NÃO É BEM ASSIM, ENTRE “O NORDESTE QUE SE PENSA” E O VERDADEIRO NORDESTE: UMA LEITURA DE NORDESTE DE GILBERTO FREIRE


Cícero João da Costa Filho
Pós-doutorando em História Social pela FFLCH/USP

Resumo:
Lançado em 1937, Nordeste é uma obra imprescindível para entendermos não apenas a conjuntura social e econômica de uma específica região pernambucana, como também do Brasil de Vargas. Após a revolução que combateu as tradicionais oligarquias, diversas tendências políticas faziam parte do contexto político da época, oferecendo tendências políticas que iam do fortalecimento do estado e da nação à defesa de uma sociedade sem estado. O debate com Gilberto Freire nos faz pensar a dualidade Brasil urbano-rural, moderno-tradicional. A importância do Nordeste passa também pela questão política e econômica, em que se pensava a decadência da economia rural e a consolidação do modernismo paulista. Antes de tudo, a obra Nordeste serve como elemento de identidade do homem dessa região, com sua cultura no sentido mais amplo. Freire traz questões muito vivas até hoje, como a questão da influência ou não de elementos climáticos, da superação destes e a supremacia da cultura nas leituras sociais.
Palavras-chaves: Nordeste, Gilberto Freire, Brasil

Abstract:
Launched in 1937, the Northeast is an essential work for understanding not only the social and economic situation of a specific Pernambuco region, but also from Vargas of Brazil. After the revolution fought the oligarchies traditional oligarchies, various political tendencies were part of the political context of the time, providing political trends ranging from strengthening state and the nation to the defense of a stateless society. The debate with Gilberto Freire makes us think the urban-rural Brazil duality, modern-traditional. The importance of the Northeast also involves political and economic issue, when it was thought the decline of the rural economy and the consolidation of São Paulo modernism. First of all, the Northeast work serves as the identity element of man in this region, with its culture in the broadest sense. Freire brings very sharp questions today as the question of the influence of climatic elements or not, of overcoming these and the supremacy of culture in Brazilian social readings.
Keywords: Northeast, Gilberto Freyre, Brazil



