Inês Skrepetz
Abstract:
This work has a dual purpose: first,
seeks to show how Neruda builds a distinct poetic attitude, engaged in social
struggle, based above all on a non-conformist attitude, which does not allow us
to separate it in the theoretical dichotomy of "human-political" and "human-poetic";
in a second time, how this literary production is realized in a movement of
real protest, dedicated, determined at to the finish to combat violence of
oppression and barbarity, manifested in the Spanish Civil War, which also left
its mark forever in his verses and his life, from the book España en el corazón (1937).
Keywords: Spanish
Civil War, Pablo Neruda, poet-politician, España en el corazón.
Resumo: Este trabalho possui um duplo
objetivo: primeiramente, busca-se mostrar como Neruda constrói uma atitude
poética distinta, engajada na luta social, calcada antes de tudo em uma atitude
não conformista, que não nos permite separá-lo na dicotomia teórica do
“homem-político” e do “homem-poético”; num segundo momento, como essa produção
literária se concretiza num movimento de protesto real, dedicado, decidido até
o fim a combater a violência da opressão e da barbárie, manifesta na Guerra
Civil Espanhola, que também deixou suas marcas para sempre em seus versos e na
sua vida, desde o livro España en el corazón (1937).
Palavras Chave: Guerra Civil Espanhola, Pablo Neruda, poeta-político, España en el
corazón.
Hoje, mais do que nunca o mundo avança
Para uma aurora ainda aprisionada
Tentemos resgatá-la com poesia
Cada poema valendo uma granada
(Vinícius de Moraes, 2006).
O presente trabalho se insere num
ponto paradigmático para a área da literatura: pode-se construir a ideia de um
autor dividindo-o entre “homem político” e “homem poético”? A atitude de
entender a “literatura pela própria literatura” elevou-a a um nível de
abstração conceitual extremamente rico nos dias de hoje, mas talvez não tenha
servido para perceber que esta mesma literatura também se fundamenta, antes de
tudo, numa postura social. É bem sabido - alguns escritores nascem justamente
da contestação, e não o fazem por estilo. Da inconformação com uma sociedade
perversa ou com um contexto de crise, as palavras são o veículo para a mudança,
são o cerne de uma profusa transmissão de ideias que busca analisar, criticar,
entender e resolver os anseios do ser humano.
Que nos faz pensar, pois, que os
autores podem ser separados em entidades distintas, como se sofressem de uma
dupla personalidade? Como receber as palavras de um escritor que não viveu suas
próprias fantasias e utopias, tentando construir nas múltiplas realidades a
vivência de seu sonho?
Esta constatação se dá plenamente em Pablo Neruda. O
autor chileno foi um sempiterno engajado[1],
um incansável defensor do povo. Sua luta se deu em frentes contínuas e
intermináveis, que começaram numa juventude conturbada, arguta conhecedora das
misérias do povo chileno; depois, ele testemunhou de perto a tragédia da Guerra
Civil Espanhola (que analisaremos mais detalhadamente aqui), atravessou a 2ª
grande Guerra Mundial, os conflitos da Guerra Fria e findou-se,
inevitavelmente, no fracasso da Revolução Chilena de 1973. Em nenhum destes
momentos o homem Neruda cedeu espaço ao cansaço, ou desistiu de sua luta. Será
que isso não bastaria para defini-lo como este ser humano uterino, um poeta-político (e não um
“político-poeta”), cuja razão de existir é sua própria luta?
Este será, por conseguinte, o duplo
objetivo desse trabalho: em primeiro lugar, buscaremos mostrar como Neruda
constrói uma atitude poética distinta, engajada na luta social, calcada antes
de tudo em uma atitude não conformista, que não nos permite separá-lo na
dicotomia teórica do “homem-político” e do “homem-poético”; num segundo
momento, como esta atividade literária se concretiza num movimento de protesto
real, dedicado, decidido até o fim a combater a violência da opressão e da
barbárie, manifesta na Guerra Civil Espanhola.
