GALENI, Luís Alfredo Paduanelli
Graduado em história pela Universidade Estadual
Paulista (UNESP), mestrando pelo programa de pós-graduação em História da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Resumo
O trabalho
embasa-se na perspectiva do crítico literário alemão Erich Auerbach (1892 –
1957), em especial de sua obra Mimesis (1946), em relação ao romance Vidas Secas (1938) do alagoano
Graciliano Ramos (1892 – 1953), onde o caráter mimético, ou seja, verossimilhança entre o representado e o
representante, é perceptível no que diz respeito ao cotidiano do sertanejo
retratado. A representação das personagens é verossímil na medida em que o
narrador traduz o pensamento daquelas, a partir dos elementos linguísticos
próprios aos nordestinos que vivem nesse cenário, e os colocam descoladas do
tempo histórico e suas variantes que imperam além da caatinga. Ao tratar a
temporalidade intratextual em graus distintos e variando conforme variam a
apreensão das personagens em seu mundo, retratando-os em seu cotidiano, desde
da chegada à fazedenda e depois a fuga da seca e um possível descolamento para
a cidade grande, evidencia-se o elemento mimético e verossímil que Auerbach
enfatizou.
Palavras-chave
Tempo; Vidas
Secas; Auerbach; representação.
Abstract
The work has
underlies the perspective of the German literary critic Erich Auerbach (1892 -
1957), especially his work Mimesis (1946), in relation to the novel Vidas Secas
(1938) of alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), where the mimetic character, in
the other words, likelihood between the principal and the agent shall be perceptible
with regard to everyday portrayed sertanejo. The representation of the
characters is believable in that the narrator translates the thought of them,
from its own linguistic elements to Northeastern living in this scenario, and
put detached from historical time and its variants that prevail beyond the caatinga.
Just in treating intratextual temporality in varying degrees and varying
according to vary the seizure of the characters in his world, portraying them
in their daily lives, from arrival to farm and then flee drought and a possible
detachment to the big city, gives work mimetic and believable element Auerbach
emphasized.
Keywords
Time; Vidas
Secas; Auerbach; representation.
Auerbach parte da noção mimética próxima da concepção
aristotélica, ou seja, mimesis como verossimilhança entre o representado e o
representante, associada à composição técnica e artística[1].
Assim, em Auerbach, mimesis terá uma
definição espacial e temporal entre os estilos, onde o estilo é o modelo de
representação traduzido na linguagem historicizada, aquilo que gera a
representação da realidade, uma forma histórica da condição humana, e esta
condição que é compreendida no transcurso histórico, repousa sobre as obras
literárias, exprimindo como os homens - figuras não-transcendentes ou fixas – se
viam e como viam o mundo. Sua busca não visa à universalidade, afinal seu
movimento é historicista e, seus valores não são transcendentes, pois seu repousar
é histórico.
Mimesis,
ao dar conta do percurso literário, desde a Odisséia e
o Antigo Testamento até Proust, Joyce e Woolf, expressa a alteração do nível da
consciência estilistica concomitantemente com a alteração do nível de compreensão
histórica, alterando-se. Dessa forma, aquilo que não é posto na obra tem sua
ausência explicada devido à delimitação histórica. Auerbach constata a mudança
dos estilos, condicionados pela mudança da consciência e, assim, uma
transformação na literatura. Nota-se que não se trata de um realismo com
sentido do real em si, mas sim de uma realidade próxima de como o mundo se dá
no cotidiano. Vale lembrar que, para Auerbach, negar o cotidiano seria negar a dimensão
histórica. O cotidiano para ele se configura como elemento importante, pois é o
lugar onde os homens históricos repousam, onde manifestam sua condição humana,
assim o conhecimento está inextricavelmente enraizado no presente do sujeito
cognoscente e é através do esforço desse conhecimento que se pode acessar
outras épocas e outros povos.[2]
Quando aproximamos Auerbach e sua perspectiva da obra Vidas Secas, fica latente caráter realista
da obra do brasileiro Graciliano Ramos. Primeiramente observamos as ausências extratextuais
dos multifacetados tempos, em especial, o histórico. Esse tipo de descolamento
social e temporal atribui o apreendimento realista do cotidiano das personagens
retratadas. O que Fabiano e sua família teriam de ver com a dinâmica das parcerias
econômicas do Brasil no cenário nacional? (FAUSTO et al, 2007, p. 18). A
resposta é: tudo e nada. Nos Estados Unidos, o reaquecimento dos setores
industriais e da construção civil resgata paulatinamente a America do Norte da
crise de 1929; na Europa, o espectro fascista estende seus tentáculos tencionando
a vida dos homens, o clima torna-se tencionado. Fabiano e sua família são
figuras veladas à totalidade da década de 1930. Podemos ate dizer que são
fragmentos dispersos.
