O PODER SOBERANO IN FACIEM DO CORPO POR MEIO DA TORTURA E DO SUPLÍCIO NO DIREITO PENAL DE OUTRORA: UMA RESENHA DE 'DOS DELITOS E DAS PENAS', DE CESARE BECCARIA



Tayson Ribeiro Teles
Mestrando em Letras: Linguagem e Identidade
e concluinte do Curso de Direito, ambos cursos da Universidade
 Federal do Acre (UFAC)

Resumo: O presente trabalho tem o desiderato de erigir uma análise da temática “tortura” impregnada na obra Dos delitos e Das penas, de Cesare Beccaria. Além do que, a análise buscará estabelecer uma relação desta obra com outra, Vigiar e Punir, do autor Michel Foucault, que também perquire abordagem à prática de tortura na mesma época narrada por Beccaria. Desse modus, o texto, basicamente, mostrará como a prática de tortura se modificou ao longo do tempo, tendo o soberano absolutista imposto seu poder in faciem do corpo dos servos por meio da tortura e do suplício. No que atine à metodologia de pesquisa, optou-se pela tipologia da fonte de pesquisa bibliográfica e pelo método indutivo. Basicamente, a discussão proposta é pertinente a saber como Beccaria aborda a questão da tortura no direito penal absolutista.
Palavras-chave: Análise. Dos delitos e das penas, de Cesare Beccaria. Tortura

Resumo: This work is the desideratum to erect a thematic analysis of the "torture" steeped in the work of criminal offenses and penalties, Cesare Beccaria of. In addition, the analysis will seek to establish a relationship of this work with another, Discipline and Punish, the author Michel Foucault, who also makes approach to the practice of torture at the same time told by Beccaria. This modus, the text basically show how the practice of torture has changed over time, with the sovereign absolutist tax its power in faciem body of servants through torture and torment. About research methodology, we opted for the type of literature source and the inductive method. Basically, the proposed discussion is relevant to know how Beccaria addresses the issue of torture in absolute criminal law.
Keywords: Analysis. Of criminal offenses and penalties, Cesare Beccaria, Torture


Introdução
O presente trabalho tem o desiderato de erigir uma análise da temática “tortura” impregnada na obra Dos delitos e Das penas, de Cesare Beccaria, autor nascido em 1738, em Milão, na Itália. Além do que, a análise buscará estabelecer uma relação desta obra com outra, Vigiar e Punir, do autor Michel Foucault, que também produz abordagem à prática de tortura, na mesma época narrada por Beccaria. Desse modo, o texto, basicamente, mostrará como a prática de tortura se modificou ao longo do tempo e como se estabeleceu nos entremeios das relações de poder.
As leis, forma coercitiva de regular a conduta humana dentro de um contexto social, nascem da necessidade de regular comportamento dentro de um grupo social. Isto pressupõe que os indivíduos deste grupo social abriram mão de parte de sua liberdade natural em função do bem comum coletivo e, além disso, que depositaram a administração de sua liberdade a um ente - o soberano do povo. O que ocorre pelo que se chama de “contrato social”, tido por Hobbes como sendo o instituto obliterador do “Estado de Natureza”.
Como gestor das liberdades de seu povo o soberano necessita de mecanismos de controle voltados àqueles que descumpram as normas previstas no “contrato social”, que legitima o soberano. É desta necessidade que nasce o direito (e dever) de punir. Contudo, a história mostra que os soberanos do povo passaram a usurpar o poder que lhes fora concedido para satisfazer vontades de uma minoria e também como mecanismo de perpetuação no poder. Assim, o ato de punir tornou-se cada vez mais “severo”, perdendo o caráter de punição e adquirindo status de vingança social, com exposição pública dos condenados, penas de suplícios e torturas, como forma de descobrir a “verdade” em julgamentos, e tantas outras condutas rudes.
No que se refere às fontes de pesquisa, o presente estudo foi desenvolvido preconizando-se a tipologia da fonte bibliográfica, tendo se efetuado cotejo e cruzamento entre pensamentos de vários autores especialistas na área. Optou-se por este método de estudo, pois, como primam Bastos e Keller (1997), neste tipo de pesquisa exploratória, baseada na leitura dados secundários de livros ou outros tipos de documentação escrita (artigos, periódicos, dissertações, teses etc.), é factível obter-se subsídios para a interpretação e compreensão de um fenômeno ou responder a perguntas de pesquisa.
Quanto ao procedimento de pesquisa, basicamente o método utilizado foi o indutivo. Escolheu-se agir assim, porquanto, como dizem Lakatos e Marconi (2011), a indução é um processo intelectivo em que, partindo de dados particulares, suficientemente constatados, infere-se uma verdade geral ou universalizável, não integrante dos fragmentos analisados.