Neruda, como combatente poético, não
desistiu em nenhum momento de denunciar as atrocidades realizadas pelos regimes
totalitários, cuja grande justificativa para sua crueldade era tão somente a
luta ao comunismo. Apelando sempre à legalidade, à legitimidade e ao espírito humano,
Neruda clamava por uma via de entendimento que levasse as classes sociais a
vencerem seus conflitos internos, projetando no futuro o bem estar de uma
nação. O povo, sempre vítima das disputas políticas, carecia de atenção.
Sua poesia, pois, classifica-se
entre aquelas que já nascem vinculadas a um discurso social profundo,
militante, e do qual não podemos separar a ação prática da teoria. Por conta
disso utilizaremos, na análise teórica de Neruda, as propostas conceituais de determinados
estudiosos como Bakhtin (1988) e Rajagopalan (2003), cujas contribuições ao
entendimento da função social da linguagem são fundamentais. Estes autores
serão nossos suportes para entender a indefectível ação e imaginação de Neruda,
que se utilizou largamente de sua principal arma – a poesia – para tentar reinventar
um mundo melhor.
Assim, entender Neruda apenas como
um “poeta do amor” ou “do estilo” é empobrecê-lo, sobremaneira, até deformá-lo.
O Neruda histórico
Ao longo da segunda metade da década
de 30, os espanhóis aprenderam a ter medo dos dias bonitos e de céu claro. Não
um simples medo, mas talvez um completo pavor: um horror absurdo, abjeto, capaz
de tornar uma das mais belas manifestações da natureza numa preocupação paranoica
de terror e angústia. A vida cotidiana da sociedade espanhola se tornara um
desafio, causada pelos constantes e inevitáveis bombardeios aéreos. A aviação
da época havia adotado, como estratégia de ataque, realizar suas incursões ao
longo do dia, com céu claro, o que possibilitava uma boa visualização dos
alvos. Uma mudança na doutrina militar também anunciava o aumento da eficácia
destes ataques: bombardeios concentrados, cerrados, feitos por formações de
aviões modernos – as máquinas de última geração dos países desenvolvidos da
Europa – cujo poder media-se, agora, em tonelagens de bombas, muito
distantemente dos cavaleiros aéreos da Primeira Guerra mundial.
O que se via, então, era um povo
amedrontado com o nascer do sol. Um alvorecer magnífico significava, também, a
eleição automática de um alvo – civil ou militar – que em algumas horas poderia
testemunhar o zumbido tétrico e fatal das esquadrilhas de ataque. O exemplo
clássico deste cenário sinistro deu-se em Guernica, a capital histórica da
cultura Basca. Em 1937, esse pouco provável “ponto estratégico” viu-se
destruído por milhares de bombas incendiárias, atiradas pela mortífera Legião
Condor - força militar da Alemanha nazista devidamente preparada e eficaz em
suas funções-, aos serviços dos nacionalistas de Franco. Tudo ocorreu de forma
rápida e extremamente dolorosa numa bela tarde de abril, deixando poucas
chances ao povo indefeso de escapar.
O horror psicológico de uma guerra
como essa estava previsto nos discursos dos defensores de novas teorias sobre
conflitos militares, como o chefe da Legião Condor, o comandante Richthofen (Kauffer,
2007, p.44-51). Suas perspectivas sobre o conflito estavam para além das causas
políticas: buscavam apenas entender, de modo frio e metódico, como poderiam
causar a maior quantidade de destruição possível, abalando por completo a moral
do inimigo.
