OS GRAUS TEMPORAIS COMO ELEMENTO MIMÉTICO EM 'VIDAS SECAS'


GALENI, Luís Alfredo Paduanelli
Graduado em história pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), mestrando pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Resumo
O trabalho embasa-se na perspectiva do crítico literário alemão Erich Auerbach (1892 – 1957), em especial de sua obra Mimesis (1946), em relação ao romance Vidas Secas (1938) do alagoano Graciliano Ramos (1892 – 1953), onde o caráter mimético, ou seja, verossimilhança entre o representado e o representante, é perceptível no que diz respeito ao cotidiano do sertanejo retratado. A representação das personagens é verossímil na medida em que o narrador traduz o pensamento daquelas, a partir dos elementos linguísticos próprios aos nordestinos que vivem nesse cenário, e os colocam descoladas do tempo histórico e suas variantes que imperam além da caatinga. Ao tratar a temporalidade intratextual em graus distintos e variando conforme variam a apreensão das personagens em seu mundo, retratando-os em seu cotidiano, desde da chegada à fazedenda e depois a fuga da seca e um possível descolamento para a cidade grande, evidencia-se o elemento mimético e verossímil que Auerbach enfatizou.
Palavras-chave
Tempo; Vidas Secas; Auerbach; representação.

Abstract
The work has underlies the perspective of the German literary critic Erich Auerbach (1892 - 1957), especially his work Mimesis (1946), in relation to the novel Vidas Secas (1938) of alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), where the mimetic character, in the other words, likelihood between the principal and the agent shall be perceptible with regard to everyday portrayed sertanejo. The representation of the characters is believable in that the narrator translates the thought of them, from its own linguistic elements to Northeastern living in this scenario, and put detached from historical time and its variants that prevail beyond the caatinga. Just in treating intratextual temporality in varying degrees and varying according to vary the seizure of the characters in his world, portraying them in their daily lives, from arrival to farm and then flee drought and a possible detachment to the big city, gives work mimetic and believable element Auerbach emphasized.
Keywords
Time; Vidas Secas; Auerbach; representation.