Referencial Teórico
O processo histórico do ato de punir abre-nos diversos focos de análise, porém nesta resenha a abordagem recai sobre a tortura, tendo como marco histórico a obra de Cesare Beccaria Dos delitos e Das penas, escrita no século XVIII, obra esta considerada um dos marcos do movimento humanista. Neste intento, leva-se em conta a acepção de tortura como elemento inquisitorial, usada nos interrogatórios como forma de descobrir a “verdade” que era guardada mentalmente por criminosos habitantes das épocas reais.
Em sua obra Beccaria retrata as práticas de seu tempo, refletindo sobre a falta de fundamentos jurídicos das práticas punitivas de sua época. Assim, para aprofundar a análise desta ideia de Beccaria, estabelecer-se-á uma relação de seus pensamentos com a obra de Michel Foucault Vigiar e Punir, que também aborda estas práticas punitivas, porém com intuito de apontar características destas nas sociedades modernas.
Perscrutando Beccaria no limiar da prática dos suplícios físicos, o século XVIII, é necessário apreender sua obra como “discurso insurgente” que representou uma nova forma do pensar jurídico. Dessa forma, o autor é uma voz que se lança ao público e modifica parte substancial do pensamento que veio após sua morte.

Beccaria e a Tortura
A tortura ou ato de atormentar física ou psicologicamente uma pessoa, quase sempre com a finalidade de extrair alguma informação ou confissão acerca do cometimento de um crime, possui, ao longo do tempo, amplo histórico de uso nas sociedades humanas, sobretudo por se tratar de um instrumento com estrita relação e coadunação a sistemas totalitários. Todavia, tendo em vista a atual tendência de universalização de sistemas democráticos, a tortura institucionalizada ou consentida pelo Poder Estatal torna-se cada vez mais obsoleta.
Sempre houve e ainda há quem defenda a elucidação de um crime fazendo-se uso da tortura, uma vez que o esclarecimento de um delito nem sempre é tarefa fácil, principalmente tendo em vista que o criminoso, geralmente, sempre nega veementemente a autoria delitiva, além de erigir todos os esforços factíveis para que o crime fique oculto.
Em uma análise preliminar e perfunctória pode-se afirmar que a tortura é o meio mais fácil e direto de se obter uma confissão de um crime, contudo, é notório que a veracidade desta confissão é extremamente questionável, porquanto o acusado pode confessar para livrar-se dos castigos corpóreos. Neste sentido, Beccaria (2011) assevera que o criminoso robusto pode evitar uma pena longa e rigorosa, resistindo com força aos tormentos de um instante e guardando o silêncio que irá absolvê-lo. Mas, em relação ao homem fraco, a tortura extrai uma inventiva confissão pela qual ele se livra da dor presente, que acarretará no cumprimento de uma longa pena.
Ademais, Beccaria (2011) assevera, também, que a tortura é muitas vezes um meio seguro de condenar o inocente fraco e de absolver o culpado robusto ou que de dois homens, igualmente inocentes ou igualmente culpados, aquele que for mais corajoso e mais robusto será absolvido.
Neste contexto, é mister frisar que em se tratando do uso da tortura, o inocente sempre se achará numa posição pior que a do culpado, senão se vê que, mesmo se por um lado fosse estimadamente aceitável o culpado ser torturado, partindo do pressuposto de que a tortura já faria parte da punição referente ao crime cometido, por outro lado é inadmissível um inocente ser torturado. Ora, um suspeito não pode ser considerado culpado, porquanto no início do processo não há subsídios necessários para distinguir o culpado do inocente, e o uso da tortura invariavelmente acarretará na punição do inocente ou até mesmo sua condenação.
Assim, Beccaria (2011) certifica que toda ação violenta faz desaparecer as pequenas diferenças dos movimentos pelos quais se distingue, às vezes, a verdade da mentira. Deste modo, observa-se que a tortura enquanto instrumento de investigação criminal é inútil, por trazer resultados imprecisos, além de ser moralmente reprovável.

