UM OLHAR SOBRE A LOUCURA A PARTIR DO CONTO “HOMERO”, DE SOPHIA ANDRESEN


Jamescley Almeida de Souza
Mestrando em Letras (UFAM)


RESUMO:
Este artigo tem como objetivo realizar um olhar sobre a loucura a partir do conto “Homero”, de Sophia Andresen. Publicado em 1962, em Contos exemplares, o conto narra a história de Búzio, um homem velho e louco que costumava aparecer, sem dia marcado, em uma cidade litorânea para esmolar. No conto, sobressai principalmente o modo como Búzio parece agir de acordo com uma ética de retribuir o próximo e a sintonia que ele parece manter com a natureza, ao ponto de ser confundido com ela em dado momento. A loucura de Búzio é analisada fazendo-se um contraponto com a forma com que outros pobres e loucos praticam esmolas no conto, e tem a sua fundamentação teórica buscada, sobretudo, em autores como Erasmo de Rotterdam e Michel Foucault.
 Palavras-chave: Homero. Loucura. Ética. Religação.

ABSTRACT:
This article aims to carry out a glance at the madness from the short story “Homer”, by Sophia Andresen. Published in 1962, in Contos exemplares, the story tells about Búzio, an old and madman who was used to appears, without scheduling a day, in a coastal city to beg for alms. In the story, stands out chiefly the way how Búzio seems to act accordingly with an ethics of rewarding one’s neighbor, as well as the harmony that he seems to maintain with the nature, to the extent that he almost is confused with it at a given time. Búzio’s madness is analyzed making a counterpoint with the way by which others poor and crazy people beg for alms in the story. Theoretical principles were sought especially in authors like Erasmo de Rotterdam and Michel Foucault.
Keywords: Homer. Madness. Ethics. Reconnection.


Introdução

De autoria da escritora portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), “Homero” é um dos mais belos contos da obra Contos exemplares, publicada em 1962. Ele aparece ao lado de outros contos igualmente famosos, como “O homem”, “O jantar do bispo”, “O retrato de Mónica”, “A viagem”, “Melchior”, “Praia”, entre tantos outros que, como bem disse a poeta portuguesa, “não há nenhum do qual não se possa retirar um exemplo” (ANDRESEN, 1991). Neste conto, em particular, o exemplo vem do modus vivendi e do modus operandi do personagem Búzio.
Búzio é descrito como “um velho louco e vagabundo” que costumava passar pela praia de uma típica cidade litorânea portuguesa. É apresentado como sendo de “barba branca e ondulada”, com “grossas veias azuis” nas suas pernas, de andar “baloiçado como o andar dum marinheiro ou dum barco” e de olhos “como o próprio mar”, ora zuis, ora cinzentos, ora verdes e até mesmo roxos.
Ele trazia sempre em mãos e ao seu lado três coisas: na mão direita, duas conchas, atadas por fios, formando, assim, castanholas com as quais “marcava o ritmo dos seus longos discursos cadenciados, solitários e misteriosos como poemas”; na mão esquerda, “um grande pau que lhe servia de bordão e era seu apoio nas longas caminhadas”; e ao seu lado, “seu cão, que era velho, esbranquiçado e sujo, com o pelo grosso, encaracolado e comprido e o focinho preto”.
O que mais atraía, no entanto, a atenção em Búzio, não era a sua barba, ou o seu andar baloiçado, ou os seus olhos ou tampouco as coisas que trazia em mãos. Aos olhos da narradora, o que mais causava admiração nele era o seu modo de viver e de fazer as coisas, assim como um princípio de vida que parece ter escolhido para si. Mesmo sendo descrito como “louco”, Búzio é um homem em conexão com princípios como o da religação com o cosmo e o da “necessidade de cuidar de si e dos outros” (OLIVEIRA, 2012, p. 14). Palavras que ao lado de mar, de dualidade, de metapoesia, entre outras, são plavras-chave na obra de Sophia Andresen.
Visto como louco, Búzio passa habitualmente pela praia da cidade com o objetivo de esmolar, assim como faziam outros “pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmolas pelas portas”. O “louco” Búzio, entretanto, era diferente dos demais. Destes pobres e loucos se tinha pena, mas de Búzio, não. Ele “não fazia pena”.
Ancorado em autores como Erasmo de Rotterdam (1466-1536) e Michel Foucault (1926-1984), entre outros, este trabalho tem como objetivo lançar um olhar sobre a loucura a partir do homem Búzio, personagem deste conto. A loucura do personagem será analisada principalmente fazendo-se um contraponto entre a sua conduta de acordo com os princípios de cuidado de si mesmo, de ética para com o próximo e de religação, destacados no conto “Homero”.