O descolamento das personagens não é, em sua
integridade, esvaziado de uma crítica ou problematização, pois há a retratação
do cotidiano do sertanejo de forma séria. A suspensão desse tempo histórico do
pobre nordestino do agreste, em contraste com a dinâmica econômica do sul do país,
que configura outra temporalidade, diferente da primeira, não significa que
haja o descolamento da História, pelo contrário. Estes marginais do sistema
econômico tornam-se suspensos a esse grau
de temporalidade – a da materialidade monetária –, pois há algo imperando em seu próprio meio, um tempo que diz respeito a eles. Por estarem às margens do tempo
próprio das trocas econômicas, estão paradoxalmente tanto alijados do frenesi
do tempo que se torna, em determinadas circunstancias, cosmopolita, como simultaneamente estão relacionados (por serem marginais), graças esforço crítico de Graciliano Ramos.[3]
Sua privação se dá em uma variante do tempo: o tempo
histórico, aquilo que diz respeito aos acontecimentos extratextuais e próprio
ao mundo de fora da caatinga, pois, como ja dito, os graus de tempo da trama são outros. O enfoque recai, então ao
elemento mimético através da discussão do tempo.
1)
Mudança e Fuga
Na abertura do livro deparamo-nos, com o primeiro
capítulo denominado pelo substantivo feminino mudança, cujo sentido é capcioso. Que mudança é essa? Quais
fatores imperam sobre essa mudança? A quem vai servir essa mudança? A mudança
primordial é a climática que reordena esse mundo estático de Fabiano, sinha
Vitória, menino mais velho, menino mais novo e da cadela Baleia.
A mudança da família para a fazenda, e depois a
mudança natural com as chuvas, são, em si, transformações significativas. Mas,
ao passo da narrativa, nota-se uma espécie de falsa-mudança, pois trata-se de
uma mudança que não deixa ondulações que podem ser percebidas à distância. Essa
falsa mudança não é a do tipo que anularia o poder da mutação, pois não há como
negar que ocorra o câmbio da fortuna das personagens, mas a fortuna é, em
verdade, uma aporia, já que ao mesmo tempo que é significativa e garante a
peripécia da trama, também a leva para o ponto inicial da miséria e da seca. Os
eventos repetem-se, tudo muda para permanecer o mesmo.[4]
É a transformação perversa, que apenas reordena, rearranja-as dentro de um
quadro que permanece limitado de possibilidade devido ao caráter estático do
tempo, que compõe a obra. É a mudança que reconforta esses vultos da caatinga, mas
esta condicionada a retornar ao final do livro, arremessando-os de volta ao
ponto de onde os conhecemos.
A descoberta da felicidade vem acompanhada de sonhos
que soam absurdos. Essa mesma felicidade ocorre dentro dos limites da trama. É
uma mudança na medida que se segue a lógica intratextual da vida e do momento
histórico (estarem alijados do tempo histórico e do mundo das trocas econômicas
é uma manifestação historicista) dos que vivem ali: obtenção do preá, do lugar
para hospedar-se, uma sombra, um pouco de água salobre e a expectativa de uma
vida melhor com o primeiro sinal de mudança.
Mudar-se-a, realmente, mas superficial e aparente, já que os desconforto não
cessa e a seca ainda se faz presente. Em suma, o tempo histórico suspenso e o
elemento estático da vida das personagens continuam.