Auerbach parte da noção mimética próxima da concepção aristotélica, ou seja, mimesis como verossimilhança entre o representado e o representante, associada à composição técnica e artística[1]. Assim, em Auerbach, mimesis terá uma definição espacial e temporal entre os estilos, onde o estilo é o modelo de representação traduzido na linguagem historicizada, aquilo que gera a representação da realidade, uma forma histórica da condição humana, e esta condição que é compreendida no transcurso histórico, repousa sobre as obras literárias, exprimindo como os homens - figuras não-transcendentes ou fixas – se viam e como viam o mundo. Sua busca não visa à universalidade, afinal seu movimento é historicista e, seus valores não são transcendentes, pois seu repousar é histórico.
Mimesis, ao dar conta do percurso literário, desde a Odisséia e o Antigo Testamento até Proust, Joyce e Woolf, expressa a alteração do nível da consciência estilistica concomitantemente com a alteração do nível de compreensão histórica, alterando-se. Dessa forma, aquilo que não é posto na obra tem sua ausência explicada devido à delimitação histórica. Auerbach constata a mudança dos estilos, condicionados pela mudança da consciência e, assim, uma transformação na literatura. Nota-se que não se trata de um realismo com sentido do real em si, mas sim de uma realidade próxima de como o mundo se dá no cotidiano. Vale lembrar que, para Auerbach, negar o cotidiano seria negar a dimensão histórica. O cotidiano para ele se configura como elemento importante, pois é o lugar onde os homens históricos repousam, onde manifestam sua condição humana, assim o conhecimento está inextricavelmente enraizado no presente do sujeito cognoscente e é através do esforço desse conhecimento que se pode acessar outras épocas e outros povos.[2]
Quando aproximamos Auerbach e sua perspectiva da obra Vidas Secas, fica latente caráter realista da obra do brasileiro Graciliano Ramos. Primeiramente observamos as ausências extratextuais dos multifacetados tempos, em especial, o histórico. Esse tipo de descolamento social e temporal atribui o apreendimento realista do cotidiano das personagens retratadas. O que Fabiano e sua família teriam de ver com a dinâmica das parcerias econômicas do Brasil no cenário nacional? (FAUSTO et al, 2007, p. 18). A resposta é: tudo e nada. Nos Estados Unidos, o reaquecimento dos setores industriais e da construção civil resgata paulatinamente a America do Norte da crise de 1929; na Europa, o espectro fascista estende seus tentáculos tencionando a vida dos homens, o clima torna-se tencionado. Fabiano e sua família são figuras veladas à totalidade da década de 1930. Podemos ate dizer que são fragmentos dispersos.
O descolamento das personagens não é, em sua integridade, esvaziado de uma crítica ou problematização, pois há a retratação do cotidiano do sertanejo de forma séria. A suspensão desse tempo histórico do pobre nordestino do agreste, em contraste com a dinâmica econômica do sul do país, que configura outra temporalidade, diferente da primeira, não significa que haja o descolamento da História, pelo contrário. Estes marginais do sistema econômico tornam-se suspensos a esse grau de temporalidade – a da materialidade monetária –, pois há algo imperando em seu próprio meio, um tempo que diz respeito a eles. Por estarem às margens do tempo próprio das trocas econômicas, estão paradoxalmente tanto alijados do frenesi do tempo que se torna, em determinadas circunstancias, cosmopolita, como simultaneamente estão relacionados (por serem marginais), graças esforço crítico de Graciliano Ramos.[3]
Sua privação se dá em uma variante do tempo: o tempo histórico, aquilo que diz respeito aos acontecimentos extratextuais e próprio ao mundo de fora da caatinga, pois, como ja dito, os graus de tempo da trama são outros. O enfoque recai, então ao elemento mimético através da discussão do tempo.

1)      Mudança e Fuga

Na abertura do livro deparamo-nos, com o primeiro capítulo denominado pelo substantivo feminino mudança, cujo sentido é capcioso. Que mudança é essa? Quais fatores imperam sobre essa mudança? A quem vai servir essa mudança? A mudança primordial é a climática que reordena esse mundo estático de Fabiano, sinha Vitória, menino mais velho, menino mais novo e da cadela Baleia.
A mudança da família para a fazenda, e depois a mudança natural com as chuvas, são, em si, transformações significativas. Mas, ao passo da narrativa, nota-se uma espécie de falsa-mudança, pois trata-se de uma mudança que não deixa ondulações que podem ser percebidas à distância. Essa falsa mudança não é a do tipo que anularia o poder da mutação, pois não há como negar que ocorra o câmbio da fortuna das personagens, mas a fortuna é, em verdade, uma aporia, já que ao mesmo tempo que é significativa e garante a peripécia da trama, também a leva para o ponto inicial da miséria e da seca. Os eventos repetem-se, tudo muda para permanecer o mesmo.[4] É a transformação perversa, que apenas reordena, rearranja-as dentro de um quadro que permanece limitado de possibilidade devido ao caráter estático do tempo, que compõe a obra. É a mudança que reconforta esses vultos da caatinga, mas esta condicionada a retornar ao final do livro, arremessando-os de volta ao ponto de onde os conhecemos.
A descoberta da felicidade vem acompanhada de sonhos que soam absurdos. Essa mesma felicidade ocorre dentro dos limites da trama. É uma mudança na medida que se segue a lógica intratextual da vida e do momento histórico (estarem alijados do tempo histórico e do mundo das trocas econômicas é uma manifestação historicista) dos que vivem ali: obtenção do preá, do lugar para hospedar-se, uma sombra, um pouco de água salobre e a expectativa de uma vida melhor com o primeiro sinal de mudança. Mudar-se-a, realmente, mas superficial e aparente, já que os desconforto não cessa e a seca ainda se faz presente. Em suma, o tempo histórico suspenso e o elemento estático da vida das personagens continuam.
No adiantamento dos capítulos, notamos uma certa viragem em relação ao início da desventura que pode confundir, dando caráter real para essa mudança. “Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse realmente mudança.” (RAMOS, 1980, p. 117). Fabiano está deixando a fazenda e quer negar a possibilidade da seca voltar, embora saiba muito bem que ela está predestinada a retornar. Recusava aceitar o retorno da seca brava. “A verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito, nem acreditava nela.” RAMOS, 1980, p. 117). Pois, observemos melhor. A mudança existe, há a alteração das estações, deslocamento das personagens no cenário, transformação da fortuna das personagens, tudo isso há de fato. Mas observemos bem, uma mudança substancial, que lhes arranca de qualquer entrelaçamento cíclico, colocando-os em outro nível de grau temporal que não os condicionados por um passado que retorna em forma de estiagem e um futuro que há de tornar-se novamente seca, entalados, alijados do tempo histórico, suspensos em seu próprio meio, a esse nível de mudança realmente não há. “Seria necessário mudar-se? Apesa de saber perfeitamente que era necessário […]” (RAMOS, 1980, p. 112). O tempo natural e cíclico que devasta a planície, seca o mundo do sertanejo é onipotente e não poupa nada, nem seu Tomás da bolandeira que sabia ler.
Hannah Arendt (2013, p. 37) afirma que