O louco Búzio e o cuidado de si
Uma dos traços psicológicos de Búzio que mais impressionava a menina, memória trazida à baila depois de “muitos anos” pela mulher agora já madura que ela havia se tornado, era o fato de ele não conseguir suscitar nela sentimento de comiseração. Os olhos pueris que o viam passar, sem hora nem dia marcados, o viam realmente como um homem louco e solitário, mas nunca como digno de compadecimento. Em certo sentido, é possível dizer que isso decorre da forma como Búzio mantém uma relação justa com real e se responsabiliza por si mesmo, dá conta de si mesmo. No excerto abaixo, o contraste que se faz entre ele os pobres que esmolavam na cidade pode ser vista como uma chamada à responsabilidade por si mesmo, enviada a todo ser humano:

Havia na terra muitos pobres que apareciam aos sábados em bandos acastanhados e trágicos, e que pediam esmola pelas portas e faziam pena. Eram cegos, coxos, surdos e loucos, eram tuberculosos cuspindo sangue nos seus trapos, eram mães escanzeladas de filhos quase verdes, eram velhas curvadas e chorosas com as pernas incrivelmente inchadas, eram rapazes novos mostrando chagas, braços torcidos, mãos cortadas, lágrimas e desgraça. E sobre o bando pairava um murmúrio incansável de gemidos, queixas, rezas e lamentações [...] Mas o Búzio aparecia sozinho, não se sabia em que dia da semana, era alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros, não tinha nenhuma ferida e não fazia pena (ANDRESEN, 1991, pp. 159, 160).

Para a menina, o grupo de pobres que aparecia “aos sábados em bandos acastanhados e trágicos” era digno de sua compaixão e de seu enternecimento. Não somente pelo fato de se encontrarem todos na mesma situação de pobreza, de doença e de miséria, mas principalmente pela mensagem que suas imagens transmitiam. Como ela mesma lembra, era uma mensagem de “murmúrios”, de “gemidos”, de “queixas” e de “lamentações”. Antes de tudo, eles eram dignos da comiseração por parte das pessoas da cidade e da menina, principalmente.
Não constituiria exagero afirmar que a condição deles era gravemente pior que a de Búzio. Mas o que os olhos de uma menina observam é que eles zelavam por andar e se comportar como esmoladores. Além do mais, o grupo havia feito da esmola uma instituição, pois havia escolhido o sábado para aparecer, fazendo da prática uma forma de ganhar a vida.
Já Búzio, não. Ele era diferente. Uma diferença assentada sobre quatro razões. Em primeiro lugar, ele “aparecia sozinho”, não vinha em bando como os demais. Apenas por seu cão ele se fazia acompanhar. Sozinho chegava, passava e desaparecia. Em segundo, ele aparecia “não se sabia em que dia da semana”, pois não havia instituído o sábado ou qualquer outro dia para esmolar. Em terceiro, ele andava “alto e direito, lembrava o mar e os pinheiros”. Praticava a esmola, mas parecia não se importar em transmitir, para os seus ajudadores, a mesma mensagem de alguém que precisava. Dito de outra maneira, ele não tentava controlar ou monitorar a opinião que estes formavam a respeito dele. E por último, Búzio “não fazia pena”. Talvez não somente porque não apresentava “nenhuma ferida” ou amputações, deficiências ou outras morbidades consideradas mais graves, mas por ser apenas um “louco responsável”. Aos olhos da menina, um louco que cuidava de si e que cumpria “a função do indivíduo”, que é “apossar-se de sua existência material, tornando-a parte de seu caráter e de sua capacidade, fazendo com que dessa maneira ele tenha um lugar no mundo” (HEGEL, 2001, p. 124).
Como um homem solitário, Búzio poderia facilmente cair no estereótipo do eremita (lat. eremitae, solitário), do homem que vive em lugar deserto, isolado por penitência ou por fuga ao convívio social. “Homero” não cuida em apresentar o topos de moradia — se é que o tinha— ou quaisquer vínculos familiares dele. Búzio é simplesmente projetado no conto. É projetado à moda de Melquisedeque, “sem pai, sem mãe, sem genealogia, não tendo princípio de dias nem fim de vida”, como diz o escritor aos Hebreus no capítulo 7, ao comparar esta personagem bíblica com Cristo (BIBLIA, 1999)[i]. Nesse sentido, o velho e louco Búzio seria também um “Homem de nenhum lugar”[ii], um tipo imortalizado pela canção dos Beatles:

Ele é realmente o homem de nenhum lugar
Sentado em sua terra de nenhum lugar
Fazendo todos os seus planos de lugar
Para ninguém
Não tem um ponto de vista
Não sabe para onde está indo
Ele não seria um bocado como você e eu?
Homem de nenhum lugar, por favor, escute
Você não sabe o que está perdendo
Homem de nenhum lugar, o mundo está ao seu comando[iii]