Publicado em 1937, o estudo ecológico Nordeste - Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil, de Gilberto Freire, como o próprio sociólogo denomina, trata de analisar a cultura nordestina que se estende do extremo nordeste (Pernambuco) ao Recôncavo Baiano, a partir dos reflexos e influências da instalação da civilização do açúcar. Segundo Freire, o nordeste que pretende analisar não é o nordeste de Djacir Menezes fincado no sertão, mas sim o “nordeste agrário, hoje decadente, que foi, por algum tempo, o centro da civilização brasileira” (FREIRE, 2010, 37). Portanto, o Nordeste levantado por Freire é outro nordeste, rico em massapê, sempre oleoso, em que existe sempre uma mancha de água, é o nordeste do húmus gorduroso, da terra melada, espaço onde se ergueu a civilização moderna. (MENEZES, 1937)
O nordeste impressionista retratado por Gilberto Freire evoca elementos regionais, agrários, onde o massapê sustenta a monocultura e o latifúndio da cana-de-açúcar, embora essa mesma atividade seja o principal fator de destruição da natureza, como mais tarde o sociólogo chamará atenção. Ressaltemos duas inquietações que pretendemos esboçar neste texto, quais sejam: a primeira surge quando Freire aponta a cultura como variante explicativa para analisar a civilização nordestina, suscitando assim, sua identidade, fugindo dos elementos deterministas que caracterizam as análises sociais brasileiras de 1870 a 1930. (SCHWARCZ, 2008) A geração de escritores racistas, bem conhecida de Freire, composta por ensaístas como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, Capistrano de Abreu, tornou-se conhecida do discípulo de Boas; a segunda é que o escritor pernambucano a nosso ver generalizou suas análises para criar uma identidade regional nordestina, a partir de um espaço geográfico específico, o nordeste agrário e pastoril do senhor de engenho da casa grande do sertão pernambucano.
O primeiro elemento, em nossa ótica é correto até certo ponto, porque não se percebe uma identidade lendo o próprio ensaio ecológico de Freire. Percebemos que o sociólogo não se desvencilha dos preceitos deterministas (racial e mesológico), formadores do pensamento dos escritores brasileiros dos fins do século XIX, o autor chama atenção para a mestiçagem como categoria explicativa para fabricar tipos regionais. Desse modo, logo no primeiro capítulo, há uma passagem em que a presença biológica parece explícita. Dentre os fatores que possibilitaram a instalação da civilização do açúcar, Freire releva a presença do donatário Duarte Coelho e dona Beatriz “gente boa e sã habituada à vida rural e ao trabalho agrícola, gente talvez geneticamente superior aos simples artesãos – alguns parece que mouriscos –, aos burgueses – tantos deles, cristãos-novos – e aos fidalgotes aventureiros que, primeiro, salpicaram de sangue europeu ou semi-europeu outros pontos da América conquistada pelos portugueses” (FREIRE, 2010,48). (Grifo nosso)
Somado a este fator biológico-racial que favoreceu a instalação da civilização do açúcar que se estendeu do extremo nordeste, trecho que vai do Sergipe ao Ceará ao Recôncavo Baiano, se presencia no ensaio de Freire outras passagens, apontando o elemento racial como fator analítico de formação da identidade regional nordestina. Se o escritor não defende abertamente a diferença inata entre as raças, aceitando, assim a superioridade do branco em detrimento de negros, índios e mestiços, defende de maneira sutil uma predisposição para cada uma das raças, onde a raça branca encontra-se no topo da pirâmide. Com isso Freire estar ligado à ideia de caráter nacional, o que caracterizou o discurso do homem branco de dominar os seres abaixo dos trópicos. Onde encontra o pensador que privilegia a cultura em detrimento de todo e qualquer determinismo? A imagem de uma raça mestiça aparece como algo positivo, herança talvez de Sílvio Romero, e negativa, a exemplo de ensaístas brasileiros como Nina Rodrigues, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato, Oliveira Viana. (BECHELLI, 2009; COSTA FILHO, 2012)
O tipo biológico cabra, tipo mestiço do nordeste brasileiro, remete as palavras do folclorista paraibano Rodrigues de Carvalho: “raramente o cabra tem a dedicação afetuosa do africano ou a carinhosa estima do mameluco, ou do branco” (FREIRE, 2010,172). Mais adiante, em discussão ainda com Carvalho, Freire segue analisando tipos raciais como o mameluco e o cabra, sempre associando características morais a algum traço físico. Percebemos, seja por meio do tipo mameluco ou do cabra, a existência da explicação de aspectos culturais pelo viés racial. Seguindo o ensaio, podemos descrever uma fala de Freire em que se presencia o elemento racial na análise da civilização do açúcar. Conforme o escritor: “mas aqui, insistiremos no que já sugerimos em trabalho anterior sobre certos aspectos da miscigenação que se relacionam mais intimamente com a formação social do Brasil:

“muito do que se atribui à miscigenação resulta do desajustamento psicológico e social – desajustamento de classe e, até certo ponto, de raça (este principalmente pela persistência de evidências de raças ligadas aos traços de classe) – em que se encontra o mestiço. A lealdade, a conformidade e a constância de subordinados não são qualidades que se possa esperar que existam em um elemento social e psicologicamente flutuante, indeciso e insatisfeito, como é geralmente o mestiço, no mesmo grau em que existe no índio puro e, principalmente, no negro retinto. Figuras mais definidas e mais integradas no estado de subordinação do que a pele – como nariz, o cabelo, os pés – é como se fosse insígnia de trabalhador sempre de eito, de soldado sempre raso. É como se fosse um uniforme insubstituível, grudado ao corpo para sempre. Um macacão eterno” (FREIRE, 2010, 172-173).