Do ponto de vista do homem, que vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro, o tempo não é um contínuo, um fluxo de ininterrupta sucessão; é partido ao meio, no ponto onde ‘ele’ está; e a posição ‘dele’ não é o presente, na sua acepção usual, mas, antes uma lacuna no tempo, cuja existência é conservada gracas à ‘sua’ luta constante, à ‘sua’ tomada de posição contra o passado e o futuro.

Pois na obra “Vidas Secas” não há esse correspondente, ainda mais tratando-se do tempo que se manifesta no psicológico das personagens. Embora elas transitem entre uma bruma de esquecimento, talvez até proposital para espantar o sofrimento que advém sempre que surge diante deles a lembrança da seca pretérita, sabem que o fim do clico do tempo natural das estações, a seca volta, como já dito e diante disso, eles não tem muita tomada de posição diante da natureza, a não ser voltarem a caminhar sem rumo. Existem em torpor.. O presente é um passado repetindo-se e um futuro também por seguir o mesmo caminho. O tempo deste é muito próprio, pois não há um futuro propriamente dito, nem um passado – é uma suspensão que, quando bambeia, é reordenada. São figuras que desejam um presente-contínuo, à partir do breve instante onde a fortuna lhes agrada, afinal, quando esse presente em que estão inseridos, fadado a tornar-se passado, em prol de um futuro que tornar-se-á presente, sabem que a seca, elemento presente com grande intensidade em suas vidas, inevitavelmente trará privações, sede e fome.
Surge daí a confusão entre o passado e o futuro, ou melhor, uma vontade que irrompe das personagens, “falou no passado, confundiu-o com o futuro. Não poderia voltar a ser o que já tinham sido? […] viver como tinham vivido, numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás” (RAMOS, 1980, p. 119-112).
Assim, no capítulo final denominado Fuga, as personagens dão conta do circuito problemático em que vivem e suas mudanças geográficas, percebem a transitoriedade circular, movimentos dispersos, apenas vagueando, com esperança de sobreviver. Surge uma nova perspectiva, “talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.”. E continua (RAMOS, 1980, p. 112)

Porque haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos? Fabiano respondeu que não podiam.
– O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – e marchavam, meio confiados, meio inquietos.