Como é possível inferir da letra de John Lennon, o “homem de nenhum lugar” também vive num topos ou numa terra “de nenhum lugar”. Assim como a “personagem” dos Beatles, Búzio é um “homem de nenhum lugar”.
Outro ponto que se destaca em sua loucura e em sua vida solitária é a aparente não necessidade de separação do convívio social. Búzio passeia livremente pela cidade litorânea, cuidando de si e sem causar mal nenhum aos outros. Resguardadas, é claro, as devidas proporções que só aos psiquiatras convém julgar, esse fato traz a lume a questão da internação da loucura e a maneira da sociedade lidar com ela até o final do século XVII. Segundo Foucault (1979, p. 69), em Microfísica do poder, a loucura só passou a ser sistematicamente internada a partir do século XVIII. Antes disso, como diz o filósofo francês, ela era “essencialmente considerada como uma forma de erro ou de ilusão. Ainda no começo da idade clássica, a loucura era vista como pertencendo às quimeras do mundo; podia viver no meio delas e só seria separada no caso de tomar formas extremas ou perigosas”.
Ao contrário de estar nos reconhecidos lugares “terapêuticos”, como passaram a ser chamados, não seria excessivo afirmar que a loucura sempre circulou livremente entre os homens e foi “a única capaz de alegrar os deuses e os mortais” (ROTERDAM, 2002 [1511], p. 13). Ela alegrou o coração de reis, pois até mesmo Salomão (ca. 1000 – 931 a. C.), tido como o mais sábio dos monarcas hebreus, a ela se inclinou: “e apliquei o meu coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras” (Livros de Eclesiastes, 1:16).
Arauto da alegria, a loucura, na verdade, nunca deixou os reis “sozinhos”, como bem lembra Blaise Pascal (1623 - 1662), para que ele mesmo não venha a se descobrir “um homem cheio de misérias” (PASCAL, 2002). A loucura sempre esteve próxima do homem. Daí Foucault (1999, p. XXI) mostrar, em As palavras e as coisas, “a maneira como ela [a loucura] experimenta a proximidade das coisas, como ela estabelece o quadro de seus parentescos e a ordem segundo a qual é preciso percorrê-los”.
Em sua A história, Heródoto (484 – 425 a. C.) deixou mostrado como a loucura esteve bem próxima de reis, quando comenta que Cambises II (580 – 522 a. C.), ao invadir o Egito, “teve ainda outros acessos de loucura, tanto contra seus compatriotas como contra seus aliados. Mandou abrir túmulos antigos para identificar os mortos” (HERÓDOTO, 2006, p. 252). Na tradição judaica, é famosa a narrativa, no Primeiro Livro de Samuel[iv], sobre a loucura do rei de Saul (1076 – 1004 a. C.). E até com aquele que é considerado o maior dos reis de Israel ela flertou, uma vez que se sabe que Davi (1040 – 970 a. C.), quando exilado, fingiu-se de louco para não ser morto[v]. Além do que, inúmeros imperadores romanos loucos, como Calígula (12 – 41), Nero (37 – 68) e Cômodo (161 – 192), também dão testemunho dessa proximidade.
A loucura é tão próxima aos seres humanos que Foucault (1999, p. 124) acrescenta “que todos os raciocínios humanos não passam de loucura. E quando digo todos, não excetuo os meus cálculos”. Em outra obra, ele ressalta a evidencia do “velho tema cristão[vi] segundo o qual o mundo é uma loucura aos olhos de Deus” (FOUCAULT, 1978, p. 35). E Diderot (1979, p. 110) lembra “que não há grandes inteligências sem um grão de loucura”.
A loucura, pois, na pessoa de Búzio, passeia pela praia, e livremente. Ainda neste sentido, Carpeaux (2011), em História da literatura ocidental, cita a obra de Sebastian Brant (1458 – 1521), intitulada Das Narrenschiff (1494), que descreve a “viagem de um navio cheio de loucos, que personificam todas as classes e profissões da sociedade”. Mais tarde, em sua tese de doutorado, publicada sob o título História da loucura na Idade Clássica, Foucault (1978, p. 12) irá lembrar que o Narrenschiff teve existência real:

Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era frequente particularmente na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinquenta anos que se seguiram, têm-se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais.

Ainda em relação ao solitário Búzio, é possível fazer coro, com Jean-Paul Sartre (1905-1980), que certa dose de misantropia no homem é não somente natural, mas fundamentalmente saudável. Mesmo que ele seja “um animal feito para a sociedade civil”, máxima imortalizada por Aristóteles (2002, p. 35), na Política, o filósofo francês pontua que

a misantropia tem também o seu lugar neste concerto: não passa duma dissonância necessária à harmonia do conjunto. O misantropo é homem: logo, é preciso que o humanista seja, em certa medida, misantropo. Mas é um misantropo científico, que soube dosear o seu ódio, que, se começa por odiar os homens, é apenas para, mais tarde, poder amá-los melhor (SARTRE, 1964. p. 73).