Foucault e o Suplício
Para a versão digitalizada do dicionário Aurélio/Editora Positivo (2010), “suplício, consiste em dura punição corporal imposta por sentença, coisa que aflige muito, tortura”. Porém, para Foucault, “o suplício é uma técnica e não deve ser equiparado ao extremo de uma raiva sem lei” (Foucault, 1987, p.34).
Consigna Foucault (1987) que o suplício não é simplesmente a externalização descontrolada de um sentimento odioso (não é apenas tortura), porquanto para ser aplicado deve obedecer alguns preceitos essenciais, objetivando produzir além de quantidade considerável de sofrimento do corpo, temor aos que o assistem.
Na obra Vigiar e Punir, o autor, de um modo lato, nos trás uma espécie de “história das práticas punitivas”, observando que durante muito tempo a tortura, que denomina suplício, justamente pelo sofrimento que causa à pessoa, foi uma prática comum, legitimada pelo Estado, por meio de seu corpo jurídico formal, os juízes, e que servia também como forma de afirmação do poder soberano.
Propala o autor que as pessoas sofriam as condenações diante do povo, com um duplo objetivo: demonstração do poder do soberano sobre a população e também para aterrorizá-la. Para ele o suplício baseia-se na arte quantitativa dos sofrimentos, sendo ele uma forma de punir os corpos usando meios bem regulados e meticulosamente planejados. O suplício procura equacionar, equilibrar o ferimento físico aplicado ao supliciado e a gravidade do crime cometido.
Foucault (1987) vai mostrar que essas formas, esse poder soberano de imprimir sofrimento ao corpo, avançam até o fim do século XVIII, chegando-se, a posteriori a uma nova maneira de punir, que carrega em si mesma o caráter normativo da lei. Assim, a punição do corpo que acontecia por meio dos suplícios, vai-se acabando. Com a gradativa diminuição dos suplícios tem-se o crescimento de uma nova forma de lidar com os julgamentos, as penas que os juízes passam a aplicar perdem o caráter meramente punitivo, de causar sofrimento ao corpo, transformando-se em meios para se educar, para que se faça a correção do indivíduo transgressor.
Essa nova visão de julgamento e de aplicação das penas tira dos magistrados o vil papel de castigadores. Tem-se agora que a relação castigo-corpo não é mais a mesma existente nos suplícios. “O castigo passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos” (Foucault, 1987, p.16).
A promoção da morte cruel e perversa realizada perante o povo passa a ser considerada “como uma fornalha que acende a violência” (Foucault, 1987, p.15). O intuito do soberano de fazer valer a lei e amedrontar aqueles que presenciam os suplícios se esvazia, entra em processo de decomposição, quando o povo se revolta contra esse execrável teatro punitivo.
Introduz-se a partir daí um novo olhar ao ato de punir, pois “a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime e não mais o abominável teatro” (Foucault, 1987, p.15). Em consonância com esse cenário de práticas, a voz de Beccaria é um componente de contestação que surge e que influencia em sua época.