No adiantamento dos capítulos, notamos uma certa viragem
em relação ao início da desventura que pode confundir, dando caráter real para
essa mudança. “Fizeram alto. E Fabiano depôs no chão parte da carga, olhou o
céu, as mãos em pala na testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo
fosse realmente mudança.” (RAMOS, 1980, p. 117). Fabiano está deixando a
fazenda e quer negar a possibilidade da seca voltar, embora saiba muito bem que
ela está predestinada a retornar. Recusava aceitar o retorno da seca brava. “A
verdade é que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe sem jeito,
nem acreditava nela.” RAMOS, 1980, p. 117). Pois, observemos melhor. A mudança
existe, há a alteração das estações, deslocamento das personagens no cenário,
transformação da fortuna das personagens, tudo isso há de fato. Mas observemos
bem, uma mudança substancial, que lhes arranca de qualquer entrelaçamento
cíclico, colocando-os em outro nível de grau temporal que não os condicionados
por um passado que retorna em forma de estiagem e um futuro que há de tornar-se
novamente seca, entalados, alijados do tempo histórico, suspensos em seu próprio
meio, a esse nível de mudança realmente não há. “Seria necessário mudar-se?
Apesa de saber perfeitamente que era necessário […]” (RAMOS, 1980, p. 112). O
tempo natural e cíclico que devasta a planície, seca o mundo do sertanejo é
onipotente e não poupa nada, nem seu Tomás da bolandeira que sabia ler.
Hannah Arendt (2013, p. 37) afirma que
Do ponto
de vista do homem, que vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro, o
tempo não é um contínuo, um fluxo de ininterrupta sucessão; é partido ao meio,
no ponto onde ‘ele’ está; e a posição ‘dele’ não é o presente, na sua acepção
usual, mas, antes uma lacuna no tempo, cuja existência é conservada gracas à
‘sua’ luta constante, à ‘sua’ tomada de posição contra o passado e o futuro.
Pois na obra “Vidas Secas” não há esse correspondente,
ainda mais tratando-se do tempo que se manifesta no psicológico das
personagens. Embora elas transitem entre uma bruma de esquecimento, talvez até proposital para espantar o sofrimento que advém sempre que surge diante deles a
lembrança da seca pretérita, sabem que o fim do clico do tempo natural das
estações, a seca volta, como já dito e diante disso, eles não tem muita tomada
de posição diante da natureza, a não ser voltarem a caminhar sem rumo. Existem
em torpor.. O presente é um passado repetindo-se e um futuro também por seguir
o mesmo caminho. O tempo deste é muito próprio, pois não há um futuro
propriamente dito, nem um passado – é uma suspensão que, quando bambeia, é
reordenada. São figuras que desejam um presente-contínuo, à partir do breve
instante onde a fortuna lhes agrada, afinal, quando esse presente em que estão
inseridos, fadado a tornar-se passado, em prol de um futuro que tornar-se-á
presente, sabem que a seca, elemento presente com grande intensidade em suas
vidas, inevitavelmente trará privações, sede e fome.
Surge daí a confusão entre o passado e o futuro, ou melhor,
uma vontade que irrompe das personagens, “falou no passado, confundiu-o com o
futuro. Não poderia voltar a ser o que já tinham sido? […] viver como tinham
vivido, numa casinha protegida pela bolandeira de seu Tomás” (RAMOS, 1980, p.
119-112).
Assim, no capítulo final denominado Fuga, as personagens dão conta do circuito
problemático em que vivem e suas mudanças geográficas, percebem a transitoriedade
circular, movimentos dispersos, apenas vagueando, com esperança de sobreviver. Surge
uma nova perspectiva, “talvez esse lugar para onde iam fosse melhor que os
outros onde tinham estado.”. E continua (RAMOS, 1980, p. 112)
Porque
haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato como bichos? Com certeza
existiam no mundo coisas extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos?
Fabiano respondeu que não podiam.
– O mundo
é grande.
Realmente
para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era grande – e marchavam, meio
confiados, meio inquietos.
Essa paulatina
tomada de consciência de sua condição, da imensidão do mundo – limitado ao que
lhes tocava o cognoscível –, apesar de estarem a margem da amplidão dos vastos
e variados acontecimentos do além da caatinga, em certo sentido figuravam algo
maior do que podiam tocar. O que não sabiam era como toda a amplidão funcionava.
Imaginavam esse outro “lugar” grande, na medida que suas imaginações permitiam.
“Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes diferentes.” (RAMOS, 1980, p.
122). Essa é uma outra postura, diversa da assumida algumas paginas antes:
“desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer nada.
Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia, enquanto o deixassem ficar.