A misantropia de Búzio, portanto, tem “o seu lugar neste concerto”, que é a sua vida e a sua loucura. Na verdade, o próprio Aristóteles (2002) reconheceu que o homem faz parte das duas espécies de animais, as “gregárias” (koinonia) e as “solitárias” (monadika). Por um lado, ele precisa se unir a outros de sua espécie para alcançar a plenitude como ser; por outro, ele tende a viver de maneira esparsa. Semelhantemente, Morin (2007, p. 19, 20) identifica no ser humano dois princípios,  “um princípio de exclusão e um princípio de inclusão”. O princípio de exclusão é a fonte do egoísmo e “garante a identidade singular do indivíduo”; já o princípio de inclusão é o instinto natural de apego à pessoa próxima e “permite incluir o seu Eu num Nós (casal, família, pátria, partido)”.
Assim, é possível afirmar que a misantropia de Búzio é, de certa maneira, uma “dissonância necessária à harmonia do conjunto”. Harmonia não somente no sentido de o fazer responsável por si mesmo, mas também por ser um fator propulsor ligado à transcendência, a uma religação com o cosmo, como será abordado mais adiante. Talvez por ser solitário, Búzio seja capaz de se conectar “com a tarde”, de ter a companhia do sol “na sua cara e nos seus ombros” e de conversar com o mar, invocando a “frescura das águas” e o “brilho das estrelas”. Da mesma forma que, no passado, a fuga para lugares ermos esteve ligada à recepção de revelações e de religação com o sagrado, homens como Moisés, Buda, Maomé, Jesus, Paulo, entre tantos outros, vivenciaram essa práxis.
Os olhos pueris que viam Búzio passar pela praia também observam que ele andava “alto e direito”. Um andar alto e direito que não se importava com a mensagem que estava a passar: se era a de alguém que precisava das esmolas que das pessoas recebia, ou não. Por isso, a menina observa, muitos anos mais tarde, que o velho não suscitava pena ou compaixão. Se aplicássemos à pessoa de Búzio o pensamento de Baudrillard (1991, p. 9), presente em Simulacros e simulação, seria possível dizer que o velho transeunte não simula nem dissimula. Pois “simular é fingir ter o que não se tem”, e Búzio não finge ter feridas, braços amputados ou doenças mais graves como tinha o bando de pobres. E “dissimular é fingir não ter o que se tem”, assim como Búzio não finge não ter um andar “alto e direito” que “lembrava o mar e os pinheiros”, incapaz de despertar o sentimento de pena. Que Erasmo fale:

Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração. Sou sempre igual a mim mesma, de tal forma que, se alguns dos meus sequazes presumem não passar por tais, disfarçando-se sob a máscara e o nome de sábios, não serão eles mais do que macacos vestidos de púrpura, do que burros vestidos com pele de leão (ROTTERDAM, 2002, p. 17).

Assim, Búzio é a loucura em pessoa, tal como, nestes termos, a retratou Erasmo de Rotterdam, “o primeiro grande intelectual da Europa moderna” (CARPEAUX, 2011, p. 597).

O louco Búzio e a ética para com o próximo
Com sua melopeia como moeda de troca, alegrando aqueles que lhe ouvem, Búzio corrobora a tradição de que a loucura sempre divertiu a humanidade:

Parava em frente duma porta e entoava a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas. Abria-se a porta e aparecia uma criada de avental branco que lhe estendia um pedaço de pão e lhe dizia: — Vai-te embora, Búzio. E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio (ANDRESEN, 1991, pp. 158-59).

Muitos anos depois, a mulher madura na qual a menina da praia havia se tornado, também traz à baila uma memória de ética. Talvez agora, já com idade, ela passasse a recordar o bem que, ao mesmo tempo em que recebia as esmolas, o louco Búzio procurava infundir nas pessoas à sua volta. Talvez ela não entendesse o porquê de se sentir um pouco melhor quando ele assumia a posição “em frente duma porta” e começava a entoar “a sua longa melopeia ritmada pelo tocar das suas castanholas de conchas”. Ou, ainda, na praia, quando, escondida, observava Búzio falar com o mar, e pôde sentir a alegria que as suas “palavras brilhantes” espalhavam.
É interessante observar, outrossim, que o “bando de pobres” que ia e vinha para a cidade, religiosamente todos os sábados, apenas a essa práxis se limitava. Trazia sempre a mesma mensagem — de murmúrio, de queixas e de lamentações. E da mesma forma que surgia, da mesma forma desaparecia. Mas Búzio, não. Búzio parecia um louco ciente de que era dono de algo especial. Um algo especial com o qual poderia retribuir àqueles que lhe ajudavam com as esmolas. A sua melopeia, à entrada das portas, acompanhada das suas duas castanholas de conchas, era a moeda com a qual ele procurava espalhar harmonia, o riso ou o bem. E “fazer o bem aos outros é melhor que fazer o mal” (BAUMAN, 1997, p. 36).
Com esta práxis, Búzio parecia agir de acordo com a “regra de ouro”, como ficou conhecida a afirmação de Cristo, que diz: “tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lhe também vós a eles”[vii]. A mesma regra aparece nos Analectos de Confúcio (551 – 479 a. C.) nos seguintes termos: “não faça aos outros o que você gostaria que não fizessem a você”. A diferença é que Cristo a coloca “de uma forma positiva. Isso é algo muito diferente. Deixar de ferir é uma coisa; estender uma mão para ajudar, é outra” (EARLE; SANNER; CHILDERS, 2006, p. 68). Mas em relação a Búzio, o princípio se traduz em moeda de troca. Ele paga com um bem o outro bem que espera receber. Em troca de esmolas, ele oferece a sua melopeia ritmada.
A loucura, na verdade, sempre alegrou ou divertiu o coração dos homens. Recordando Erasmo de Rotterdam (2002, p. 14), com uma “simples presença” ela consegue “expulsar a tristeza de vossa alma”. Diderot (1713 - 1784) falava das duas espécies de homem, sábios e loucos, onde estes últimos estão no palco divertindo os primeiros, “que se dedicam a lhes copiar as loucuras”:

Na grande comédia, a comédia do mundo, aquela para a qual sempre torno, todos os homens de gênio encontram-se na plateia. Os primeiros chamam-se loucos, os segundos, que se dedicam a lhes copiar as loucuras, chamam-se sábios. É o olho do sábio que capta o ridículo de tantas personagens diversas, que o pinta, e que vos faz rir, quer desses importunos originais, de que foste vítima, quer de vós mesmos (DIDEROT, 1979, p. 361).

Os bobos da corte ou bufões eram, na maioria das vezes, além de deficientes físicos ou anões, pessoas loucas. Havendo surgido no Império Bizantino, eles divertiam os reis fazendo-se acompanhar daquelas que são consideradas as melhores sequazes da loucura: a “adulação” (kolaxia), o “esquecimento” (lethes), o “horror à fadiga” (misoponia), a “irreflexão” (ania), a “delícia” (trofis) e komos, “o riso” (ROTTERDAM, 2002). Como declarava Diderot (1979, p. 141), “só o ridículo e a loucura fazem rir”. Dai que, em Pensamentos, Pascal fala sobre a distração dos reis, analisando friamente a verdade de que “um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias”. E esclarece que é por isso que a corte cuida para que:
nunca deixe de haver junto da pessoa do rei um grande número de pessoas que velam por fazer suceder o divertimento aos seus negócios, e que observam todo o tempo do seu lazer para lhe fornecer prazeres e jogos de sorte que não haja vazio; isto é, fica cercado de pessoas que têm um cuidado maravilhoso de zelar para que o rei não fique só e em estado de pensar em si, sabendo bem que ele será miserável, por mais rei que seja, se o pensar (PASCAL, 2002).
Erasmo de Rotterdam (2002, p. 25) persiste no Elogio da loucura, dizendo que a esta os homens também devem não só a propagação do gênero humano, mas “o gérmen e o desenvolvimento da vida”, assim como “todos os bens que a vida encerra”. Nesse sentido, Otto Maria Carpeaux, analisando a relação entre literatura e loucura, chega a apontar a influência desta em muitas obras e autores. Diz, por exemplo, que “os maiores poemas de Hölderlin nasceram quando ele já estava louco” (CARPEAUX, 2011, p. 1402). Escritores como o “primeiro grande escritor finlandês”, Alexis Kivi (1834-1872), e Gogol (1809 – 1852), autor de O capote, a “obra-prima da grande literatura russa” acabaram loucos (Op., cit., p. 1580). Foucault (1978, p. 19) chega a declarar que “igualmente na literatura erudita a Loucura está em ação, no âmago mesmo da razão e da verdade. É ela que embarca indiferentemente todos os homens em sua nau insensata e os destina à vocação de uma odisseia comum”.
Por causa disso, diz a loucura, não seria “eu proclamada e venerada como a primeira das divindades, eu, que a todos, prodigamente, dispenso sozinha tantos bens” (ROTTERDAM, 2002, p. 23). “Ela governa tudo o que há de fácil, de alegre, de ligeiro no mundo. É ela que faz os homens se agitarem e gozarem” (FOUCAULT, 1978, p. 29).

O louco Búzio e a religação com o cosmo
Se a loucura de Búzio não pode ser contestada, é também incontestável a espécie de transcendência em que ele vive. Essa religação com o cosmo parece ser tão factual quanto a sua misantropia ou a sua loucura.

Ter pena dele seria como ter pena de um plátano ou de um rio, ou do vento. Nele parecia abolida a barreira que separa o homem da natureza. O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam (ANDRESEN, 1991, p. 160).

