receber. Em troca de esmolas, ele oferece a sua
melopeia ritmada.
A
loucura, na verdade, sempre alegrou ou divertiu o coração dos homens. Recordando
Erasmo de Rotterdam (2002, p. 14), com uma “simples presença” ela consegue
“expulsar a tristeza de vossa alma”. Diderot (1713 - 1784) falava das duas
espécies de homem, sábios e loucos, onde estes últimos estão no palco divertindo
os primeiros, “que se dedicam a lhes copiar as loucuras”:
Na
grande comédia, a comédia do mundo, aquela para a qual sempre torno, todos os
homens de gênio encontram-se na plateia. Os primeiros chamam-se loucos, os
segundos, que se dedicam a lhes copiar as loucuras, chamam-se sábios. É o olho
do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e
que vos faz rir, quer desses importunos originais, de que foste vítima, quer de
vós mesmos (DIDEROT, 1979, p. 361).
Os bobos da corte ou
bufões eram, na maioria das vezes, além de deficientes físicos ou anões, pessoas
loucas. Havendo surgido no Império Bizantino, eles divertiam os reis fazendo-se
acompanhar daquelas que são consideradas as melhores sequazes da loucura: a “adulação”
(kolaxia), o “esquecimento” (lethes), o “horror à fadiga” (misoponia), a “irreflexão” (ania), a “delícia” (trofis) e komos, “o riso”
(ROTTERDAM, 2002). Como declarava Diderot (1979, p. 141), “só o ridículo e a
loucura fazem rir”. Dai que, em Pensamentos,
Pascal fala sobre a distração dos reis, analisando friamente a verdade de que
“um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias”. E esclarece que é por
isso que a corte cuida para que:
nunca
deixe de haver junto da pessoa do rei um grande número de pessoas que velam por
fazer suceder o divertimento aos seus negócios, e que observam todo o tempo do
seu lazer para lhe fornecer prazeres e jogos de sorte que não haja vazio; isto
é, fica cercado de pessoas que têm um cuidado maravilhoso de zelar para que o
rei não fique só e em estado de pensar em si, sabendo bem que ele será miserável,
por mais rei que seja, se o pensar (PASCAL, 2002).
Erasmo de Rotterdam
(2002, p. 25) persiste no Elogio da
loucura, dizendo que a esta os homens também devem não só a propagação do
gênero humano, mas “o gérmen e o desenvolvimento da vida”, assim como “todos os
bens que a vida encerra”. Nesse sentido, Otto Maria Carpeaux, analisando a
relação entre literatura e loucura, chega a apontar a influência desta em
muitas obras e autores. Diz, por exemplo, que “os maiores poemas de Hölderlin
nasceram quando ele já estava louco” (CARPEAUX, 2011, p. 1402). Escritores como
o “primeiro grande escritor finlandês”, Alexis Kivi (1834-1872), e Gogol (1809
– 1852), autor de O capote, a
“obra-prima da grande literatura russa” acabaram loucos (Op., cit., p. 1580). Foucault (1978, p. 19) chega a declarar que “igualmente
na literatura erudita a Loucura está em ação, no âmago mesmo da razão e da
verdade. É ela que embarca indiferentemente todos os homens em sua nau
insensata e os destina à vocação de uma odisseia comum”.
Por causa disso, diz a
loucura, não seria “eu proclamada e venerada como a primeira das divindades,
eu, que a todos, prodigamente, dispenso sozinha tantos bens” (ROTTERDAM, 2002,
p. 23). “Ela governa tudo o que há de fácil, de alegre, de ligeiro no mundo. É
ela que faz os homens se agitarem e gozarem” (FOUCAULT, 1978, p. 29).
O
louco Búzio e a religação com o cosmo
Se a loucura de Búzio
não pode ser contestada, é também incontestável a espécie de transcendência em
que ele vive. Essa religação com o cosmo parece ser tão factual quanto a sua
misantropia ou a sua loucura.
Ter
pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele
parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza. O Búzio não possuía
nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele
próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama,
seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o
chão que pisavam (ANDRESEN, 1991, p. 160).
A partir do excerto
acima, formula-se a hipótese de que a religação — tema recorrente na obra de
Sophia Andresen — pode ser evidenciada em, pelo menos, três pontos. Primeiro,
quando a narradora lembra-se da ausência de barreiras que existia entre Búzio e
a natureza. Segundo, quando ela o compara a uma árvore. E terceiro, quando ela fala
da sua ligação com a terra, de como “os seus pés descalços pareciam escutar o
chão que pisava”.
Para a menina, Búzio e
a natureza eram como uma e a mesma coisa. Eles estavam em perfeita integração.
