Sabrina
Siqueira
Jornalista
Mestranda em Estudos Literários pela UFSM
Austerlitz é a história do professor Jacques Austerlitz, que
passou a existência incomodado pela sensação de estar vivendo uma vida que não
era a sua. Os seus estudos sobre história da arquitetura na Europa o ajudam a
encontrar o fio da meada que era sua história pessoal: fora uma criança judia
nascida em Praga, cuja mãe o despachara em um comboio para ser adotado na
Inglaterra, por um casal galês, pouco antes da tomada da cidade pelas tropas
nazistas, durante a segunda guerra.
O primeiro ponto a ser ressaltado é que, diferente de Os anéis de Saturno, romance de 1995 do
escritor alemão W. G. Sebald, cuja narrativa se assemelha a relatos de viagem
de um narrador que poderia ser o alter-ego do autor, Austerlitz, publicado em 2001,
possui um enredo e clímax. A trama trata da descoberta das origens da
personagem, dúvida que sempre o inquietou, e dos relatos sobre seus
apontamentos e suas viagens feitos ao narrador, após travarem amizade em uma
estação de trem em Antuérpia, na Bélgica, na metade dos anos 60. Um narrador em
terceira pessoa conta o que ouviu, nos sucessivos encontros, do excêntrico
Austerlitz. Durante todo o romance, o que se passa são relatos do protagonista
a esse narrador curioso pela história do amigo e satisfeito em desfrutar de sua
companhia. Em nenhum momento, temos indícios de que acontece entre eles um
diálogo, de que Austerlitz é incentivado a dar continuidade a sua trama por
meio de questionamentos vindos do narrador, que exerce o papel de ouvinte.
Pelo ininterrupto da narrativa, que se assemelha ao
fluxo de consciência, e pelo súbito das aparições de Austerlitz, e ainda da
forma abrupta com que as conversas são retomadas exatamente do ponto em que
haviam parado no último encontro, pode-se inferir que Austerlitz não é uma
pessoa real, mas sim fruto da imaginação do narrador, que, através de um
personagem que surge quando ele está a sós e dispõe de tempo para reflexões,
faz uma análise de sua própria vida. O que acontece entre eles não é um
diálogo, mas um desabafo autobiográfico pontilhado de informações históricas. E
as aparições acontecem quase sempre em bares em que o narrador entra sem
nenhuma intenção pré-concebida, ou seja, são reencontros ao acaso:
Nesse primeiro reencontro, tal como em todas as
ocasiões seguintes, retomamos nossa conversa sem desperdiçar uma única palavra
sobre a improbabilidade de nosso reencontro em um local como aquele, que
nenhuma pessoa sensata teria procurado. (...) Foi muitos meses após esse
encontro em Liége que topei com Austerlitz, de novo por puro acaso, na antiga
colina do patíbulo em Bruxelas... (SEBALD, 2008, p. 32).
A narrativa se caracteriza pelo discurso indireto.
Sabemos dos relatos de Austerlitz por um narrador sempre em terceira pessoa,
embora às vezes pareça diluir-se em primeira pessoa e pareça que estamos
ouvindo a história contada pelo próprio protagonista, ou seja, por Austerlitz. Muitas
vezes, o discurso é “duplamente indireto”, quando tomamos ciência das falas dos
interlmocutores de Austerlitz e este conta exatamente o que disseram para o
narrador, que então conta ao leitor. São comuns construções frasais com o
arranjo “disse Marie, disse Austerlitz”, ou “disse Vera, disse Austerlitz”.