A perversidade deste discurso de
eficácia, responsável por tantas mortes inocentes, não passou despercebida pela
opinião crítica da época. A guerra na Espanha se tornara uma luta não só pela
liberdade, como também pela humanidade. Uma intelectualidade ativa e idealista
se pôs em marcha para denunciar, protestar e enfrentar esta escalada de
violência, criticando a atitude passiva das grandes nações da época, como
Inglaterra e França, que nada faziam contra esta situação; mais, pregaram uma
luta direta contra as forças opressivas do fascismo, cujo poder crescia a cada
dia trazendo consigo a intolerância, o radicalismo e o obscurantismo das
doutrinas marcadas por um discurso de agressão e exclusão.[2]
Entre os críticos desta época,
estavam muitos Pablos. A maior parte viveu no anonimato, e possivelmente deu
sua vida no campo de batalha antes da desastrosa derrota frente aos fascistas.
Dois, porém, destacaram-se: um, Pablo Picasso, o infatigável e controverso
pintor que imprimiu, de modo absoluto, a tragédia de Guernica no seu famoso
quadro com o mesmo nome da cidade (mas sobre ele não deteremos neste trabalho,
devemos prosseguir): outro, o nosso personagem fundamental, era o jovem cônsul
chileno que testemunhava poeticamente a banalização das atrocidades da Guerra
Civil Espanhola, esse era Pablo Neruda.
Pablo Neruda (o nome artístico para
um pouco sonoro Neftali Ricardo Reyes, seu nome original), afirmava categoricamente
o seu comunismo teórico, engajado na defesa dos interesses populares. Assim
sendo, era mais do que natural a sua empatia pela causa republicana espanhola,
ao qual ele viu se desenvolver de perto, servindo nesta época como adido na
embaixada chilena em
Madrid. Sua experiência com o conflito foi direta e pessoal,
e suas denúncias pautaram-se em suas próprias vivências.
En su libro de memorias Confieso que he vivido, comenta Pablo Neruda
que al regresar a Chile, luego de su apasionante periplo por la India y el Oriente y de
haber experimentado durante la guerra civil española la metamorfosis que lo
llevó del hermetismo surrealista de Residencia en la tierra a la
poesía social de España en el corazón, sintió como una obligación
urgente la tarea de crear una poesía que agrupara «las incidencias históricas,
las condiciones geográficas, la vida y las luchas de nuestros pueblos». (Serrano, 2007).
O mundo da época
segmentava-se, paulatinamente, em três campos políticos fundamentais: o
capitalismo, o comunismo e o fascismo, este último manifestação de uma
tendência de radicalização da direita capitalista. Para os idealistas, o
comunismo – representado pela inequívoca conquista soviética – aparentava
representar a concretização da utopia marxista de criar um mundo livre, justo e
igualitário para os trabalhadores, e os crimes cometidos por Stálin contra seu
próprio povo não pareciam esmaecer a possibilidade de vitória. Na verdade,
acreditava-se na possibilidade real de uma frente anti-fascista comandada pelos
soviéticos (Spindel, 1993, p. 154-55), e o mundo comunista era o único
contraponto existente para a exaustão do mundo capitalista ainda alquebrado pela
crise de 1929:
É perigoso, entre 1936 e
1939, ser ao mesmo tempo antifascista e anticomunista: as democracias
ocidentais o constataram, assim como os partidos revolucionários
antistalinistas. É assim que o conservadorismo e o tradicionalismo espanhóis
adotaram os gestos, os métodos e a aliança dos nazistas e dos fascistas,
enquanto que a República espanhola só encontrava apoio externo seguro e
contínuo no comunismo no poder. (Vilar, 1989, p.109)
Nesse contexto, encontra-se Neruda,
decidido a encarar o conflito espanhol em seus aspectos trágicos, revelando as
perversas manifestações de crueldade que se desenrolavam. Suas atitudes podem
ser consideradas, em linhas gerais, como as de um defensor da República
espanhola e de um praticante contumaz do comunismo, mas essa é uma
representação errônea de sua figura. Neruda era, por exemplo, um admirador
confesso de Walt Whitman, poeta e intelectual americano e defensor pleno do
ideal de uma democracia mais justa e igualitária – algo relativamente distinto
do discurso comunista da época. Sua postura era deliberadamente antifascista,
como atesta no seu memorial Confesso que
vivi:
Embora eu tenha me
tornado militante muito mais tarde no Chile, quando ingressei oficialmente no
Partido, creio ter-me definido como um
comunista diante de mim mesmo durante a guerra da Espanha. Muitas coisas
contribuíram para minha profunda convicção. [...] os comunistas eram a única
força organizada que criava um exército para enfrentar os italianos, os
alemães, os mouros e os falangistas. E eram, ao mesmo tempo, a força moral que
mantinha a resistência e a luta antifascista. Simplesmente tinha que escolher
um caminho. Foi o que fiz naqueles dias e nunca me arrependi da decisão tomada
entre as trevas e a esperança daquela época trágica. (Neruda, 1983, p.141-42,
grifo meu).