As barreiras que lhes impunham separação haviam sido depostas. Ele era como um
“plátano”, como um “rio” ou como o “vento” porque conseguira se libertar de
suas máscaras. Oliveira (2012, p. 33), ao comentar o poema andreseniano
intitulado “Reza da manhã de maio”, esclarece que “a máscara é tudo o que
separa, seleciona, enquadra e limita a liberdade”. Quando o ser humano se
liberta dessas máscaras, ele se mantém “em sintonia com as coisas naturais” (Op. cit., 32).
Em outro trecho, essa
união é mostrada na forma como Búzio chegava à praia. Observava-se que ele
vinha “rodeado de luz e de vento”, ele vinha “com o sol na cara e as sombras
trémulas das folhas dos plátanos nas mãos” (ANDRESEN, 1991, p. 160). Neste
momento, homem e natureza eram uma só coisa, homem e natureza compartilhavam o
mesmo caráter. No conto “Homero”, assim como em muitos pontos da poesia de
Sophia Andresen, esse “estado de natureza” significa a harmonia do homem com o
“mundo-belo-ordenado” (OLIVEIRA, 2012, p. 13), significa a volta à sintonia
perdida com o cosmo.
Neste
ponto, em particular, “Homero” abre margem para se fazer alusão a um tópico
sucessivamente discutido por jusnaturalistas clássicos, que é o estado de
natureza do homem. Autores como Locke (1632 – 1704), Hobbes (1588 – 1679) e
Rousseau (1712 – 1778) apresentaram diferentes interpretações e qualidades para
o conceito. Diferentemente de Hobbes, para quem o estado de natureza era uma
“condição de contínua beligerância” (BRANDÃO, 2006, p. 34), este conceito, em
“Homero”, parece se aproximar mais daquele sentido que foi teorizado por Locke
e por Rousseau. Em Locke, o estado de natureza é
um
estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e
toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres
criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento,
desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades,
devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu
senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse
destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma
designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um soberano (LOCKE,
1978, p. 65).
Em
“Homero”, a “igualdade”, falada acima por Locke, se faz não entre um homem e seu
semelhante, mas entre o homem e a natureza.
O
estado de natureza de Búzio também se aproxima do sentido rousseauniano porque,
na concepção deste filósofo suíço, um dos destaques do estado de natureza era
“a virtual ausência de grupamentos humanos, ou seja, da vida em comunidade, já
que esse período é marcado pelo isolamento quase completo dos indivíduos,
quebrado apenas para efeitos de reprodução” (LEOPOLDI, 2002, p. 160). Búzio, da
mesma maneira, vive só, longe dos “grupamentos humanos”, destes se aproximando
somente para conseguir angariar suas esmolas. Em outro ponto, Sophia e Rousseau
também dialogam porque de Búzio se diz que “não possuía nada, como uma árvore
não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio”. E nas palavras do
próprio Rousseau (2002, p. 51), “o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade
de remédios, e ainda menos de médicos; a espécie humana, a esse respeito, não
está em piores condições do que todas as outras”. Também dialoga com
Aristóteles (1991, p. 238), pois este, em Ética
a Nicômaco, declarou que
não
se pense, todavia, que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes
coisas, só porque não pode ser supremamente feliz sem bens exteriores. A
auto-suficiência e a ação não implicam excesso, e podemos praticar atos nobres
sem sermos donos da terra e do mar. Mesmo desfrutando vantagens bastante.
Em sua misantropia,
Búzio vive o “estado de natureza” rousseauniano. É o bom selvagem. Daí Sophia
dizer que “a terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua
cama, seu alimento, seu destino e sua vida”. E Oliveira (2012, p. 31) ressaltar
que a obra da poeta portuguesa fazer-nos
pensar
sobre a necessidade de reconhecermos nossas ações para discernir as que nos
levam a um modo de vida em que voltemos a viver segundo a harmonia perfeita da
natureza, ou seja, construindo e usufruindo os bens em nossa comunidade,
agindo, assim, com justiça. A natureza é indiferente a nós, os injustos que
negamos nosso pertencimento à ordem daquela. O poeta, porém, exige que
resgatemos nosso equilíbrio.
Sua obra, pois, é um
convite a esse resgate, a essa religação com o cosmo. Esse convite é feito por
Búzio, o louco, fato que o põe como o detentor de uma verdade. Segundo
Foucault, é esse um dos papéis do louco, o de revelar “a cada um sua verdade”:
Ele
não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro
do teatro, como o detentor da verdade — desempenhando aqui o papel complementar
e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras. Se a loucura conduz
todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário,
lembra a cada um sua verdade; na comédia em que todos enganam aos outros e
iludem a si próprios, ele é a comédia em segundo grau, o engano do engano. Ele
pronuncia em sua linguagem de parvo, que não se parece com a da razão, as
palavras racionais que fazem a comédia desatar no cômico: ele diz o amor para
os enamorados, a verdade da vida aos jovens, a medíocre realidade das coisas
para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos (FOUCAULT, 1978, p. 19).