A partir do excerto acima, formula-se a hipótese de que a religação — tema recorrente na obra de Sophia Andresen — pode ser evidenciada em, pelo menos, três pontos. Primeiro, quando a narradora lembra-se da ausência de barreiras que existia entre Búzio e a natureza. Segundo, quando ela o compara a uma árvore. E terceiro, quando ela fala da sua ligação com a terra, de como “os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisava”.
Para a menina, Búzio e a natureza eram como uma e a mesma coisa. Eles estavam em perfeita integração. As barreiras que lhes impunham separação haviam sido depostas. Ele era como um “plátano”, como um “rio” ou como o “vento” porque conseguira se libertar de suas máscaras. Oliveira (2012, p. 33), ao comentar o poema andreseniano intitulado “Reza da manhã de maio”, esclarece que “a máscara é tudo o que separa, seleciona, enquadra e limita a liberdade”. Quando o ser humano se liberta dessas máscaras, ele se mantém “em sintonia com as coisas naturais” (Op. cit., 32).
Em outro trecho, essa união é mostrada na forma como Búzio chegava à praia. Observava-se que ele vinha “rodeado de luz e de vento”, ele vinha “com o sol na cara e as sombras trémulas das folhas dos plátanos nas mãos” (ANDRESEN, 1991, p. 160). Neste momento, homem e natureza eram uma só coisa, homem e natureza compartilhavam o mesmo caráter. No conto “Homero”, assim como em muitos pontos da poesia de Sophia Andresen, esse “estado de natureza” significa a harmonia do homem com o “mundo-belo-ordenado” (OLIVEIRA, 2012, p. 13), significa a volta à sintonia perdida com o cosmo.
Neste ponto, em particular, “Homero” abre margem para se fazer alusão a um tópico sucessivamente discutido por jusnaturalistas clássicos, que é o estado de natureza do homem. Autores como Locke (1632 – 1704), Hobbes (1588 – 1679) e Rousseau (1712 – 1778) apresentaram diferentes interpretações e qualidades para o conceito. Diferentemente de Hobbes, para quem o estado de natureza era uma “condição de contínua beligerância” (BRANDÃO, 2006, p. 34), este conceito, em “Homero”, parece se aproximar mais daquele sentido que foi teorizado por Locke e por Rousseau. Em Locke, o estado de natureza é

um estado, também, de igualdade, onde a reciprocidade determina todo o poder e toda a competência, ninguém tendo mais que os outros; evidentemente, seres criados da mesma espécie e da mesma condição, que, desde seu nascimento, desfrutam juntos de todas as vantagens comuns da natureza e do uso das mesmas faculdades, devem ainda ser iguais entre si, sem subordinação ou sujeição, a menos que seu senhor e amo de todos, por alguma declaração manifesta de sua vontade, tivesse destacado um acima dos outros e lhe houvesse conferido sem equívoco, por uma designação evidente e clara, os direitos de um amo e de um soberano (LOCKE, 1978, p. 65).

Em “Homero”, a “igualdade”, falada acima por Locke, se faz não entre um homem e seu semelhante, mas entre o homem e a natureza.
O estado de natureza de Búzio também se aproxima do sentido rousseauniano porque, na concepção deste filósofo suíço, um dos destaques do estado de natureza era “a virtual ausência de grupamentos humanos, ou seja, da vida em comunidade, já que esse período é marcado pelo isolamento quase completo dos indivíduos, quebrado apenas para efeitos de reprodução” (LEOPOLDI, 2002, p. 160). Búzio, da mesma maneira, vive só, longe dos “grupamentos humanos”, destes se aproximando somente para conseguir angariar suas esmolas. Em outro ponto, Sophia e Rousseau também dialogam porque de Búzio se diz que “não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio”. E nas palavras do próprio Rousseau (2002, p. 51), “o homem no estado de natureza não tem, pois, necessidade de remédios, e ainda menos de médicos; a espécie humana, a esse respeito, não está em piores condições do que todas as outras”. Também dialoga com Aristóteles (1991, p. 238), pois este, em Ética a Nicômaco, declarou que
não se pense, todavia, que o homem para ser feliz necessite de muitas ou de grandes coisas, só porque não pode ser supremamente feliz sem bens exteriores. A auto-suficiência e a ação não implicam excesso, e podemos praticar atos nobres sem sermos donos da terra e do mar. Mesmo desfrutando vantagens bastante.
Em sua misantropia, Búzio vive o “estado de natureza” rousseauniano. É o bom selvagem. Daí Sophia dizer que “a terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida”. E Oliveira (2012, p. 31) ressaltar que a obra da poeta portuguesa fazer-nos

pensar sobre a necessidade de reconhecermos nossas ações para discernir as que nos levam a um modo de vida em que voltemos a viver segundo a harmonia perfeita da natureza, ou seja, construindo e usufruindo os bens em nossa comunidade, agindo, assim, com justiça. A natureza é indiferente a nós, os injustos que negamos nosso pertencimento à ordem daquela. O poeta, porém, exige que resgatemos nosso equilíbrio.

Sua obra, pois, é um convite a esse resgate, a essa religação com o cosmo. Esse convite é feito por Búzio, o louco, fato que o põe como o detentor de uma verdade. Segundo Foucault, é esse um dos papéis do louco, o de revelar “a cada um sua verdade”:

Ele não é mais, marginalmente, a silhueta ridícula e familiar: toma lugar no centro do teatro, como o detentor da verdade — desempenhando aqui o papel complementar e inverso ao que assume a loucura nos contos e sátiras. Se a loucura conduz todos a um estado de cegueira onde todos se perdem, o louco, pelo contrário, lembra a cada um sua verdade; na comédia em que todos enganam aos outros e iludem a si próprios, ele é a comédia em segundo grau, o engano do engano. Ele pronuncia em sua linguagem de parvo, que não se parece com a da razão, as palavras racionais que fazem a comédia desatar no cômico: ele diz o amor para os enamorados, a verdade da vida aos jovens, a medíocre realidade das coisas para os orgulhosos, os insolentes e os mentirosos (FOUCAULT, 1978, p. 19).