Depois sairia pelo mundo, iria morrer de fome na catinga seca.” (RAMOS, 1980,
p. 98). Mas vale notar que tudo não passa de uma ambição, nada que lhes é
garantido – a única coisa que é certa, em toda obra, é que o tempo natural da
seca retornará.
Em outra cena, ainda composta no capítulo final Fuga, há outro nivel da variante do grau do tempo na obra. Temos Fabiano
observando as arribações, e seu pensamento é traduzido pelo narrador nos
seguintes termos (RAMOS, 1980, p. 112)
Se não
fossem eles [as arribações], a seca não existiria. Pelo menos não existiria
naquele momento: Viria depois, seria mais curta. Assim, começava logo – e
Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a como se ela já tivesse chegado,
experimentava adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas.
Há algo de não refletido ao devir da seca. Fabiano faz
um esforço para tentar apreender seu mundo, absorvendo o que pode e a transmuta
para sua lógica. Atribui culpa às aves pela seca, sem estas, suas desgraças não
existiriam. Depois hesita, reconsidera, mas não exclui sua premissa, apenas
ameniza seu juízo, a seca parecia ser onipotente, ela viria, estava fadada por
seu futuro do pretérito, porém reapareceria com uma certa brevidade, se
comparada as outras que lhe afligiram, com um tempo menos agressivo.
Entretanto, tudo esvai tão rápido, logo sente que ela, a seca, mesmo longe já o
alcançou. Isso se dá pelo fato de muito provavelmente ter feito várias
retiradas como essa no passado. Ele conhecia empiricamente as atribulações
provenientes dessas migrações pela caatinga. Aqui há vários graus de
temporalidade confluindo, uma temporalidade outrora cíclica que anula-se de imediato, depois transmuta-se em algo suspenso, algo que não haveria naquele
exato momento – uma suspensão em devir e não uma do tipo indefinido. Em seguido
vira algo inevitável mas apaziguado – seria breve – ao fim ela, embora ainda
como promessa de um futuro do pretérito, já pode ser sentida, é um futuro que se
confunde com o próprio presente.
Os graus de tempo intratextuais são sempre díspares,
pois transitam desordenadamente mas sempre dentro de um regime de
possibilidades, e essas possibilidades são frutos desses mesmos graus de tempo.
Trata-se da mudança que não se concretiza, pois está descolada do tempo histórico,
entretanto reage ao tempo natural que a reordena dentro das possibilidades.
2) Narrativa
Primeiramente devemos iniciar com a seguinte idéia:
interrogar o tempo é interrogar o narrador. Pois prossigamos a partir daqui.
O ambiente e o percurso das personagens é cognoscível.
O elemento mimético perseguido aparece com força na manifestação da linguagem
empregada no romance pois, ao retratar a problemática cotidiana de Fabiano e
sua família, recorre-se à linguagem corrente desses indivíduos que estão a ser
representados, assim atribui-se realismo e nexo entre poesia e forma social.
As personagens mal falam, mas o narrador traduz seus
pensamentos, transcende a capacidade dos próprios personagens de articularem-se
e o faz atendo-se ao vocabulário próprio do nordestino da caatinga.
A utilização do estilo mais próximo do oral não
compromete a representação da obra, na verdade parece reforçá-lo. O seu estilo
reside na composição dos tempos – desde da suspensão do tempo histórico,
passando pelos diferentes graus intratextuais, até o cenário e condição humana
estáticos.
As personagens de Graciliano Ramos não possuem sentido
transcendental, não estão na ordem de uma antevisão ou antecipação de algo.
Estão a existir nos pormenores da sobrevivência, em seu próprio tempo. E ai que
o narrador torna-se fundamental, pois pela trama possuir a um grau temporal
próprio, onde uma percepção totalizante da história e seu tempo não conseguem
atingir o ambiente que Graciliano Ramos teceu. É preciso então a narrativa dar
conta dos graus temporais, como já elucidado anteriormente.
Estes falam pouco, emitem sons que o narrador traduz
como guturais, o humano e o natural ficam ao mesmo patamar, sem nisso fazer das
personagens caricaturas, rebaixando-as. Reparem na cadela Baleia, ela é
revestida de certa humanidade, humanidade mesma que na primeira cena do livro
vemos, pela circunstância do momento, Fabiano perder. Deseja matar o filho
“Anda, condenado do diabo” depois insiste “Anda, excomungado”, o narrador nos
assombra de imediato, “Fabiano desejou matá-lo”. Desejava fazê-lo não por uma
moralidade torpe, ou por estar esvaziado do ser, mas a fome e a seca é grande –
“Tinha o coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua desgraça” Seu estado de espírito só é recomposto quando
sente o corpo frio do filho. “Ai a cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar o anjinho aos bichos do mato.”