De forma implícita, a leitura do ensaio deixa ver a flutuação de uma raça mestiça, não pura, que integra a rede de relações sociais da civilização do açúcar. No ensaio Freire oscila, remete ainda que poucas vezes ao elemento racial, que o leitor mais atento percebe ao longo do trabalho. Em nenhum momento afirmamos que Gilberto Freire privilegia o fator racial em detrimento da cultura, estamos preocupados e almejamos pontuar de sua fala onde o fator racial aparece como recurso de análise. O escritor pernambucano em nenhum momento recorre a famosos nomes como Darwin, Haeckel, Buckle, Spencer, Taine, Gobineau, Lapouge, Letourneau, tantos outros, pois dar importância a outros elementos na formação do tipo regional nordestino, por exemplo, a situação espoliativa vivida pelo mestiço nordestino, no caso, o cabra, o mameluco, a condição do negro trazido da África totalmente desenraizado de sua cultura, o que pode ser mais um ponto de encontro com bacharel Sílvio Romero. Assim como Sílvio Romero, a singularidade brasileira era o mestiço, nossa cultura era mestiça nas ideias, uma cultura pela união das raças, isso seria um fato!
 Freire desenvolve toda uma discussão iniciada por Silvio Romero, um pensador extremamente preocupado com a cultura popular, do homem do campo, do sertão, com sua cultura popular, nas festas de domingos, reizados, poesia, etc, mas não se desvencilha do que marcou toda a historiografia literária brasileira: o imaginário de tipos. Freire deixa de lado a forma determinista de certas categorias naturalistas e adentra, assim, ao plano das relações sociais entre os homens, forjando assim uma identidade regional. 
Em seu ensaio, não há alusão a nenhum teórico racial que respalde a influência do meio geográfico na formação da uma índole regional, explicando a sociedade patriarcal do nordeste brasileiro, pelo contrário, pelo contrário, Freire combate pensadores importantes do cenário nacional que acreditavam na inferioridade biológica, como fundamentação teórica para a interpretação do “atraso” ou “subdesenvolvimento” brasileiro, como Nina Rodrigues, Silvio Romero, José Veríssimo e Oliveira Viana. Freire se exime desses princípios apregoados por esses teóricos mirando as relações sociais para o português, o negro, o cabra, o mameluco, e o indígena. No plano social Freire chama atenção para a condição espoliativa do senhor de engenho, que explora a natureza humana e geográfica, onde o cultivo de cana afasta animais, como desequilibra todo o ecossistema, como também não permite uma variação da cultura agrícola, afetando a precária alimentação do nordestino, privando-o do que lhe é mais básico, no caso, a farinha de mandioca, dieta do mestiço nordestino.
Em função da monocultura do açúcar, vimos um mau uso da terra somado ao desequilíbrio completo da mata nordestina, uma vez que o cultivo da cana cada vez mais se expande exigindo assim maiores espaços de terra. Estes são fatores que fazem de Gilberto Freire um pensador “relativista”, relevando fatores sociais e econômicos na elaboração de suas análises. Isto não significa que não percebemos contradições e um forte caráter ideológico na obra Nordeste. Se, por um lado, Freire reconhece que certas condições sociais espoliativas contribuem para o não desenvolvimento moral de alguns tipos do nordeste açucareiro, em pontos isolados alude à questão racial-biológica tanto para explicitar elementos positivos ou negativos, na forma de conceber o estabelecimento e as influências da civilização do açúcar. O escritor reconhece a condição de negros explorados e desenraizados de sua cultura, mas nas entrelinhas, a tônica se justifica sob o viés racial. Conforme se lê:

“grandes massas de gente da melhor, da mais capaz, da mais eugênica; e não os indesejáveis do ponto de vista da moralidade das tribos, como já houve quem ensinasse. Aliás, podia-se dizer a esse respeito o mesmo que a respeito dos criminosos, portugueses deportados para o Brasil: nem todos eram desterrados por crimes que hoje consideraríamos crimes, mas vários por pecadilhos de amor e de heresia” (FREIRE, 2010,158). (Grifo nosso)

É explícita a ligação que o autor atribui a uma raça boa, seja por parte do português ou de negros transplantados para o Brasil, na formação da sociedade patriarcal do nordeste. Mais adiante, o autor combate justamente à ideia de raça e salienta o fator cultural como elemento de análise. Com relação aos negros, afirma

“Querer ligar não só o desinteresse atual do preto ou do mulato pobre pela lavoura, como a deserção dos campos pelos trabalhadores negros – deserção que, de fato, se verificou aqui, nas Antilhas e no sul dos EUA, às primeiras notícias de abolição e artes, por grupos revoltados, pelos quilombolas e mucambeiros – a uma questão de raça, a um ódio especial da raça africana ao trabalho agrícola, é que seria torcer um fenômeno de causas nitidamente sociais para acomodá-lo a um “racismo” muito suspeito, quase sem nenhum cheiro de ciência e com um odor cada dia mais carregado de intenção política. A verdade é que, ainda hoje, os xangôs afro-brasileiros do nordeste recordam, em alguns dos seus cantos mais doces e dos seus movimentos de dança mais expressivos, os velhos gestos de semear e de colher, o culto da terra, a alegria no trabalho agrícola, o regozijo pelo fruto ou pela espiga madura e toda uma mística do trabalho agrícola” (FREIRE, 2010,162-163). (Grifo nosso)