Assim como nosso fluxo de consciência, em que um
pensamento puxa outro, uma visão desencadeia uma lembrança, “lembranças atrás
das quais e nas quais se dissimulavam coisas que remontavam a épocas mais
antigas, umas sempre imbricadas nas outras” (Sebald, 2008, p. 137), a narrativa
de Sebald em Austerlitz se desenrola
como se fosse oriunda quase de um impulso único, sendo que as 387 páginas de
texto intercaladas por imagens possuem poucos parágrafos novos, como os das
páginas 36, 119 e 279. Bem como o encadeado de nossos pensamentos,
principalmente no período de uma caminhada que se faça a sós. As frases, às
vezes bastante longas, como a que inicia na página 229 e vai até a metade da
238, em que Austerlitz considera imperdoável ter impedido por tantos anos a
investigação de seu passado mais distante, são construídas com aproximação do
falar coloquial, ainda que sem extrapolar a norma culta, mas se aproximando ao
máximo da exatidão com que o narrador escutou.
Quando os amigos passam 20 anos distanciados, é num
momento de fragilidade do narrador, enquanto passa por “um distúrbio visual de
fundo histérico”, que Austerlitz volta a aparecer, novamente em um bar e de
forma inesperada. Parece que o protagonista surge exatamente quando o narrador
precisa de um interlocutor que o ampare. Nesse trecho, percebe-se uma passagem
irônica de Sebald ao descrever os ingleses que estavam no pub:
... eu ficara observando um bom tempo os trabalhadores
das minas de ouro da City, que se reuniam ali para os tragos de costume no
início da noite, todos parecidos entre si com seus ternos azul-escuros, camisas
listradas e gravatas chamativas, e enquanto eu tentava compreender os
misteriosos hábitos dessa espécie, que não se acha descrita em nenhum bestiário
– seu instinto de se aglomerar de forma cerrada, seu comportamento meio
gregário, meio agressivo, a maneira de exibir a garganta ao esvaziar os copos,
o burburinho cada vez mais excitado de suas vozes, a partida repentina e
apressada deste ou daquele -, percebi então subitamente, à margem da horda que
já se desfazia, uma figura solitária que não poderia ser ninguém mais senão
Austerlitz... (SEBALD, 2008, p. 43).
Ao
reparar em Austerlitz no canto do bar, pela primeira vez, o narrador vê uma
relação entre ele e o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein por causa da
mochila que o protagonista sempre carregava e porque o filósofo também tivera
uma mochila de estimação. Mas a principal semelhança entre eles está no fato de
serem os dois pensadores desconsolados, prisioneiros da clareza de suas
reflexões lógicas e da confusão de seus sentimentos. Se o protagonista é fruto
da imaginação do narrador, talvez ele tenha se inspirado nesse filósofo para
criar seu “amigo imaginário”. O narrador segue a comparação dizendo que são
tão gritantes as semelhanças entre os dois (...) em
suas vidas organizadas apenas de forma provisória, no desejo de se virar com o
mínimo possível e na incapacidade, típica de Austerlitz não menos que de
Wittgenstein, de se demorar em qualquer tipo de preliminares. E assim também
naquela noite no bar do Great Eastern Hotel, sem desperdiçar uma única palavra
sobre a pura casualidade do nosso encontro depois de tanto tempo, Austerlitz
retomou a conversa mais ou menos onde ela fora então interrompida (SEBALD,
2008, p. 45).
Ainda que inconsciente dos motivos, Austerlitz
interessa-se por arquitetura e sente certo estranhamento ao visitar
determinados fortes, prédios e lugares. Saberemos, mais adiante na narrativa,
que esse interesse é uma forma de sua mente levá-lo ao conhecimento de suas
origens e da história por trás da separação de sua família. O estranhamento
acontece, pois, quando o protagonista se depara com construções que são parte
da história da segunda grande guerra.
Em seus estudos sobre a arquitetura das estações de
trem, disse ele quando nos achávamos sentados na frente de um bistrô no Mercado
de Luvas no final da tarde, cansados de tanta caminhada, ele nunca conseguia
tirar da cabeça os pensamentos da aflição da despedida e do medo de lugares
estranhos, embora tais emoções obviamente não façam parte da história da arquitetura.
Mas talvez justamente nossos projetos mais ambiciosos traíam da forma mais
patente o grau da nossa insegurança (SEBALD, 2008, p. 18).