Tortura e Suplício
Considerando a exposição dos pensamentos de Beccaria e Foucault, em colocações pontuais, busca-se agora uma relação entre os dois autores, no sentido de explorar a relevância do tema para a presente resenha dos pensamentos de Beccaria sobre a tortura. Os dois autores, cada um à sua maneira, abordam o tema da tortura, seja numa concepção essencialmente física, como se vê em Beccaria, ou numa concepção físico-mental, abordagem privilegiada por Michel Foucault.
Pode-se iniciar o raciocínio a partir do pensamento de Beccaria, que se inscreve numa ideia de “contestação de uma época”. Se em seu século a prática da tortura é uma barbárie consagrada pelo uso dos soberanos, que com castigos físicos buscam a verdade dos fatos criminais, pautada no poder absoluto; essa é a mesma época a que se reporta Foucault, em sua busca por estabelecer um “estudo dos mecanismos punitivos”, os quais vigoram severamente durante todo o século XVIII e início do XIX e se metamorfoseiam chegando de alguma forma aos nossos tempos (ou será que as más condições de presídios públicos não são tortura? Bem como, será que a polícia não pratica mais violência contra acusados?).
Pois bem, em algum momento da história, mais ou menos recente, ocorre o que Foucault denomina “o desaparecimento dos suplícios” (Foucault, 1987 p.14), ocasião em que a própria tortura começa a ser vista de uma forma diferente. Como não se pode depreender um marco temporal em que tal teria ocorrido, nem mesmo especificar autores que na época contribuíram para essa nova forma de se conceber as relações humanas de poder inscreve-se Beccaria como um “enunciado” plausível ante a um universo de transformação que pode ser considerado importante no processo de contestação dos procedimentos de tortura.
Isso porque, o próprio Foucault reconhece Beccaria como um dos “grandes reformadores” (Foucault, 1987 p.64) de seu tempo, que exerceu influência com sua obra capaz de mobilizar soberanos e causar impacto em ordenamentos jurídicos. Basta citar aqui “o caso de Catarina II, que após a leitura Dos delitos e Das penas manda redigir um projeto para um novo código das leis sob influência do autor” (Foucault, 1987 p.97).
É aceitável que uma importante discussão oriunda das leituras pode se dá na construção de uma reflexão atinente ao poder soberano sobre o corpo, o qual atravessa nossa época, mobilizando atores sociais. Nesse diapasão, é necessário compreender o que Foucault busca com sua “microfísica do poder punitivo”. Para ele, na seara do estudo da tortura e do suplício:

“Esta alma real e incorpórea não é absolutamente substância; e o elemento onde se articulam os efeitos de um certo tipo de poder e a referência de um saber, a engrenagem pela qual as relações de poder dão lugar a um saber possível, e o saber reconduz e reforça os efeitos de poder. Sobre essa realidade-referência, vários conceitos foram construídos e campos de analise foram demarcados: psique, subjetividade, personalidade, consciência, etc.; sobre ela técnicas e discursos científicos foram edificados; a partir dela, valorizaram-se as reivindicações morais do humanismo” (FOUCAULT, 1987, p. 28-29).

Por fim, pode-se depreender que as considerações de Beccaria, em sua obra, contribuíram para a formação e concepção de ideais contemporâneos de humanismo, racionalidade e modernidade. A influência do autor percorreu o tempo e chega aos dias atuais, o transformando numa leitura fundamental tanto nos Direitos Penal e Processual Penal como em todas as Ciências Humanas e Sociais Aplicadas. Se a tortura e o suplício são dois conceitos que se complementam, os dois autores são dois “enunciados” num universo científico, que, à maneira de cada um, quebraram paradigmas e remodelaram o modo como se enxerga o pensamento acadêmico nos nossos dias.

Considerações Finais
Conforme foi exposto ao longo desta resenha, a tortura foi – e ainda o é, um mecanismo usado em diferentes contextos ao longo da História como meio de confissão, coerção e regulação social. Beccaria, no Séc. XVIII, condenou seu uso, em uma análise racional sobre o Direito e de suas formas de punir e extrair confissões dos réus. Sua obra, considerada um clássico na área do Direito Penal, influenciou a legislação contemporânea. Foi visto que para este autor o uso da tortura é um meio questionável e pouco eficaz para extrair confissões.
Paralelamente, considerou-se a obra de Michael Foucault, analista do sistema penal moderno (Século XX). Sob um prisma racionalizador, para o autor este sistema funciona como mecanismo conectado às condições sócio-econômicas de cada época. Foucault preconiza a abolição do uso da tortura; no entanto, sabe que tal prática continua existindo, sobretudo em contexto de guerras.
Por fim, a atualidade e importância do tema sobrepujam as limitações desta concisa análise, que teve por objeto contextualizar o assunto, focando-se em sua evolução e importância para o Direito.

Referências
BASTOS, C.; KELLER, V. Introdução à metodologia científica. 19. ed. Petrópolis: Vozes, 1997.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas: São Paulo: Martin Claret, 2011.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Digital Aurélio. Editora Positivo, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. 5. ed. Petropólis: Vozes, 1987.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2011.