Essa paulatina tomada de consciência de sua condição, da imensidão do mundo – limitado ao que lhes tocava o cognoscível –, apesar de estarem a margem da amplidão dos vastos e variados acontecimentos do além da caatinga, em certo sentido figuravam algo maior do que podiam tocar. O que não sabiam era como toda a amplidão funcionava. Imaginavam esse outro “lugar” grande, na medida que suas imaginações permitiam. “Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.” (RAMOS, 1980, p. 122). Essa é uma outra postura, diversa da assumida algumas paginas antes: “desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.” (RAMOS, 1980, p. 98). Mas vale notar que tudo não passa de uma ambição, nada que lhes é garantido – a única coisa que é certa, em toda obra, é que o tempo natural da seca retornará.
Em outra cena, ainda composta no capítulo final Fuga, há outro nivel da variante do grau do tempo na obra. Temos Fabiano observando as arribações, e seu pensamento é traduzido pelo narrador nos seguintes termos (RAMOS, 1980, p. 112)

Se não fossem eles [as arribações], a seca não existiria. Pelo menos não existiria naquele momento: Viria depois, seria mais curta. Assim, começava logo – e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela já tivesse chegado, experimentava adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas.

Há algo de não refletido ao devir da seca. Fabiano faz um esforço para tentar apreender seu mundo, absorvendo o que pode e a transmuta para sua lógica. Atribui culpa às aves pela seca, sem estas, suas desgraças não existiriam. Depois hesita, reconsidera, mas não exclui sua premissa, apenas ameniza seu juízo, a seca parecia ser onipotente, ela viria, estava fadada por seu futuro do pretérito, porém reapareceria com uma certa brevidade, se comparada as outras que lhe afligiram, com um tempo menos agressivo. Entretanto, tudo esvai tão rápido, logo sente que ela, a seca, mesmo longe já o alcançou. Isso se dá pelo fato de muito provavelmente ter feito várias retiradas como essa no passado. Ele conhecia empiricamente as atribulações provenientes dessas migrações pela caatinga. Aqui há vários graus de temporalidade confluindo, uma temporalidade outrora cíclica que anula-se de imediato, depois transmuta-se em algo suspenso, algo que não haveria naquele exato momento – uma suspensão em devir e não uma do tipo indefinido. Em seguido vira algo inevitável mas apaziguado – seria breve – ao fim ela, embora ainda como promessa de um futuro do pretérito, já pode ser sentida, é um futuro que se confunde com o próprio presente.
Os graus de tempo intratextuais são sempre díspares, pois transitam desordenadamente mas sempre dentro de um regime de possibilidades, e essas possibilidades são frutos desses mesmos graus de tempo. Trata-se da mudança que não se concretiza, pois está descolada do tempo histórico, entretanto reage ao tempo natural que a reordena dentro das possibilidades.

2)      Narrativa

Primeiramente devemos iniciar com a seguinte idéia: interrogar o tempo é interrogar o narrador. Pois prossigamos a partir daqui.
O ambiente e o percurso das personagens é cognoscível. O elemento mimético perseguido aparece com força na manifestação da linguagem empregada no romance pois, ao retratar a problemática cotidiana de Fabiano e sua família, recorre-se à linguagem corrente desses indivíduos que estão a ser representados, assim atribui-se realismo e nexo entre poesia e forma social.
As personagens mal falam, mas o narrador traduz seus pensamentos, transcende a capacidade dos próprios personagens de articularem-se e o faz atendo-se ao vocabulário próprio do nordestino da caatinga.
A utilização do estilo mais próximo do oral não compromete a representação da obra, na verdade parece reforçá-lo. O seu estilo reside na composição dos tempos – desde da suspensão do tempo histórico, passando pelos diferentes graus intratextuais, até o cenário e condição humana estáticos.
As personagens de Graciliano Ramos não possuem sentido transcendental, não estão na ordem de uma antevisão ou antecipação de algo. Estão a existir nos pormenores da sobrevivência, em seu próprio tempo. E ai que o narrador torna-se fundamental, pois pela trama possuir a um grau temporal próprio, onde uma percepção totalizante da história e seu tempo não conseguem atingir o ambiente que Graciliano Ramos teceu. É preciso então a narrativa dar conta dos graus temporais, como já elucidado anteriormente.
Estes falam pouco, emitem sons que o narrador traduz como guturais, o humano e o natural ficam ao mesmo patamar, sem nisso fazer das personagens caricaturas, rebaixando-as. Reparem na cadela Baleia, ela é revestida de certa humanidade, humanidade mesma que na primeira cena do livro vemos, pela circunstância do momento, Fabiano perder. Deseja matar o filho “Anda, condenado do diabo” depois insiste “Anda, excomungado”, o narrador nos assombra de imediato, “Fabiano desejou matá-lo”. Desejava fazê-lo não por uma moralidade torpe, ou por estar esvaziado do ser, mas a fome e a seca é grande – “Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça”  Seu estado de espírito só é recomposto quando sente o corpo frio do filho. “Ai a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.”
Em outro momento temos a seguinte passagem (RAMOS, 1980, p. 33)