Sua opção política, portanto, era
condicionada por uma realidade do contexto. Doravante, sua ação nos tempos da
Guerra Civil Espanhola, marcou-se pelo envolvimento com as causas populares,
muito mais do que por um alinhamento político ou institucional. Isso fica claro
quando ele escreve e lança, de modo quase artesanal, seu libelo contra a
guerra, España en el corazón. Não
importando a tiragem exígua do livro, o compromisso de seu texto o leva a
perder o cargo de cônsul chileno no país (Neruda, 1983, p.129-130). Mas a
decisão de levar adiante seu combate contra o fascismo e a opressão frutifica;
em 1939, ainda, muda o governo do Chile, que:
Decidiu-me enviar a
França para cumprir a mais nobre missão que exerci em minha vida: a de tirar
espanhóis de suas prisões e enviá-los a minha pátria. Assim podia minha poesia
espalhar-se como uma luz radiante, vinda América, entre esses montões de homens
carregados como ninguém de sofrimento e heroísmo. Assim minha poesia chegaria a
se confundir com a ajuda material da América, que, ao receber os espanhóis, pagava
uma dívida imemorial (Neruda, 1983, p. 147).
O fracasso da experiência republicana na Guerra Civil Espanhola não
esmoreceu as crenças de Neruda num mundo melhor. Tendo atravessado a Grande
Guerra e a subseuente Guerra Fria entre viagens pelo mundo, perseguições
políticas e refúgios ocasionais em Isla Negra (sua residência particular),
Neruda continuou a propagar sua insatisfação contra as desigualdades sociais e
os males dos sistemas políticos. Obviamente ele comemorou a derrota do fascismo
em Stalingrado, por exemplo, mas ainda assim sua atitude poética centrava-se na
união pelo bem e o justo, e não simplesmente na cessação do mal:
Nasci para cantar a Stalingrado.[...]
Agora americanos combatentes
Brancos e negros como grãos semeados,
Vão matar no deserto a serpente.
Já não estás sozinha, Stalingrado.
A França volta às velhas barricadas
Com o pavilhão de fúria levantado
Sobre as lágrimas recém apagadas.
Já não estás sozinha, Stalingrado.
(Neruda, Terceira Residência, 2004, V).
Este sentimento de unidade não duraria muito tempo - mas Neruda o sabia,
por trás dele estava o verdadeiro sentimento poético, o sentimento do povo – os
reais atores de toda a luta fratricida e inglória eram a gente do povo, que
lutava por causas desconhecidas e pela promessa de certeza dos seus líderes. O
poeta em sua poética da política não podia suportar isso.