Búzio
revela, assim, a necessidade de religação com o cosmo, verdade perdida pelo ser
humano.
O
tema da religação é também visto na comparação de Búzio com uma árvore. Não
somente no excerto apresentado como no momento em que ele desponta no horizonte
da praia, a imagem da árvore é citada pela menina. Com isso, ela faz alusão à
tradição judaico-cristã, por exemplo, cultura em que o homem é, de modo
habitual, simbolizado pela árvore. Haja vista o que traz o livro de Jeremias[viii],
quando diz que “o homem que confia no Senhor” é “como a árvore plantada junto
às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro, e não receia quando vem o
calor, mas a sua folha fica verde”. Ou o Evangelho segundo São Mateus, onde
certamente Jesus Cristo — que tinha o hábito de falar por meio de parábolas — se
referia ao homem quando dizia “ou fazei a árvore boa, e o seu fruto bom; ou
fazei a árvore má, e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore”[ix].
Quando
Búzio despontava na praia, primeiro julgava-se “que fosse uma árvore ou um
penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio”. Na verdade, o
homem compartilha com a árvore um número admirável de semelhanças. Na tradição
judaico-cristã, a comparação recai primeiro sobre o “fruto”, ou seja, sobre as
ações humanas. Bachelard (1998, p. 74) lembra que na cultura celta, “ao nascer,
o homem era consagrado ao vegetal, tinha sua árvore pessoal”. Jung (2000, p.
116) afirma que “na história do símbolo, a árvore é descrita como o caminho e o
crescimento para o imutável e eterno”. E em seu Dicionário de termos bachelardianos, Ferreira (2013, p. 29) pontua
que “os ser humano, como a árvore,
possui raízes que o fixam às profundezas sombrias da terra e, como espírito e
luz, alteia-se no ilimitado espaço azul e infinito. Vive entre a terra e o céu,
entre o sensível e o inteligível”.
O
ser humano, assim como a árvore tem raízes terrenas, ao mesmo tempo em que
aponta para o céu, para o transcendente. Em História
dos animais, Aristóteles comenta sobre essa disposição do corpo humano em
relação ao universo:
No
ser humano, mais do que nos outros animais, a distinção entre parte superior e
inferior faz-se segundo as próprias posições naturais. Por outras palavras, as
partes alta e baixa do homem são definidas de acordo com as partes alta e baixa do universo [grifos meus].
O mesmo critério se aplica às faces anterior e posterior, ou direita e
esquerda. Em alguns dos restantes animais as coisas não se passam assim; faz-se
a distinção, mas de forma um tanto confusa. Assim, a cabeça, em todos os
animais, está acima do resto do corpo. Mas só o homem, como já dissemos, completado
o seu desenvolvimento, a tem em cima em
relação ao universo (ARISTÓTELES, 2006, p. 74).
Assim,
em “Homero”, a comparação do louco Búzio com uma árvore é um dos pontos de
destaque na procura por falar da transcendência e da necessidade de religação e
de sintonia com o cosmo. Como ressalta Oliveira (2012, p. 27), para Sophia
Andresen, “a vida é a busca da sintonia perfeita da natureza”. Em “Homero”, os
“pés descalços” de Búzio escutavam “o chão que pisavam”. É neste momento que
Búzio é visto como o louco, pois este, nas palavras de Foucault (1999, p. 65),
é entendido como “desvio”, “o homem das semelhanças selvagens”, “o jogador
desregrado do Mesmo e do Outro”.
O
tema da transcendência, no entanto, chega ao seu clímax na ocasião em que Búzio
está “sozinho” na praia, conversando com o mar. Escondida do velho louco, a
menina o observa na companhia da tarde, estendendo “as suas mãos abertas” e
entoando “um longo discurso claro, irracional e nebuloso”. Neste momento, suas
palavras eram
palavras
moduladas como um canto, palavras quase
visíveis [grifos meus] que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua
densidade e o seu peso. Palavras que chamavam
pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as
escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas
palavras reuniam os restos dispersos
da alegria da terra. Ele os invocava,
os mostrava, os nomeava: vento,
frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas (ANDRESEN, 1991,
164)
Em sintonia com o
cosmo, Búzio se põe a emitir “palavras quase visíveis”. Como Adão[x],
ele chama “pelas coisas, que eram o nome das coisas”. Suas “palavras
brilhantes” conseguem reunir “os restos dispersos da alegria da terra”. É o
homem em seu grau máximo de “ministro e intérprete da natureza” (BACON, 2002,
p. 11). Mas é, também, a visão da loucura como miragem, como o sonho de uma
presunção, pois:
a
loucura tem, nesses elementos, uma força primitiva de revelação: revelação de
que o onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma
profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo às
voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites; e revelação
inversa, mas igualmente dolorosa, de que toda a realidade do mundo será
reabsorvida um dia na Imagem (FOUCAULT, 1978, p. 33).