Como se depreende da citação acima há um forte caráter ideológico na fala de Freire. Aqui reside o que os críticos de Freire acentuam fortemente sobre o pensador pernambucano: a docilidade entre as raças, a consagrada democracia racial brasileira, que não encontrou nenhum ódio, frente a senzala e nhôs nhôs, agenciando a economia escravista do açúcar. A ideia central sutilmente apregoada na fala acima é da predisposição da raça negra africana, que muito contribuiu para a instalação da civilização do açúcar, ao trabalho agrícola. Se os negros da lavoura das Antilhas e do nordeste brasileiro, segundo Freire, se rebelaram, não foi devido a nenhum ódio racial e nem devido ao desamor desta raça ao trabalho agrícola, porque além de uma possível predisposição do negro ao labor, existia uma estrutura condicionante culturalmente a esta atividade constituída em “velhos gestos de semear, cultuar a terra, na alegria ao trabalho agrícola e toda uma mística ao trabalho agrícola” (FREIRE, 2010,162). De maneira breve, percebemos que em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda possui falas de raciocínio semelhante ao de Freire. (HOLANDA, 2014)  
Freire se prende a um “relativismo” cultural harmônico, na medida em que aborda os tipos raciais, por exemplo, o negro desenraizado e explorado estava apto ao trabalho agrícola! A grande diferença de Freire em relação aos ensaístas anteriores é esta: enquanto os pensadores de cunho naturalista se apoiavam nos fundamentos da raça e do meio em suas interpretações sociais, o sociólogo pernambucano já parte desses elementos previamente cristalizados, abordando os homens em suas relações sociais dentro do conjunto maior da cultura. Freire não despreza o fator racial e nem o meio na formação da sociedade nordestina.
Há, no ensaio, uma contextualização sobre as condições de vida dos negros africanos, em seus espaços geográficos de origem? Não. Semelhante ao processo interpretativo dos ensaístas brasileiros dos fins do século XIX, no Brasil, que partiam da desigualdade inata entre as raças para explicarem o atraso brasileiro na escala evolutiva do progresso, Freire traça um caminho diferente que culmina no mesmo fim, qual seja: naturalizar uma desigualdade social entre as classes, estratos sociais, camadas sociais, omitindo a existência de algum traço racial. Essa naturalização é clara frente suas análises, a interpretação do leitor é que o negro era até predisposto ao trabalho agrícola, ao trabalho da lavoura, embora esta predisposição não estivesse ligada de forma explícita a algum elemento físico-biológico, e sim condicionada por todo um processo cultural pré-existente. A leitura que o ensaio permite é esta: naturalizar ou ter como normal a legitimação de uma exploração, a partir de classes sociais, no caso, a classe do senhor de engenho sobre os outros povos, fossem o mameluco, o cabra, o negro, etc.
O ensaio tem como objeto, segundo o autor, o homem se relacionando com a terra, com a água, com o nativo, com as plantas, com os animais da região e os trazidos pelo colonizador, seja da Europa ou da África. Numa ambivalência que ora favorece e dar singularidade ao homem imerso na rede de sociabilidade erigida sob a civilização do açúcar, ora ressalta os pontos negativos desta mesma civilização, Freire pontua, mesmo que de forma implícita, fatos históricos relevantes e ilustres pensadores do meio social nordestino. As ideias ilustradas de cunho francês inspiraram os