Estirou as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho. Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem não ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar-se de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão isso.

Novamente temos o narrador tentando reordenar a situação, rearranjar o tempo do despropósito, Fabiano era incapaz de assimilar o que lhe ocorrera. O tempo incute aqui algo precioso: não dera a Fabiano a possibilidade de assimilar o ocorrido no momento da prisão. Só é possível perceber pois o narrador o traduz o ocorrido de uma forma que Fabiano não conseguiria fazer, afinal em Fabiano não havia consciência do sucedido.
O tempo em parceria com o soldado amarelo e seus pares privaram-lhe da sincronia entre a reflexão racional – se é que Fabiano a tem em sincronia dos homens da cidade – e o tempo da contenda. Ao fim, já perdido de qualquer simultaneidade, Fabiano conclui que era um engano, não poderia ser outra coisa senão isso.
Em seguida há a virada “então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pantacada nele?” Já não parece mais ter mal entendido, e mesmo acostumado, zangava-se. Novamente temos os pensamentos confusos, onde Fabiano não parece ter muita certeza do que imagina, que só se vem a tornarem-se cognoscíveis pela ordenação do narrador: “Pois não estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaça. Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe dessem tempo, contaria o que se passara.” (RAMOS, 1980, p. 35). Esse é um grau temporal diferente que pode dissolver as confusões. Um tempo esperançoso, pois como Fabiano poderia dizer o que havia ocorrido se nem ele mesmo sabia muito ao certo. E mesmo se possível dizê-lo, as palavras sempre lhe faltaram. Assim podemos dizer que esse tempo de que o privaram, onde o mal entendido poderia ser esclarecido, não passa de uma ilusão, um grau temporal equivalente a uma falsa consciência que não habita o mesmo mundo de um real concreto.
Como já apontado, há uma limitação de mundo, parece nada ocorrer para além da vasta caatinga, o tempo em que está acontecendo a narrativa não seria o tempo das mudanças exteriores do mundo moderno, há a mudança paradoxal. Esse ponto nos diz muito, pois as dimensões da mudança das personagens na obra estão de acordo com a falta de expectativa dos socialmente excluídos, condicionados pela seca.
Fabiano é acometido por pensamentos de morte, entretanto esse pensamento é interrompido, anulando seu desejo de morrer. O pensamento que interrompe seu desejo de morrer é devido sua vontade de “correr mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da bolandeira”. Dessa forma tem-se com mais nitidez esse limite de mundo – o referencial de importância é esse homem letrado, que todos respeitam, que saiu fugido da seca, é o máximo que Fabiano consegue apreender da relevância de um homem. E isso se dá pela sua situação, ele não sabe e não emite nenhum juízo para além do que sua capacidade cognitiva pode apreender de seu mundo. E nem o narrador que traduz a rudeza dessa família nada acrescenta que não diga respeito às personagens, não intromete-se ou comenta.
No início do livro por si só é dramático, mas atentamo-nos com uma em especial, uma que beira o grotesco, onde sinha Vitoria lambe o focinho de Baleia. (RAMOS, 1980, p. 14). Essa espécie de rebaixamento, que pode ser sentido em outros momentos do texto, se dá com a intenção de mostrar a dramaticidade, uma situação limite em que essas vidas estão a acontecer.
A cena citada anteriormente é um aglomerado de situações lamentáveis de miséria humana, fruto da situação social e geográfica. Representa-se dessa maneira sinha Vitória ao nível de Baleia, uma espécie de decadência, não do tipo desproposital, pois justamente demonstra-se a condição humana desses viventes: a fome era tanta que não poderia perder se quer o sangue do focinho da cadela. Podemos observar, que esse rebaixamento também ocorre com Fabiano, quando este transmuta-se não ao nível animal, mas de coisa: “[…] Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira de seu Tomás. […] Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê, mas era.” (RAMOS, 1980, p. 14-15).
São homens de um cenário estático, que quando estão em movimento, é um movimento condicionado que os leva ao mesmo lugar.