Búzio revela, assim, a necessidade de religação com o cosmo, verdade perdida pelo ser humano.
O tema da religação é também visto na comparação de Búzio com uma árvore. Não somente no excerto apresentado como no momento em que ele desponta no horizonte da praia, a imagem da árvore é citada pela menina. Com isso, ela faz alusão à tradição judaico-cristã, por exemplo, cultura em que o homem é, de modo habitual, simbolizado pela árvore. Haja vista o que traz o livro de Jeremias[viii], quando diz que “o homem que confia no Senhor” é “como a árvore plantada junto às águas, que estende as suas raízes para o ribeiro, e não receia quando vem o calor, mas a sua folha fica verde”. Ou o Evangelho segundo São Mateus, onde certamente Jesus Cristo — que tinha o hábito de falar por meio de parábolas — se referia ao homem quando dizia “ou fazei a árvore boa, e o seu fruto bom; ou fazei a árvore má, e o seu fruto mau; porque pelo fruto se conhece a árvore”[ix].
Quando Búzio despontava na praia, primeiro julgava-se “que fosse uma árvore ou um penedo distante. Mas quando se aproximava via-se que era o Búzio”. Na verdade, o homem compartilha com a árvore um número admirável de semelhanças. Na tradição judaico-cristã, a comparação recai primeiro sobre o “fruto”, ou seja, sobre as ações humanas. Bachelard (1998, p. 74) lembra que na cultura celta, “ao nascer, o homem era consagrado ao vegetal, tinha sua árvore pessoal”. Jung (2000, p. 116) afirma que “na história do símbolo, a árvore é descrita como o caminho e o crescimento para o imutável e eterno”. E em seu Dicionário de termos bachelardianos, Ferreira (2013, p. 29) pontua que “os ser humano, como a árvore, possui raízes que o fixam às profundezas sombrias da terra e, como espírito e luz, alteia-se no ilimitado espaço azul e infinito. Vive entre a terra e o céu, entre o sensível e o inteligível”.
O ser humano, assim como a árvore tem raízes terrenas, ao mesmo tempo em que aponta para o céu, para o transcendente. Em História dos animais, Aristóteles comenta sobre essa disposição do corpo humano em relação ao universo:

No ser humano, mais do que nos outros animais, a distinção entre parte superior e inferior faz-se segundo as próprias posições naturais. Por outras palavras, as partes alta e baixa do homem são definidas de acordo com as partes alta e baixa do universo [grifos meus]. O mesmo critério se aplica às faces anterior e posterior, ou direita e esquerda. Em alguns dos restantes animais as coisas não se passam assim; faz-se a distinção, mas de forma um tanto confusa. Assim, a cabeça, em todos os animais, está acima do resto do corpo. Mas só o homem, como já dissemos, completado o seu desenvolvimento, a tem em cima em relação ao universo (ARISTÓTELES, 2006, p. 74).

Assim, em “Homero”, a comparação do louco Búzio com uma árvore é um dos pontos de destaque na procura por falar da transcendência e da necessidade de religação e de sintonia com o cosmo. Como ressalta Oliveira (2012, p. 27), para Sophia Andresen, “a vida é a busca da sintonia perfeita da natureza”. Em “Homero”, os “pés descalços” de Búzio escutavam “o chão que pisavam”. É neste momento que Búzio é visto como o louco, pois este, nas palavras de Foucault (1999, p. 65), é entendido como “desvio”, “o homem das semelhanças selvagens”, “o jogador desregrado do Mesmo e do Outro”.
O tema da transcendência, no entanto, chega ao seu clímax na ocasião em que Búzio está “sozinho” na praia, conversando com o mar. Escondida do velho louco, a menina o observa na companhia da tarde, estendendo “as suas mãos abertas” e entoando “um longo discurso claro, irracional e nebuloso”. Neste momento, suas palavras eram

palavras moduladas como um canto, palavras quase visíveis [grifos meus] que ocupavam os espaços do ar com a sua forma, a sua densidade e o seu peso. Palavras que chamavam pelas coisas, que eram o nome das coisas. Palavras brilhantes como as escamas de um peixe, palavras grandes e desertas como praias. E as suas palavras reuniam os restos dispersos da alegria da terra. Ele os invocava, os mostrava, os nomeava: vento, frescura das águas, oiro do sol, silêncio e brilho das estrelas (ANDRESEN, 1991, 164)

Em sintonia com o cosmo, Búzio se põe a emitir “palavras quase visíveis”. Como Adão[x], ele chama “pelas coisas, que eram o nome das coisas”. Suas “palavras brilhantes” conseguem reunir “os restos dispersos da alegria da terra”. É o homem em seu grau máximo de “ministro e intérprete da natureza” (BACON, 2002, p. 11). Mas é, também, a visão da loucura como miragem, como o sonho de uma presunção, pois:

a loucura tem, nesses elementos, uma força primitiva de revelação: revelação de que o onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se abre sobre uma profundeza irrecusável, e que o brilho instantâneo da imagem deixa o mundo às voltas com figuras inquietantes que se eternizam em suas noites; e revelação inversa, mas igualmente dolorosa, de que toda a realidade do mundo será reabsorvida um dia na Imagem (FOUCAULT, 1978, p. 33).