Para adentrar na poética de Neruda
Antes de prosseguirmos, precisamos
entender que poética buscamos aqui conceituar, de modo a incluir a obra da
Neruda em algum pensamento crítico possível. Por essa razão, não há como falar
de gêneros sem discutir Bakhtin (2000, p. 279), que afirma que “todas as
esferas da atividade humana, por mais variadas que sejam, estão sempre
relacionadas com a utilização da língua”. Portanto, são inesgotáveis as
relações e atividades humanas, em que os gêneros do discurso se fazem presente
com uma grande riqueza e variedade, permitindo a comunicação e a interação
humana que se diferencia e amplia-se conforme o desenvolvimento e a
complexidade do contexto em que certas realidades são vivenciadas. E é nessa
concepção que “a utilização da língua efetua-se em forma de enunciado (orais e
escritos), concretos e únicos”, que não se limitam apenas ao estilo verbal e ao
conteúdo temático, mas também por uma construção composicional, sobre a qual
Bakhtin (1988) formula que:
Os sistemas ideológicos
constituídos da moral social, da ciência da arte e da religião cristalizam-se a
partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno,
uma forte influência e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao
mesmo tempo, esses produtos ideológicos constituídos conservam constantemente
um elo orgânico vivo com a ideologia do cotidiano; alimentam-se de sua seiva,
pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a obra literária
acabada ou a ideia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica
viva. Ora, essa avaliação crítica, que é a única razão de ser de toda produção
ideológica, opera-se na língua da ideologia do cotidiano. Esta coloca a obra
numa situação social determinada. A obra estabelece assim vínculos com o
conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só é apreendida no
contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A obra é interpretada no
espírito desse conteúdo da consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela
uma nova luz. É nisso que reside a vida da obra ideológica. Em cada época de
sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com
a ideologia cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da
seiva nova secretada. Apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer um
tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma
determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites
de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir,
pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante. (BAKHTIN, 1988,
p. 280).
Esse comentário se torna pertinentemente válido na análise das produções
de Neruda. Como poeta, Neruda manifesta também a preocupação visceral com o
cotidiano e a experiência humana. No entanto, o contexto da época forçava uma
interpretação de seu texto vinculada intimamente ao movimento comunista,
deixando de lado seus mais contundentes aspectos para além disso. Afinal,
muitas vezes uma mesma obra acaba recebendo várias interpretações, afetando sua
identidade original, conforme Freire, (2001, p. 40), “um exemplo clássico são
as obras de Marx. A mesma obra comporta centenas de interpretações: maoista,
stalinista, cubana, etc”. Seguindo este pensamento, Freire (2001, p. 40) traça
o seguinte raciocínio:
Como sair desse
subjetivismo que torna todos nós proprietários absolutos do texto, sem que
ninguém possa dizer “realmente o texto quer dizer isso que eu estou
entendendo”? Ora, tanto melhor me aproximo da verdade do texto, quanto mais
próximo estou do contexto em que o texto foi produzido. (Freire, 2001, p. 40).
Assim, o contexto torna-se a base central do texto, pois, sem interagir
com a realidade histórica-cultural-social em que ele foi produzido, é precária
a sua interpretação. Caso alguém ouse fazer isso sem base alguma, com certeza
cairá em redundâncias, violentando o sentido e a função social do texto. No
entanto, como sair, igualmente, da armadilha do momentâneo, do senso comum, e
transformar a experiência da leitura de uma poesia num momento de libertação
intelectual?
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Aqui,
então retomamos nossa trilha original: a poesia não é apenas um texto de
suporte para a aprendizagem de uma língua, ou como mero incentivo à leitura, a
poesia é construída pela vida e constrói vidas. O ser humano não pode ser
assimilado apenas a partir das categorias e dos procedimentos analíticos
provenientes dos objetos das ciências naturais, como propõe desde suas origens
o pensamento positivista e cartesiano, uma vez que este ser humano é movido
pela razão, pela paixão e, ainda, pela não-razão. Trata-se então, de elaborar
um saber que seja capaz de integrar a emoção, os sentimentos ou, pelo menos,
que conceda a estes o lugar que lhes é próprio. Necessariamente um saber que dê
conta do imprevisível, da desordem e da efervescência, do trágico e do não
racional; essa é a “essência” da poesia, incorporar as coisas incontroláveis,
imprevisíveis, mas que não são menos “humanas” e nem estão abaixo dos conteúdos
pragmáticos, pois, em graus diversos, a ousadia do Ser e do Sentir, buscando
dar um sentido para a vida, é que atravessam as histórias individuais e
coletivas, que constituem seres verdadeiramente humanos.