Em outro momento temos a seguinte passagem (RAMOS,
1980, p. 33)
Estirou
as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se lhe tivessem dado tempo, ele
teria explicado tudo direitinho. Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem não
ficaria azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitar-se de que a
malvadez tivesse sido para ele. Havia engano, provavelmente o amarelo o confundira
com outro. Não era senão isso.
Novamente temos o narrador tentando reordenar a
situação, rearranjar o tempo do despropósito, Fabiano era incapaz de assimilar
o que lhe ocorrera. O tempo incute aqui algo precioso: não dera a Fabiano a
possibilidade de assimilar o ocorrido no momento da prisão. Só é possível perceber
pois o narrador o traduz o ocorrido de uma forma que Fabiano não conseguiria
fazer, afinal em Fabiano não havia consciência do sucedido.
O tempo em parceria com o soldado amarelo e seus pares
privaram-lhe da sincronia entre a reflexão racional – se é que Fabiano a tem em
sincronia dos homens da cidade – e o tempo da contenda. Ao fim, já perdido de
qualquer simultaneidade, Fabiano conclui que era um engano, não poderia ser
outra coisa senão isso.
Em seguida há a virada “então porque um sem-vergonha
desordeiro se arrelia, bota-se um cabra na cadeia, dá-se pantacada nele?” Já
não parece mais ter mal entendido, e mesmo acostumado, zangava-se. Novamente
temos os pensamentos confusos, onde Fabiano não parece ter muita certeza do que
imagina, que só se vem a tornarem-se cognoscíveis pela ordenação do narrador:
“Pois não estava misturando as pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da
cachaça. Não era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe
dessem tempo, contaria o que se passara.” (RAMOS, 1980, p. 35). Esse é um grau
temporal diferente que pode dissolver as confusões. Um tempo esperançoso, pois
como Fabiano poderia dizer o que havia ocorrido se nem ele mesmo sabia muito ao
certo. E mesmo se possível dizê-lo, as palavras sempre lhe faltaram. Assim
podemos dizer que esse tempo de que o privaram, onde o mal entendido poderia
ser esclarecido, não passa de uma ilusão, um grau temporal equivalente a uma
falsa consciência que não habita o mesmo mundo de um real concreto.
Como já apontado, há uma limitação de mundo, parece
nada ocorrer para além da vasta caatinga, o tempo em que está acontecendo a narrativa
não seria o tempo das mudanças exteriores do mundo moderno, há a mudança
paradoxal. Esse ponto nos diz muito, pois as dimensões da mudança das
personagens na obra estão de acordo com a falta de expectativa dos socialmente
excluídos, condicionados pela seca.
Fabiano é acometido por pensamentos de morte,
entretanto esse pensamento é interrompido, anulando seu desejo de morrer. O
pensamento que interrompe seu desejo de morrer é devido sua vontade de “correr
mundo, ver terras, conhecer gente importante como seu Tomás da bolandeira”.
Dessa forma tem-se com mais nitidez esse limite de mundo – o referencial de
importância é esse homem letrado, que todos respeitam, que saiu fugido da seca,
é o máximo que Fabiano consegue apreender da relevância de um homem. E isso se
dá pela sua situação, ele não sabe e não emite nenhum juízo para além do que
sua capacidade cognitiva pode apreender de seu mundo. E nem o narrador que
traduz a rudeza dessa família nada acrescenta que não diga respeito às
personagens, não intromete-se ou comenta.
No início do livro por si só é dramático, mas
atentamo-nos com uma em especial, uma que beira o grotesco, onde sinha Vitoria
lambe o focinho de Baleia. (RAMOS, 1980, p. 14). Essa espécie de rebaixamento,
que pode ser sentido em outros momentos do texto, se dá com a intenção de mostrar
a dramaticidade, uma situação limite em que essas vidas estão a acontecer.