Considerações finais

“Vidas Secas” é sem dúvida uma das obras mais belas, intrigantes e significativas da nossa literatura. Os graus temporais, a tradução do narrador e mimesis do nordestino do sertão, tendo sua condição humana e seu cotidiano retratado, em forma de crítica e denúncia social, são construções refinadas. Os limites da ação de Fabiano, sinha Vitória, menino mais novo, menino mais velho e a cadela Baleia, recaem nos três pilares assinalados: o tempo intratextual que lhes arrebatam, confundem e os movem; a suspensão do tempo histórico que os alija e os colocam alheios ao mundo; o tempo natural cíclico que deixa tudo estático; tudo entrelaçando o cotidiano destes e suas ações.

Referências Bibliográficas

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ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo, Perspectiva. 2013. [1954].

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Edson Bini. edição. São Paulo: EDIPRO, 2014.

AUERBACH, Erich. Mimésis: A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. edição. São Paulo: PERSPECTIVA, 2013.

FAUSTO, Boris, et al. História Geral da Civilização Brasileira: economia e cultura. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. v. 11. t. 3.

GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. 2. ed. Rio de Janeiro: IMAGO, 2005.

______. Lembrar, escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo: 34, 2014.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro. Contraponto, 2012.

RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45. ed. São Paulo: Record. 1980.




[1] Aristoteles trata como imitação ou mimesis todas as artes que representam ou retratam as pessoas em ação e isso tem algo de natural no homem, pois para Aristoteles o ser humano é propenso à imitação, e é essa imitação que se experimenta o prazer e desenvolve os primeiros conhecimentos. ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Edson Bini. edição. São Paulo: EDIPRO, 2014.
[2] Uma boa apresentação de Mimesis pode ser lida em WAIZBORT, Leopoldo. Erich Auerbach e a condição humana. In: ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang (orgs). Pensamento alemão no século XX. São Paulo: COSAC NAIFY, 2012. v. 2. pp. 125-154.
[3] Notemos que Graciliano não foi o primeiro na literatura a representar os problemas do nordeste. José Américo de Almeida (1928) dá os primeiros passos para a crítica da situação insalubre do nordestino. “Ainda não se fizera a Revolução de 30, mas a conjuntura econômica incerta, as carências da população, mormente na area da seca, o cangaço, a hipertrofia dos latifúndios, o coronelismo opressor, enfim, o marginalismo de consideráveis parcelas da população corria a fixar-se na literature de protesto, de denúncia, sem os requintes de expressão do passado recente.” FAUSTO, Boris, et al. História Geral da Civilização Brasileira: economia e cultura. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. v. 11. t. 3. p. 538.
[4] Embora Koselleck esteja se referindo ao tempo da história, sua passagem é elucidativa. “A capacidade de repetição dos eventos, seja por meio de uma suposta identidade entre eles, seja quando o termo se refere ao retorno de determinadas constelações de fatos, ou ainda por meio de uma relação tipológica e/ou figurativa entre os eventos.” KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro. Contraponto, 2012. p. 121.