movimentos liberais de 1817 e 1824, e Olinda, com sua Faculdade de Direito, fora o espaço de recepção das ideias formadoras de eminentes pensadores que elaboraram o imaginário “aceito” à cultura regional nordestina, porque tal elite intelectual era nascida no meio social nordestino. Recife recebeu forte influência inglesa, francesa e americana. Aqui, toda uma cultura é esmiuçada em seus “gênios” intelectuais e toda uma elite política é ressaltada para salientar a especificidade do meio nordestino e, seguramente, aqui estão contidos elementos raciais e mesológicos, num grau menos aparece à dieta alimentar. Freire salienta de forma clara a síntese oriunda da relação do homem com a terra, animais, água e mata. Segundo o autor, foram “não só o motivo de muitas de suas fraquezas como de várias de suas virtudes” (FREIRE, 2010, 183). Por mais que o sociólogo incorra em suas análises sociais, a partir de um “relativismo” cultural e procure demonstrar, por meio das influências sofridas e por certos fatos históricos, a singularidade do nordeste, aparece de forma implícita à contribuição de um meio específico responsável pela índole do homem regional, configurada neste ou naquele tipo. Às vezes, toda uma cultura parece ser vista a partir dos desdobramentos da civilização do açúcar, em seus elementos formadores, como a monocultura, latifúndio, escravidão, mas Freire aponta seu traço relativista, a partir de suas análises sociais. Ao mesmo tempo em que a singularidade histórica das relações sociais, sob a instauração da civilização do açúcar, parece produzir um tipo regional específico, o próprio sociólogo aponta o perigo do absoluto, “tão perigoso nas avaliações sociais” (FREIRE, 2010, 183).
Nessa dubiedade paradigmática e até certo ponto metodológica, o ensaio ecológico de Freire que tem o homem como objeto, ora faz pensar que o caráter racial não explica as relações sociais de forma tão genérica, ora nos faz pensar, de forma implícita, a importância que tinha o meio da civilização do açúcar brasileiro nordestino, a raiz de toda a brasilidade: “... o nordeste do massapê é ainda o mais brasileiro pelo tipo tradicional de casa-grande e de sobrado de azulejo e pelo de casa de palha ou de mucambo, que aqui se desenvolveram de originais portugueses ou africanos e indígenas e que constituem material de primeira ordem e uma riqueza de sugestões e de inspirações para uma arquitetura verdadeiramente brasileira, ou pelo menos, regional” (FREIRE, 2010, 50-51).
É bem verdade que reside aqui uma implicação política, qual seja a de manter a importância econômica das oligarquias decadentes do nordeste, com toda sua contribuição cultural e importância política no Brasil até 1850. Após este período, veríamos todo um processo industrial burguês, embora estreitamente ligado às antigas oligarquias. Não é gratuito que alguns leitores de Freire o vêem como a voz das decadentes oligarquias nordestinas. Freire lutava para não perder este nordeste diferente do nordeste de Djacir Menezes.
Durval Muniz de Albuquerque, lendo Michel de Certeau desconstrói a visão idílica do campo, analisa a invenção do nordeste elaborada e refletida por toda uma historiografia literária e demais artes que deu suporte a esta visão nordestina. Para Albuquerque, Freire é portador de uma visão tradicionalista, assim como inúmeros intelectuais e artistas do nordeste brasileiro que carrearam o “regionalismo de trinta” e a “literatura das secas”. Para Durval:

“... uma região que se constrói pela memória implica uma convivência entre a ideia de sobrevivência e a de vácuo. O passado aparece em toda a sua alegria de redescoberta para, ao mesmo tempo, provocar a consciência triste do seu passar, do seu fim. Esta máquina de rememoração, que é o romance de trinta, é também a máquina de destruição, de ascensão à consciência de um tempo perdido” (ALBURQUERQUE JR, 2009, 81).


Como já aludido, o nordeste desenvolvido sobre a fertilidade do massapê que fez a cultura regional destruiu matas, causou desequilíbrio ecológico, privou o cabra e o mameluco da mais básica dieta alimentar, espoliou e descaracterizou valores e ritos da cultura africana, trouxe animais europeus que, pelo próprio conceito, se diferenciaram dos bichos do Brasil. No entanto, este mesmo nordeste deu sentido a uma civilização do açúcar, de um Recife que recebeu valores da cultura francesa, inglesa e americana, abrigando por fim um sem número de personagens ilustres, tanto no campo literário como no campo político.
Fora do Recife, nos estados do Maranhão, Bahia e Sergipe, outros ilustres personagens surgiram sob a insígnia da civilização do açúcar. Se, por um lado, a monocultura, a escravidão e o latifúndio trouxeram os pontos negativos já esboçados, por outro, revelaram a singularidade de uma vasta cultura ligada à mestiçagem, permitindo o encontro de valores diferentes, sendo esta a maior contribuição, não das raças em sua singularidade própria, mas da soma delas. Este é o forte traço ideológico de Freire, porque exclui certas diferenças e sua dominação frente ao homem europeu, resultando sempre em sua singularidade, a partir de um todo, qual seja: a miscigenação da cultura. Esta formar de pensar nada mais é do que a ideologia do branqueamento, que prega a construção do Brasil quando as raças estiverem fundidas! Sabemos da exclusão dessa ideologia: além do branco figurar no topo do triângulo racial, trata-se de um extermínio cultural das raças que figuram no grau inferior, que de maneira contraditória, forma o Brasil. E pregar um discurso onde mestiços negros e índios compõe a cultura brasileira, e a partir daí eliminá-los dessa cultura!
Semelhante a autores como Silvio Romero, Tavares Bastos, Euclides da Cunha, esta seria a solução para uma nação caldeada etnicamente, que experimentava um verdadeiro espetáculo das raças, lembrando Scharwtz. Freire foi apenas um dentre tantos escritores brasileiros convictos na superioridade da cultura europeia. Freire revela um ensaio por vezes escrito em gênero de prosa poética, onde os belos doces produzidos pela civilização do açúcar e a flexibilidade da política portuguesa abrandam a relação entre senhor e escravo, resultando na “solidariedade social” por parte do colono, na “confraternização dos homens de cor com os brancos”. É dessa forma que o sociólogo constrói seu ensaio ecológico centrado sobre o homem.
Embora pese, a nosso ver, um caráter ambíguo, não muito claro e coberto de contradição, o meio fincado sob a civilização do açúcar é central para o sociólogo. É o elemento sine qua non para analisar a cultura regional e mostrar ao Brasil sua importância.

“Com todos os seus defeitos, a civilização do açúcar que se especializou, ou antes, se exagerou no nordeste da massapê e, dentro do nordeste, em Pernambuco – seu foco, seu centro, seu ponto de maior intensidade – em civilização aristocrática e escravista, deu ao Brasil alguns dos valores de cultura, hoje caracteristicamente brasileiros, dissolvidos em outras civilizações, distribuídos por outras áreas, diluídos em outros estilos de vida, mas com a marca de origem ainda sensível a olho nu. Outros valores não sofreram transformação e morreram; ou existem só em resíduos muito vagos” (FREIRE, 2010,194).

Jamais o meio social deixa de estar presente em Nordeste, mas até que ponto este meio não considera de forma sutil o meio geográfico como nos moldes dos ensaístas dos fins do século XIX? A raça seria sim tocada por Freire e a mestiçagem seria seu desdobramento direto, conferindo às relações sociais um caráter harmônico que, por vezes, beira a uma visão poética, porque coberta de um teor saudoso. Nos interstícios da obra, raríssimas vezes, Freire reconhece a espoliação do negro por parte do senhor de engenho que acaba trazendo prejuízos à natureza, devido à monocultura do açúcar. O traço do escritor é falar do nordeste, impressionando por suas imagens, porque descreve passagens que realmente fazem pensar como era este nordeste e acreditar que realmente o cenário era da forma como mostrado em seu ensaio ecológico.
Das contradições, ambiguidades e, por isso mesmo, de certa postura ideológica, resta um nordeste real. Talvez seja mais fácil afirmar o tradicionalismo no regionalismo de Gilberto Freire do que considerar seu pensamento como ponto de inflexão da década de 1930, com Casa Grande e Senzala, mudando o modelo historiográfico brasileira. Afora toda uma análise crítica por parte da obra Nordeste, estas críticas não teriam sentido se o ensaio de Freire fosse irrelevante, daí ser mais coerente analisar o ensaio a partir de uma leitura despojada de preconceitos do que por meras afirmações e jargões do que já se conhecem de forma exaustiva.
Tentamos ler o ensaio ecológico de Freire apontando suas passagens centrais apontando o sentido das ideias do ensaio, relacionando-as a uma ordem concreta das coisas, fugindo de ismos genéricos, afirmando, por exemplo, que Freire se tratava de um autor representante da decadente elite açucareira e, por isso mesmo, era um autor conservador, ou era um pensador nacionalista que encontrou, no nordeste, raízes brasileiras. Mas do que uma mera análise maniqueísta que só reduz ou não fomenta análise alguma, buscamos ler este ensaio em suas passagens principais, acreditando falar o que revela o Nordeste.