A cena citada anteriormente é um aglomerado de situações
lamentáveis de miséria humana, fruto da situação social e geográfica. Representa-se
dessa maneira sinha Vitória ao nível de Baleia, uma espécie de decadência, não
do tipo desproposital, pois justamente demonstra-se a condição humana desses
viventes: a fome era tanta que não poderia perder se quer o sangue do focinho
da cadela. Podemos observar, que esse rebaixamento também ocorre com Fabiano, quando
este transmuta-se não ao nível animal, mas de coisa: “[…] Pensou na família, sentiu fome. Caminhando,
movia-se como uma coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira
de seu Tomás. […] Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava
parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia porquê, mas era.”
(RAMOS, 1980, p. 14-15).
São homens de um cenário estático, que quando estão em
movimento, é um movimento condicionado que os leva ao mesmo lugar.
Considerações
finais
“Vidas Secas” é sem dúvida uma das obras mais belas,
intrigantes e significativas da nossa literatura. Os graus temporais, a
tradução do narrador e mimesis do nordestino do sertão, tendo sua condição
humana e seu cotidiano retratado, em forma de crítica e denúncia social, são
construções refinadas. Os limites da ação de Fabiano, sinha Vitória, menino
mais novo, menino mais velho e a cadela Baleia, recaem nos três pilares
assinalados: o tempo intratextual que lhes arrebatam, confundem e os movem; a
suspensão do tempo histórico que os alija e os colocam alheios ao mundo; o
tempo natural cíclico que deixa tudo estático; tudo entrelaçando o cotidiano
destes e suas ações.
Referências
Bibliográficas
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Paulo: COSAC NAIFY, 2012. v. 2.
ARENDT, Hannah. Entre
o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa. 7. ed. São Paulo,
Perspectiva. 2013. [1954].
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Poética. Tradução de Edson Bini. 1ª edição. São
Paulo: EDIPRO, 2014.
AUERBACH, Erich. Mimésis:
A Representação da Realidade na Literatura Ocidental. 6ª edição. São Paulo: PERSPECTIVA, 2013.
FAUSTO, Boris, et al. História Geral da Civilização Brasileira: economia e cultura. 4.
ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 2007. v. 11. t. 3.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Sete aulas sobre linguagem, memória e história. 2. ed. Rio de
Janeiro: IMAGO, 2005.
______. Lembrar,
escrever, esquecer. 2. ed. São Paulo: 34, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro.
Contraponto, 2012.
RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 45. ed. São Paulo: Record. 1980.
[1] Aristoteles trata como imitação ou
mimesis todas as artes que representam ou retratam as pessoas em ação e
isso tem algo de natural no homem, pois para Aristoteles o ser humano é propenso
à imitação, e é essa imitação que se experimenta o prazer e desenvolve os
primeiros conhecimentos. ARISTÓTELES. Poética.
Tradução de Edson Bini. 1ª edição. São Paulo: EDIPRO, 2014.
[2] Uma boa apresentação de Mimesis
pode ser lida em WAIZBORT, Leopoldo. Erich
Auerbach e a condição humana. In: ALMEIDA, Jorge de; BADER, Wolfgang
(orgs). Pensamento alemão no século XX.
São Paulo: COSAC NAIFY, 2012. v. 2. pp. 125-154.
[3] Notemos que Graciliano não foi o primeiro na literatura a representar
os problemas do nordeste. José Américo de Almeida (1928) dá os primeiros passos
para a crítica da situação insalubre do nordestino. “Ainda não se fizera a
Revolução de 30, mas a conjuntura econômica incerta, as carências da população,
mormente na area da seca, o cangaço, a hipertrofia dos latifúndios, o coronelismo
opressor, enfim, o marginalismo de consideráveis parcelas da população corria a
fixar-se na literature de protesto, de denúncia, sem os requintes de expressão
do passado recente.” FAUSTO, Boris, et al. História
Geral da Civilização Brasileira: economia e cultura. 4. ed. Rio de Janeiro:
Bertrand, 2007. v. 11. t. 3. p. 538.
[4] Embora Koselleck esteja se referindo ao tempo da história, sua passagem
é elucidativa. “A capacidade de repetição dos eventos, seja por meio de uma
suposta identidade entre eles, seja quando o termo se refere ao retorno de
determinadas constelações de fatos, ou ainda por meio de uma relação tipológica
e/ou figurativa entre os eventos.” KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos.
Tradução Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro.
Contraponto, 2012. p. 121.