Por mais estética, pois, que possa se mostrar a religação vivida por Búzio, ela deve ser entendida a partir desta “força primitiva de revelação” apontada por Foucault.
Em todo o conto “Homero”, o Búzio chega à cidade e dela se afasta caladamente. Seu silêncio é quebrado apenas quando espalha ao redor a sua “melopeia ritmada”. Em nenhum momento é-lhe facultado diretamente a fala. Mesmo na praia, momento em que solta as suas “palavras brilhantes”, elas chegam até nós via a memória da menina. Aqui, ele é um sujeito que não-falante. Entretanto, nesta ocasião, verbalizando sobre coisas que os humanos talvez não entendam, Búzio está sendo. Nas palavras de Heidegger (2005, p. 16), “o homem é o ser que fala” e “quando terminam de falar deixam de ser”. Falar, inclusive, é a faculdade que tira o homem de entre todos os animais e o distingue como animal loquens. Como expressou Aristóteles (2002, p. 12), “a natureza, que nada faz em vão, concedeu apenas a ele o dom da palavra”.
Falando e sendo, Búzio chamava “pelas coisas”, pelo “nome das coisas”. Lançando mão do logos, ele conseguia colocar certa ordem no mundo, reunindo “os restos dispersos”, invocando, mostrando e nomeando. Mais uma vez se observa o diálogo com a tradição cristã, onde se diz que “por meio da palavra”[xi], Deus ordenou todas as coisas. Como afirma Foucault (1978, p. 40), “a sabedoria e a loucura estão muito próximas. Há apenas uma meia-volta entre uma e outra”.

Considerações Finais
Este trabalho teve como objetivo empreender um olhar sobre a loucura a partir da personagem Búzio, presente no conto “Homero”, de Sophia Andresen. Muitos fatos chamam atenção para a vida dele, tal como a característica de ser uma homenagem viva ao estilo manuelino ou, ainda, ser um louco que espalha melopeias. Todavia, o que mais se sobressai em Búzio é uma espécie de ética e de religação evidenciadas nele, temas recorrentes na obra andreseniana.
Búzio era diferente dos demais pobres e loucos que esmolavam. Ele andava sozinho e parecia agir de acordo com uma regra de troca quando retribuía com melopeia àqueles que lhe ajudavam. Sem fingimentos, tal como é a própria loucura, segundo Erasmo de Rotterdam, ele também não se importava em andar como os outros andavam. Estes espalhavam murmúrios e lamentações. Mas Búzio andava “alto e direito”.
Por último, no conto, Búzio vive tão sintonizado com uma espécie de transcendência com o cosmo que é comum confundi-lo com a própria natureza. Ora ele aparece como uma árvore, ora como um plátano ou ora como um rio. Quando para a natureza ele abre os seus braços e verbaliza com o mar, soltando palavras brilhantes que reúnem “os restos dispersos da alegria da terra”, um convite a todo ser humano está sendo enviado: a chamada à religação, à sintonia com o cosmo. Neste momento, ele se põe como aquele que lembra a cada um a sua verdade, uma das nuances do louco ou do bobo, tal como declarou Foucault.

Referências
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[i] Neste trabalho, as citações da Bíblia são tomadas da versão Almeida Revista e Corrigida, edição de 1995.
[ii]Homem de nenhum lugar” (Nowhere man) é uma canção composta por John Lennon (1940 – 1980) e lançada pelos Beatles no álbum Rubber soul no ano de 1965.
[iii] Tradução de minha autoria. Tem-se, então, no original: He’s a real nowhere man/Sitting in his nowhere land/Making all his nowhere plans for nobody/Doesn’t have a point of view/Knows not where he’s going to/Isn’t he a bit like you and me?/Nowhere man, please listen/You don’t know what you’re missing/Nowhere man, the world is at your command.
[iv] O episódio sobre a loucura do rei Saul está registrado no capítulo 22:5 e vai até o capítulo 23:14 do livro de I Samuel.
[v] A narrativa sobre o fingimento de Davi encontra-se no capítulo 21 de I Samuel, versos 13-15.
[vi] São Paulo desenvolve o tema citado por Foucault na Epístola aos Coríntios, capítulo 1:18-31.
[vii] Evangelho de São Mateus, capítulo 7:12.
[viii] Livro de Jeremias, capítulo 17:8.
[ix] Evangelho segundo São Mateus, capítulo 12:33.
[x] De acordo com a tradição judaico-cristã, registrado no Livro de Gênesis, capítulo 2:20, o Deus dos hebreus Jeová, após ter criado os animais, teria chamado Adão para os nomear.
[xi] Evangelho segundo São João, capítulo 1:3.