Durante séculos e milênios, muitos filósofos e estudiosos já veem
afirmando que “a diferença identifica e a desigualdade deforma”, ou seja, a
partir que desumanizamos o outro, nós corremos o risco de auto-desumanizarmos,
e o ambiente que deveria ser de interação humana acaba tornando-se um coletivo
de anti-humanos. Neruda, preocupado com a percepção desta tensão
“desumanizante” que ocorre em momentos de crise, valeu-se da poesia como
apanágio para guiar uma reflexão mais profunda sobre o mundo e incitar as
pessoas a um processo de modificação íntima. Esta busca de uma identidade
“humano-poético-política” é muito bem trabalhada em Rajagopalan, que afirma:
[...] ao longo da
história da humanidade, houve vários momentos em que as maiores atrocidades
foram cometidas em nome de objetivos aparentemente nobres, porque as abstrações
feitas pelos defensores para justificá-los simplesmente ignorava os elementos
que não se encaixavam nas generalizações desejadas. Mais ainda, em nome de uma
suposta maioria, isolavam, e em seguida, execravam todos aqueles que não
estavam de acordo com os critérios arbitrariamente escolhidos para justificar
as abstrações. Já se disse que, quem ignora as lições da história, está
condenado a passar pelas mesmas experiências amargas. Para nós, só resta a
esperança de que o bom senso prevaleça, antes que iniciativas intempestivas
acabem redundando em danos irreversíveis. (Rajagopalan, 2003, p. 96).
Por conta disso, Neruda transforma
os atores de sua obra poética em móveis de uma ação social e consciente,
engajados numa alteração revolucionária no curso da História:
El poeta-soldado no deja de ser un recurso que reproduce muchos de los
estereotipos del sujeto burgués, el nuevo hombre proclamado con la llegada de la Revolución tenía
obligatoriamente que instaurar un nuevo sujeto y eso es lo que Neruda pretende
con la aparición del hombre invisible al comienzo de sus odas. El hombre
invisible critica y se burla de la poética tradicional y de su principal
institución, la propensión de los viejos poetas al yo, a la centralización del
mundo desde su ombligo, a la perpetuación del sujeto burgués. Frente a esto
intenta instaurar un nuevo sujeto revolucionario caracterizado por la
invisibilidad, por la conversión del poeta en un hombre sin atributos
personales, que sirva sólo a los fines sociales, a la vez que renueve
absolutamente el listado de tópicos de la literatura, dando paso en ella a la
vida real y a los objetos corrientes. (Barchino, 2007, p. 168).
Pablo Neruda e a relação entre arte e
sociedade
Neste sentido, o poeta já não seria
o dono de sua própria poesia, pois sua obra prova e tempera a todos que a leem. Neruda clama por um ardor social-poético,
este que já moveu tantos escritores a engajarem-se nas lutas humanas, que fazia
com que não se calassem e não temessem a reação aos seus bombardeios poéticos
contra a opressão e a barbárie do cotidiano.
Assim, durante a Guerra Civil Espanhola,
Neruda não se torna um mero poeta “cantador de horrores”, mas principalmente um
“campeador”[3], que
sustenta e dá forças à luta do povo, sendo solidário com este e com outros
artistas e poetas que também sofreram a opressão deste período. Um exemplo de
poeta/profeta/vidente dessa época é o próprio Federico Garcia Lorca, que pagou
com a vida as críticas feitas ao intransigente sistema fascista; sua luta
contra o regime tornou o combate a esta ideologia, sua “profissão de fé”, e a
paixão de sua escrita.