As caminhadas são uma
constante, tanto em Austerlitz (realizadas
pelo protagonista e seu amigo), quanto em Os
anéis de Saturno (caminhadas solitárias do narrador em primeira pessoa).
Caminhar longas distâncias a sós é uma forma de encontrar-se consigo mesmo e
refletir, colocar as ideias em ordem. Nessas duas obras de Sebald, as
caminhadas desencadeiam momentos de reflexão. Ou seria a aptidão por momentos
de reflexão e saudosismo o incentivo para pôr o indivíduo em movimento?
Alguns elementos se repetem
na narrativa e ao longo da trajetória de Austerlitz chamam sua atenção, ainda
que a princípio pareçam aleatórios. O comentário do trecho destacado acima foi
feito por Austerlitz ao amigo em frente ao Mercado de Luvas de Antuérpia. Mais
tarde, saberemos que uma certa loja de luvas em Praga fazia parte de sua
infância. Vera, a amiga da família e vizinha que tomava conta dele enquanto os
pais estavam fora, costumava levá-lo à loja da tia Otýlie, que permitia ao
pequeno Austerlitz o manuseio dos pares e lhe explicava a especificidade de
cada tipo de luva.
Eu me recordo, assim me contou Vera, disse Austerlitz,
que foi a tia Otýlie que lhe ensinou a contar aos três anos e meio de idade,
usando uma série de botõezinhos de malaquita pretos e brilhantes costurados em
uma luva de veludo de meio comprimento, da qual você particularmente gostava
(SEBALD, 2008, p. 159).
Assim, também o dodecágono em forma de estrela
aparecerá muitas outras vezes na narrativa. Em sua primeira citação, ele é lembrado
por Austerlitz para explicar ao seu interlocutor o quanto se mostram frágeis as
artimanhas mais ambiciosas para preservar nossa integridade. Ele está falando
da construção de fortalezas e fortes nesse formato, e do quanto se mostravam
inúteis ao cabo de algum tempo, pois os recursos de investidas dos inimigos
progrediam no mesmo ritmo que a complexidade das construções. Esse Mercado de
Luvas é hoje uma praça triangular, cercada de casas antigas, lojinhas e cafés,
onde outrora havia um mercado de luvas de fato. Mesmo estando em um lugar
extremamente belo, o diálogo entre Austerlitz e o narrador ouvinte não se fixa
na beleza do local, mas nas sensações que desperta naquele. Aliás, nem se pode
usar a palavra diálogo. O que acontece entre eles é mais um monólogo, já que
não ficamos sabendo de perguntas ou comentários do interlocutor, que funciona
mais como um ouvinte terapeuta, aquele que proporciona que o paciente, ao falar
e se escutar, encontre por si mesmo a causa e possível cura para seus males.
... é possível constatar que, por volta do final do
século XVII, entre os vários sistemas, o dodecágono em forma de estrela dotado
de fosso se cristalizou como planta preferida (...) de fortalezas... Na prática
da guerra, porém, nem mesmo as fortalezas em forma de estrela que por toda
parte eram construídas e aperfeiçoadas no curso do século XVIII cumpriam seu
objetivo, pois, absortos que todos estavam nesse esquema, foi negligenciado o
fato de que as maiores fortalezas também atraem naturalmente as maiores forças
inimigas, e que, quanto mais a pessoa se entrincheira, mais tem de permanecer
na defensiva (SEBALD, 2008, p. 19 e 20).
Quem estava se entrincheirando da realidade era o
próprio Austerlitz, absorto em estudos de arquitetura e adiando a pesquisa sobre
suas origens. Mas a verdade de sua vida corria até ele através dessa própria
arquitetura que o atraía, aparentemente sem nenhum sentido pessoal. Vale
lembrar que uma estrela é o símbolo do judaísmo, e que os judeus guetificados
deviam usar uma estrela no braço como identificação, durante a época nazista.
Austerlitz vive a contradição de não deixar virem a
tona certas lembranças que sabe serão dolorosas, e de se esforçar por lembrar
determinadas palavras e episódios que considera interessantes, mas esses já relacionados
a sua nova vida e às pesquisas de arquitetura.