Por
mais estética, pois, que possa se mostrar a religação vivida por Búzio, ela
deve ser entendida a partir desta “força primitiva de revelação” apontada por
Foucault.
Em
todo o conto “Homero”, o Búzio chega à cidade e dela se afasta caladamente. Seu
silêncio é quebrado apenas quando espalha ao redor a sua “melopeia ritmada”. Em
nenhum momento é-lhe facultado diretamente a fala. Mesmo na praia, momento em
que solta as suas “palavras brilhantes”, elas chegam até nós via a memória da
menina. Aqui, ele é um sujeito que não-falante. Entretanto, nesta ocasião,
verbalizando sobre coisas que os humanos talvez não entendam, Búzio está sendo.
Nas palavras de Heidegger (2005, p. 16), “o homem é o ser que fala” e “quando
terminam de falar deixam de ser”. Falar, inclusive, é a faculdade que tira o
homem de entre todos os animais e o distingue como animal loquens. Como expressou Aristóteles (2002, p. 12), “a
natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra”.
Falando
e sendo, Búzio chamava “pelas coisas”, pelo “nome das coisas”. Lançando mão do logos, ele conseguia colocar certa ordem
no mundo, reunindo “os restos dispersos”, invocando, mostrando e nomeando. Mais
uma vez se observa o diálogo com a tradição cristã, onde se diz que “por meio
da palavra”[xi],
Deus ordenou todas as coisas. Como afirma Foucault (1978, p. 40), “a sabedoria
e a loucura estão muito próximas. Há apenas uma meia-volta entre uma e outra”.
Considerações
Finais
Este trabalho teve como
objetivo empreender um olhar sobre a loucura a partir da personagem Búzio,
presente no conto “Homero”, de Sophia Andresen. Muitos fatos chamam atenção para
a vida dele, tal como a característica de ser uma homenagem viva ao estilo
manuelino ou, ainda, ser um louco que espalha melopeias. Todavia, o que mais se
sobressai em Búzio é uma espécie de ética e de religação evidenciadas nele,
temas recorrentes na obra andreseniana.
Búzio era diferente dos
demais pobres e loucos que esmolavam. Ele andava sozinho e parecia agir de
acordo com uma regra de troca quando retribuía com melopeia àqueles que lhe
ajudavam. Sem fingimentos, tal como é a própria loucura, segundo Erasmo de
Rotterdam, ele também não se importava em andar como os outros andavam. Estes
espalhavam murmúrios e lamentações. Mas Búzio andava “alto e direito”.
Por último, no conto,
Búzio vive tão sintonizado com uma espécie de transcendência com o cosmo que é
comum confundi-lo com a própria natureza. Ora ele aparece como uma árvore, ora
como um plátano ou ora como um rio. Quando para a natureza ele abre os seus braços
e verbaliza com o mar, soltando palavras brilhantes que reúnem “os restos
dispersos da alegria da terra”, um convite a todo ser humano está sendo
enviado: a chamada à religação, à sintonia com o cosmo. Neste momento, ele se
põe como aquele que lembra a cada um a sua verdade, uma das nuances do louco ou
do bobo, tal como declarou Foucault.
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[i] Neste trabalho, as citações da
Bíblia são tomadas da versão Almeida Revista e Corrigida, edição de 1995.
[ii]“Homem de nenhum lugar” (Nowhere man) é uma canção composta por
John Lennon (1940 – 1980) e lançada pelos Beatles no álbum Rubber soul no ano de 1965.
[iii] Tradução de minha autoria. Tem-se,
então, no original: He’s a real nowhere
man/Sitting in his nowhere land/Making all his nowhere plans for nobody/Doesn’t
have a point of view/Knows not where he’s going to/Isn’t he a bit like you and
me?/Nowhere man, please listen/You don’t know what you’re missing/Nowhere man,
the world is at your command.
[iv]
O episódio sobre a loucura
do rei Saul está registrado no capítulo 22:5 e vai até o capítulo 23:14 do
livro de I Samuel.
[v] A narrativa sobre o fingimento de
Davi encontra-se no capítulo 21 de I Samuel, versos 13-15.
[vi] São Paulo desenvolve o tema
citado por Foucault na Epístola aos Coríntios, capítulo 1:18-31.
[vii] Evangelho de São Mateus,
capítulo 7:12.
[viii] Livro de Jeremias, capítulo
17:8.
[ix] Evangelho segundo São Mateus,
capítulo 12:33.
[x]
De acordo com a tradição
judaico-cristã, registrado no Livro de Gênesis, capítulo 2:20, o Deus dos
hebreus Jeová, após ter criado os animais, teria chamado Adão para os nomear.
[xi] Evangelho segundo São João,
capítulo 1:3.