É muito fácil recortarmos um fato na
história e o julgarmos, de forma descontextualizada, tal como ocasionalmente
acontece também com a obra dos poetas, analisados de modo distanciado e
indiferente. Dessa maneira, poesia e história estão entrelaçadas, e não há como
compreender um poeta e sua obra totalmente fora de seu contexto e de suas
experiências, culturais, espirituais, humanas e ideológicas.
A poesia é uma denúncia, e o poeta é um
delator!
Na Guerra Civil Espanhola, Neruda se
fez presente com sua voz e sua poesia, cantando a coragem dos fracos e
denunciando a covardia dos detentores do poder. Tendo sempre a ousadia e a
serenidade de um ser humano sensível, inconformado e pleno de esperanças:
inconformado no sentido de crer que a indignação também faz poesia, e que a
sensibilidade transforma o ser humano. Gabriele Mistral soube definir
sutilmente a personalidade de Neruda quando escreveu que:
Viva donde viva y lance de la manera que sea su mensaje, el hecho de
contemplar y respetar en Pablo Neruda es el de la personalidad. Neruda
significa un hombre nuevo en la
América , una sensibilidad con la cual abre otro capítulo
emocional americano. (Mistral,
1936, p. 75).
Neruda não se envolveu em ideologias políticas pela inescrupulosa sede de
poder, mas sim por acreditar na mudança social e na transformação do próprio
ser humano. A poesia é uma denúncia, e o poeta é um delator, que não quer
cantar apenas versos “melodramáticos”, como muitas vezes é definido por aqueles
que não conhecem sua obra e seu perfil (senão de modo superficial). Neruda
cantou a vida, denunciou tudo e todos que eram contra ela, como podemos
perceber neste fragmento: “¿Preguntareis
por qué su poesía no nos habla del sueño, de las hojas, de los grandes volcanes
de su país natal? Venid a
ver lo sangre por las calles, venid a ver lo sangre por las calles, venid a ver
lo sangre por las calles!” (España en el corazón, 2004,
p.24).
A questão é que a arte nos provoca para uma reflexão: “por que será que
tantas vezes o povo é a principal vítima?”. A preocupação central de um artista
comprometido é suprimir a distância que existe entre o povo e os intelectuais –
estes, muitas vezes, alheios (ou ignorando cinicamente) àqueles sobre os quais
tanto falam – o próprio povo. Assim, quem realmente vivencia e se aproxima –
neste caso, o poeta – dos anseios e inconformismos, dos que são oprimidos e
marginalizados, é capaz de sacudir tudo, utilizando poeticamente suas palavras.
Aristóteles, na sua Arte Poética, já
alicerçava este ponto de vista afirmando:
Em virtude da comunidade
de nossa natureza, são mais escutados os poetas que vivem as mesmas paixões de
suas personagens; o que está mais violentamente agitado provoca nos outros a
excitação, do mesmo modo que suscita a ira aquele que melhor a sabe sentir. (1959,
p.304).
Mas esta agitação violenta, esta ira
inconformada nas palavras do poeta não devem ser assimilados num tom pejorativo
porque a arma do poeta, intimamente Neruda, é a própria poesia; e tal como a
arte, sua intenção é provocar sentimentos, sensações, atitudes... É pôr em
movimento o ser humano por completo com seus sonhos, desejos, fantasias e ideologias, procurando sempre a sabedoria da valorização da
vida:
Es claro que los enemigos de la poesía siempre
pretendieron asestarle una pedrada en un ojo o un golpe de garrote en la nuca.