...penso como é pouco o que logramos conservar na
memória, como tudo cai constantemente no esquecimento com cada vida que se
extingue, como o mundo por assim dizer se esvazia por si mesmo, na medida em
que as histórias ligadas a inúmeros lugares e objetos por si só incapazes de
recordação não são ouvidas, não são anotadas nem transmitidas por ninguém...
(SEBALD, 2008, p. 28). ... como eu tinha pouca prática em usar a memória e
como, em vez disso, sempre devo ter me esforçado para lembrar o menos possível
e evitar tudo aquilo que de um modo ou de outro se relacionasse à minha origem
desconhecida (idem, p. 140).
A partir do momento em que encontra Vera, em Praga,
todas as lembranças que lutou para manter no esquecimento e evitar o sofrimento
de pensar na separação brusca da família, todas essas memórias que jaziam
latentes em sua mente vem à tona imediatamente, inclusive o conhecimento da
Língua Tcheca.
No meio desse relato a própria Vera,
involuntariamente, suponho, disse Austerlitz, passara de uma língua a outra, e
eu, que nunca tive a mais remota ideia de que o tcheco significasse alguma
coisa para mim, (...) entendia agora praticamente tudo o que Vera dizia, como
um surdo que recuperou a audição graças a um milagre, e tudo o que eu queria
era fechar os olhos e escutar para sempre a torrente das suas palavras polissilábicas.
[...] Com o menor dos esforços, eu era capaz de recordar tudo... (SEBALD, 2008,
p. 157).
O
fenômeno da interferência do emocional na lembrança e desenvoltura da linguagem
já havia sido assinalado por Sebald no início da narrativa, quando o narrador,
que é alemão assim como o escritor, observa o quanto Austerlitz é fluente em Francês
e inseguro no falar Inglês, apesar de ter crescido em meio ao idioma, no País
de Gales. Talvez Austerlitz associasse o Inglês ao trauma da separação da
família, do mudar para um lugar distante, ser acolhido por um casal frio e
levado para um ambiente diferente e, por isso, impusesse a si próprio uma
barreira ao aprendizado e à desenvoltura no idioma.
... sempre fizemos uso da língua francesa, eu com
vergonhosa inépcia, Austerlitz, ao contrário, com tal perfeição formal que por
muito tempo o tomei por francês. Quando passamos ao inglês, com o qual eu
estava mais familiarizado, pude então verificar nele com muita estranheza uma
insegurança que até ali eu absolutamente não notara, expressa em ligeiros defeitos
de pronúncia e em acessos de gagueira ocasionais, durante os quais apertava com
tal força o surrado estojo de óculos que sempre trazia na mão esquerda que se
podia ver o branco dos nós dos dedos sob a pele (SEBALD, 2008, p. 35 e 36).
Nessa mesma passagem o narrador comenta que era
impossível falar com Austerlitz sobre assuntos pessoais e que somente por uma
observação feita de passagem descobre que ele exercia um cargo docente em um
instituto de história da arte, em Londres. Se até então nenhum dos dois,
narrador e protagonista, sabiam de onde o outro vinha, isso muda dentro de
poucos parágrafos e a narrativa passa a ser justamente sobre as origens de
Austerlitz e todas as implicações históricas que desencadearam os
acontecimentos marcantes em sua infância.