Conclusão

A obra de Freire em seu todo está imersa numa conjuntura de transferência do capital agrário nordestino para São Paulo como centro econômico e cultural do país e seu pensamento está ligado a uma visão-construção regional do nordeste brasileiro; daí surge desdobramentos não só de estilo como de ideologia, no sentido político que permeia seu ensaio. Seu regionalismo e o movimento político, em torno de sua contribuição para uma identidade nordestina iria se confrontar, então, com um novo modelo de nação brasileira, agora centrada a partir de raízes paulistas.
Aqui nascia o regionalismo paulista, que centrou suas análises de forma ambígua na mentalidade urbana, embora calcado no campo e, no que tange às correntes desse regionalismo, de forma específica, o grupo verde-amarelo iria “encontrar” as raízes brasileiras no planalto de Piratininga, tendo em vista a visão heróica do bandeirante. Mas do que reduzir a visão de Gilberto Freire a um mero pensador conservador e nacionalista, é preciso ler o ensaio como forma crítica, porque é possível, nas poucas passagens de sua fala, apreender a luta entre exploradores e explorados e uma delas é quando o autor reconhece a espoliação por parte do negro desenraizado de sua cultura, somada a algumas contradições que, segundo a crítica, faz de Freire um ideólogo ou representante da aristocracia decadente do nordeste brasileiro. Não afirmamos o contrário, apenas combatemos uma postura unilateral e unívoca por parte da crítica historiográfica que incide sobre o sociólogo. Infelizmente, esta visão surgiu nas academias e tem por fim legitimar, de forma incoerente, um pensamento também conservador; não sem razão, Gilberto Freire sempre será tido como um pensador conservador e nacionalista. Claro que, em seu ensaio, a partir de seu subtítulo, reside um traço ideológico, na medida em que camufla as possíveis tensões sociais visto que, segundo o autor, seu trabalho tratava de um ensaio ecológico, embora tivesse como objeto o homem. Seu pensamento seria clareado em Casa Grande & Senzala; não que Freire tenha deixado de ser conservador e adotado formas de ruptura de ordem social, mas porque, segundo essa mesma crítica, seria este o trabalho onde o discípulo de Boas analisava, de forma detida, o caráter de harmonia racial, brandura e docilidade das raças constituintes na nação brasileira.
Para além de uma simples leitura, fruto de um pensador nacionalista e conservador como divulga a crítica acadêmica, se faz necessário perceber a importância de uma forte contribuição do autor para uma história das ideias ou de um intelectual para o pensamento social brasileiro. Mas, é relevante extrair ou pontuar, nos raríssimos momentos em que aparecem passagens em que se presencia a condição de explorador e explorados, antes de partirmos de chavões pré-estabelecidos, sem acompanhar a leitura de seu ensaio. Lendo o ensaio, se pode tomar das palavras do sociólogo, os elementos que servem para combater suas próprias ideias. Freire não aludiu a nenhum teórico revolucionário como Marx e Engels, mas, segundo o economista alemão, que aqui serve de inspiração para finalizar esta resenha, vale lembrar que o sistema capitalista produz suas próprias contradições. Somente lendo o ensaio Nordeste, se pode extrair uma leitura crítica que possibilite uma visão diferente da apregoada pela crítica acadêmica, quando toma o pensamento de Freire como totalmente conservador e tradicionalista.

BIBLIOGRAFIA

ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. Recife: Editora Massangana; São Paulo: Cortez, 1999. 
BECHELLI, Ricardo Sequeira. Metamorfoses na interpretação do Brasil: tensões no paradigma racial (Sílvio Romero, Nina Rodrigues, Euclides da Cunha e Oliveira Vianna). Tese. USP: São Paulo, 2009.
COSTA FILHO, Cícero João da. No limiar das raças: Sílvio Romero (1870-1914). Tes. USP: São Paulo, 2013.
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MENEZES, Djacir. O outro nordeste: formação social do nordeste. Rio de Janeiro: José Olímpio.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil,     1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 2004.