A partir dessa informação, o narrador passa a visitar
o escritório de Austerlitz cada vez que vai a Londres e descreve o ambiente
como uma sala atulhada, “que parecia um depósito de livros e papéis e no qual
mal havia espaço para ele próprio, que dirá para os alunos, em meio às pilhas
amontoadas no chão e nas prateleiras” (Sebald, 2008, p. 36). A descrição lembra
bastante a do escritório da professora Janine Dakyns, personagem de Os anéis de Saturno, que tinha o espaço
“atulhado por toda parte de tamanhas quantidades de anotações para as aulas,
cartas e escritos de toda sorte, que era como se a gente estivesse metido num
dilúvio de papel” (Sebald, 2002, p. 18). Austerlitz foi o primeiro mestre,
desde os tempos de escola do narrador, que conseguira fazer com que ele se
interessasse pelas disciplinas humanistas. Faz todo sentido que professores
alemães, que haviam feito carreira nos anos 30 e 40, ou seja, no período em que
a Alemanha passava pelo nazismo, profissionais que “eram ainda prisioneiros das
suas veleidades de poder”, não conseguissem despertar nos alunos interesse por
disciplinas humanistas. Um dos trabalhos apresentados por Austerlitz ao
narrador foi um estudo, “inteiramente baseado em suas próprias opiniões, sobre
a afinidade existente entre todos os edifícios”. Esses estudos obedeciam a um
impulso que o próprio Austerlitz não compreendia, “que estava ligado de algum
modo ao fascínio precoce pela ideia de uma estrutura em rede, como, por
exemplo, todo o sistema ferroviário” (Sebald, 2008, p. 37). Daí a obsessão de
Austerlitz com estações de trem. Ele costumava visitar, quase que diariamente,
uma das grandes estações de Paris, em geral a Gare du Nord e a Gare de
L’Est e não raro “ficara à mercê das mais perigosas e para ele totalmente
incompreensíveis correntes de emoção” nessas estações, que “considerava lugares
a um só tempo de felicidade e infelicidade”. No decorrer da narrativa sabemos
da importância de certas estações de trem no despertar da memória de Austerlitz
para sua infância remota.
E foi justamente em uma obra de uma estação londrina,
no Ladies’ Waiting Room da Liperpool Street, que sua memória vem à
tona de uma vez por todas, provocando-lhe um momento de epifania. Quando chegou à Inglaterra com o comboio de
crianças judias, foi naquela sala que ficou esperando pelo casal galês, há mais
de 50 anos. “... tinha a sensação, disse Austerlitz, de que a sala de espera em
cujo centro eu me achava como que deslumbrado continha todas as horas do meu
passado, todos os meus medos e desejos sempre reprimidos e sufocados” (Sebald,
2008, p. 137). Então ele “enxerga”, naquela sala agora em obras e desativada da
estação, o senhor magro, com terno escuro e colarinho de pastor e a mulher que
o acompanha. E vê também o menino que eles haviam ido buscar. Visualiza a si
próprio naquele dia fatídico de sua história pessoal, que marcaria uma ruptura
em sua memória e o início da vivência sob nova identidade, e não se
reconheceria “não fosse pela mochilinha que ele segurava abraçado no colo”
(idem, p. 138). Uma das lembranças mais fortes foi de como lhe faltaram
palavras quando foram ter com ele dois estranhos cuja Língua ele não entendia.
“Quando vi o garoto sentado no banco, tomei consciência (...) da devastação que
o abandono produzira em mim no curso de todos aqueles anos passados” (idem, p.
138).
Em uma fase de depressão, Austerlitz não conseguia
mais escrever nem sequer ler qualquer de suas anotações. Nessa fase, tinha
pavor também de escutar e falar com quem quer que fosse. Percebeu então o
quanto estava e sempre estivera isolado. Sempre fora um outsider, nunca encontrou nenhum grupo de referência, com o qual se
identificasse. Parece que o narrador é uma das poucas pessoas com quem o
protagonista se sente a vontade. Ou seria ele mesmo a consciência íntima deste
que é o narrador? “... nunca me senti parte de uma classe, de uma categoria
profissional ou de uma confissão religiosa. Entre artistas e intelectuais eu
ficava tão pouco à vontade quanto na vida burguesa, e já fazia muito tempo que
travar uma amizade pessoal estava acima das minhas forças” (Sebald, 2008, p.
127). O protagonista viveu sempre a sensação de não pertencer ao ambiente em
que crescera, com o casal galês.
Eu nunca soube quem na verdade sou. Eu cresci, começou
Austerlitz naquela noite no bar do Great Eastern Hotel, em Bala, num vilarejo
de província no País de Gales, na casa de um pastor calvinista e antigo
missionário chamado Emyr Elias, casado com uma mulher tímida de família
inglesa. (...) Ainda hoje sonho às vezes que uma das portas fechadas se abre e
eu atravesso a soleira rumo a um mundo mais amistoso, menos estranho. (SEBALD,
2008, p. 48). ... não importa o que eu pense, disse Austerlitz (...) tudo
desperta em mim uma sensação de isolamento, de ausência de chão debaixo dos pés
(idem, p. 110 e 111).
O
protagonista pensa que, em algum ponto do passado deve ter cometido algum erro
e agora vivia uma vida que não era a sua. Ele lembra a casa fria e grande
demais, com cortinas cerradas mesmo durante o dia e quartos fora de uso,
parcamente mobiliados. A penumbra da casa do pastor galês contribuiu para
Austerlitz ir perdendo as memórias que guardava de sua vida pregressa. A perda
das referências e a frieza do acolhimento dos pais adotivos foram determinantes
em suas relações futuras. Narrando o desabafo da amiga Marie sobre sua
inacessibilidade, ele lembra dela ter-lhe questionado o porquê de, durante todo
o final de semana em que viajavam juntos, ele não ter desfeito a mala e viver
apenas de sua mochila. Tentou explicar, a ela e a ele mesmo, que sempre
acreditara que o seu destino era uma vida solitária.
Austerlitz iniciara-se na fotografia enquanto estava no
colégio interno Oriel College, para o qual recebera uma bolsa de estudos. Mas o
foco de seu interesse nunca fora a figura humana. Preferia “a forma e natureza
cerrada das coisas, a curva de um corrimão, a chanfradura do arco de pedra em
um pórtico (...) sempre me pareceu inadmissível apontar a objetiva da câmera
para as pessoas” (Sebald, 2008, p. 78). Se a identificação com pessoas não era
das mais fáceis, Austerlitz não poderia dizer o mesmo sobre os animais. Embora
nunca tivesse tido um bicho de estimação, toda a narrativa é pontuada pela
observação do protagonista a animais, principalmente os voadores, como pombas e
mariposas, e também há várias referências a animais enjaulados ou a jaulas
vazias.
Aos animais são atribuídos sentimentos e tenacidade
sobre-humanos. O interesse por botânica e zoologia ficou impresso em Austerlitz
pelo tio-avô do colega de internato, o botânico Alphonso, que dispensava aos
garotos atenção paternal. “Às vezes, observando uma dessas mariposas que chegam
ao seu fim na minha casa, pergunto-me que tipo de medo ou dor elas sentem
enquanto estão perdidas” (Sebald, 2008, p. 97). Em um passeio que fez com esse
colega, Gerald, e a mãe dele, Adela, Austerlitz dá ao cão o status de um dos
membros da família do colega e lembra especificamente de sua reação ao observar
o pôr do sol. Ele conta que, na ocasião, apesar de ser irrequieto, o cão Toby
não se mexeu aos pés dos donos, mas “manteve a vista erguida, atento, para as
alturas ainda iluminadas, onde as andorinhas em grande número rodopiavam no
céu”. (idem, p. 98 e 99). E compara a aparência de Toby com a do cachorrinho
que sempre via no colo de uma garota em uma fotografia no álbum do pastor
galês, a que ele se referia como a “garota de Vyrnwy”. A família de Gerald
ocupou no coração da criança que Austerlitz fora o lugar de sua própria
família, da qual ele não mantinha nenhuma lembrança nítida na época em que
passava as férias do colégio interno com os Fitzpatrick. Via em Alphonso um pai/avô
e em Adela tinha a figura maternal que lhe faltara até então: “ela ergue a mão
livre e me alisou o cabelo tirando-o da testa, como se soubesse, com esse único
gesto, que tinha o dom de ser lembrada” (idem, p. 113).
E uma das passagens mais belas da narrativa é a que
Gerald conta para Austerlitz sobre sua casa, enquanto estão se conhecendo no
internato, e fala da saudade que sente de seus três pombos de estimação. O
colega lhe conta que costumava enviar os pombos com pessoas que iam de carro a
outros vilarejos, para que fossem soltos a distância, e que eles sempre
encontravam o caminho de casa. Mas que, em certa ocasião, o pombo branco uma
vez permaneceu fora de casa por mais tempo do que o previsto após ser
despachado para um voo teste e, só no dia seguinte, quando Gerald “já estava
prestes a perder as esperanças, que a ave retornou – a pé sobre a trilha de
cascalho, com uma asa quebrada” (Sebald, 2008, p. 80). Austerlitz comenta que
refletiu muitas vezes sobre essa história, sobre como um pássaro regressa
sozinho para casa percorrendo uma longa distância, com uma asa quebrada, “sobre
como ele foi capaz de chegar corretamente ao seu destino vencendo o terreno
íngreme e os vários obstáculos” (idem, p. 80). Também Austerlitz estava
buscando o caminho de volta para casa. Se um pássaro fragilizado fora capaz de
encontrar, talvez houvesse algum tipo de intuição ou vibração eletromagnética
que conduz os seres para os seus lares e que também o colocasse no rumo certo,
cedo ou tarde.
Reencontrar o
caminho de volta ao lar, voltar às origens, é o tema central do romance e
aparece mais uma vez metaforizado na bravura dos pombos no trecho que introduz
a história da morte de Gerald em um acidente em que pilotava seu Cessna sobre
os Alpes da Savóia. O interesse pelos pombos imprimira no amigo de Austerlitz a
paixão por voar e ele chegou a dedicar intermináveis horas de estudo a elaborar
um sistema ornitológico cujo principal critério taxionômico era o grau de
aptidão para o voo, e no qual os pombos sempre ocupavam o vértice. Sobre a ave,
dizia para Austerlitz,
enquanto durarem as suas forças, ele encontrará
infalivelmente o caminho de volta para casa. Até hoje ninguém sabe como esses
animais, enviados em missão num vazio tão ameaçador, cujos corações com certeza
quase se rompem de medo com o pressentimento das distâncias enormes que têm de
vencer, são capazes de rumar direto para o seu local de origem (SEBALD, 2008,
p. 115).
E
cita para Austerlitz que as explicações científicas para tal fenômeno de
orientação giravam em torno de orientação pelas estrelas, correntes de ar ou
pelos campos magnéticos, mas que ele próprio, Gerald, então aos 12 anos, tinha
diversas teorias que julgava mais possíveis. Austerlitz pensa que o acidente
com o amigo que sonhava voar e descobrir o mistério dos pombos estava fadado a
acontecer, e diz que no dia feio em que recebeu a notícia da morte foi talvez o
começo de seu próprio declínio, de um recolhimento em si mesmo que se tornou
cada vez mais mórbido. Gerald fora como um pássaro guia que levou Austerlitz
para o aconchego de um lar, o seu próprio, na infância.
Outro motivo de observação ao longo da narrativa são
as referências quanto à relatividade do tempo. A primeira delas ocorre quando o
protagonista e o narrador estão no observatório astronômico de Greenwich,
quando Austerlitz afirma que o tempo “era de todas as nossas invenções de longe
a mais artificial” (Sebald, 2008, p. 102) e que ele próprio nunca tivera um
relógio, algo que sempre lhe pareceu ridículo, talvez porque sempre resistira
ao poder do tempo
em virtude de um impulso interno que eu mesmo nunca
entendi, excluindo-me dos chamados acontecimentos atuais, na esperança (...) de
que o tempo não passasse, não tivesse passado, de que eu pudesse me virar e
correr atrás dele, de que lá tudo fosse como antes... (SEBALD, 2008, p. 104).
Para Austerlitz havia momentos sem começo nem fim e que, por outro lado, toda
sua vida lhe parecia às vezes um ponto cego sem duração... (idem, p. 119).
A
voracidade do tempo transcorrido causava em Austerlitz um constante puxão
interno, uma espécie de amargura. “Damos quase todos os passos decisivos na
nossa vida à força de um impulso interior obscuro” (Sebald, 2008, p. 135). Sentia
como se o tempo não existisse, em absoluto, e como se nunca tivera tido lugar
na realidade, como se não estivesse presente. “...a corrente do tempo se
retarda no campo gravitacional das coisas esquecidas” (idem, p. 250).
Austerlitz
deixara Praga aos quatro anos e meio de idade, nos meses que precederam a
eclosão da segunda guerra mundial, em um dos muitos comboios de crianças que
partiam da cidade. Quando encontrou Vera e soube de suas origens, ocupou-se em
seguir as possíveis pistas dos últimos paradeiros, primeiro da mãe, ainda em
Praga, depois do pai, em Paris. Mas ele segue angustiado mesmo depois de saber
de seu passado. A devastação era tamanha que mesmo saber a verdade não torna a
vida melhor de repente.
De pouco me adiantava, claro, que eu tivesse
descoberto as fontes do meu desassossego, que eu fosse capaz, após todos
aqueles anos, de me ver com perfeita clareza como a criança afastada de um dia
para o outro da vida que lhe era familiar: a razão nada podia com a sensação de
rejeição e aniquilamento que eu sempre reprimira (SEBALD, 2008, p. 224).
Considerações finais
Em Os anéis de
Saturno, o narrador fala de uma “ação de limpeza étnica” efetuada pelos
croatas, com concordância dos alemães, na Bósnia, durante a segunda guerra. A
ação consistiu em assassinar homens, mulheres e algumas crianças. Outras
crianças foram enviadas para a Croácia em comboios, para serem adotadas por
famílias católicas.
Das crianças que sobraram, vinte e três mil ao todo, a
milícia assassinou metade no local e reuniu a outra metade em diversos pontos
para ser enviada à Croácia, e antes mesmo que os trens de transporte de gado
chegassem à capital croata, muitas delas morreram de tifo, exaustão e terror.
Das que ainda estavam vivas, muitas haviam comido por fome o cartãozinho de
papelão com dados pessoais que traziam no pescoço e assim, no auge do
desespero, haviam apagado seu próprio nome. Mais tarde foram educadas como
católicas em famílias croatas, enviadas à confissão e primeira comunhão. Como
todas as demais, também elas aprenderam a tabuada socialista na escola,
escolheram uma profissão, tornaram-se ferroviários, vendedoras, serralheiros ou
contadores. Mas ninguém sabe que lembranças ainda hoje assombram suas mentes
(SEBALD, 2002, p. 108).
Em Austerlitz,
Sebald trabalha ficcionalmente a possibilidade de que tenham havido comboios
oriundos também de outros países, mas destinados a salvar crianças das etnias
perseguidas pelo nazismo. Ele coloca uma lupa sobre a história de uma dessas
crianças, de nacionalidade tcheca, enviada pela mãe para adoção na Inglaterra, que
cresceu com um terrível desconforto e incapacidade de adaptação. São memórias
de Austerlitz: “... só então eu soube com absoluta certeza que esses fragmentos
de memória também eram parte da minha própria vida. (...) Eu simplesmente me
via à espera de um cais, em uma longa fila de crianças alinhadas de duas, a
maioria com mochilas ou sacos de viagem” (SEBALD, 2008, p. 142).
Trata-se da história de uma vítima do nazismo contada
por um narrador alemão, cujo criador é um escritor também germânico. Uma
história sobre esquecer e lembrar. E sobre até que ponto o que não é lembrado
foi de fato apagado de nossa memória e coração. Não é uma história que paira na
superfície, mas um romance que merece, pelo menos, mais uma releitura.
Referências Bibliográficas
SEBALD,
W. G. Austerlitz. Tradução José
Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Os anéis de Saturno. Tradução Lya
Luft. Rio de Janeiro: Record, 2002.