Lo hicieron en diversas formas, como mariscales individuales, enemigos de la
luz, o regimientos burocráticos que con paso de ganso marcharon en contra de
los poetas. Lograron la desesperación de algunos, la decepción de otros, las
tristes rectificaciones de los menos. Pero la poesía siguió brotando como una
fuente o manando como una herida, […] La poesía acompañó a los agonizantes y
restañó los dolores, condujo a las victorias, acompañó a los solitarios, fue
quemante como el fuego, ligera y fresca como la nieve, tuvo manos, dedos y
puños, tuvo brotes como la primavera, tuvo
ojos como la ciudad de Granada, fue más veloz que los proyectiles dirigidos,
fue más fuerte que las fortalezas: echó raíces en el corazón del hombre. (Neruda, 1979, p.163,
grifo meu).
Ao refletir de outra forma, o poeta,
primeiramente, é transformado por sua própria poesia – e esta transformação é
tão imensa que ele deseja que aconteça por onde ele passe. Neruda, no fundo,
não era nem de esquerda nem de direita (apesar de seus flertes políticos
ocasionais), mas sim um defensor da vida, da justiça e da paz, do direito de
todos terem sua dignidade respeitada, enfim, um espírito indistinto no enlace
poético-político:
He escrito “transitoriamente”, porque no existe poeta,
por grande que sea su compromiso con el mundo, que no vuelva pronto a sí mismo
y busque, en las vicisitudes del propio yo el fuego de su creación. Y esto
también le aconteció a Neruda. Sin embargo, ahí están, como insobornables
testigos de sus combates por la justicia del hombre, unos cuantos cientos de
páginas comprometidas, inexorablemente comprometidas. (Panero, 1990, p. 224).
Sua poética, porém, não se assentava num sentido utópico, mas no devir do
sonhar realizável, da luta real por uma sociedade mais justa e libertadora. Sobre Neruda, enfatizou o
escritor argentino Jorge Luis Borges:
Yo descreo de la política, no de la ética. Nunca la política intervino en
mi obra literaria, aunque no dudo que este tipo de creencias puedan engrandecer
una obra. Vean, si no, a Walter Whitman, que creyó en la democracia y así pudo
escribir Leaves of Gras, o a Neruda,
a quien el comunismo convirtió en un gran poeta épico. (in
Martínez, 2003, p.84).
Poeta ou político? Ou um ser humano envolvido na luta do povo!
Ainda podemos transitar
nesta dicotomia sobre Neruda, entre “homem-político” e “homem poeta” – mas se
nos aprofundarmos melhor, veremos que esta “divisão” simplesmente não existe.
Neruda foi, acima de tudo, um poeta que cantou o amor, a luta, as ideias de
liberdade e igualdade, atravessando diferentes fronteiras. Dessa maneira, seria
uma redução de pensamento se classificássemos Pablo Neruda entre um polo e
outro, “político versus poeta”, pois:
Neruda foi o poeta que tocou o
coração das pessoas, mas ainda apaixonado e entusiasta político. Foi comunista
ao miolo, mas não um fanático. Acreditava na sua luta, acreditava que esta
seria desembocada em um bem maior. Talvez se enganava, a falência do comunismo
real não era evidente como agora. Ele acreditava neste caminho para um mundo
melhor que haveria de trazer maior justiça para todos; senão até de uma
partilha de universal ternura. (Genisio, 2004, p. 54-55).
Neruda
via no comunismo um caminho para a igualdade e a liberdade, mas se enganou,
principalmente quando ele percebeu os caminhos obscuros que esta ideologia
estava tomando, ou seja, os da esquerda estavam se transformando em seres tão cruéis
quanto os da direita. Este radicalismo frenético levou o poeta a uma profunda
reflexão, pois, na essência ele não era um fanático político e sim um homem que
acreditava no autêntico ser humano.
É este o desabafo que ele faz em sua engenhosa autobiografia Confesso que vivi: “Quero viver em um
mundo onde os seres sejam somente humanos, sem outros títulos que este, sem
aprisionar a mente com regras, com uma palavra, com etiqueta.” (Neruda, 1983,
p.54).
Como afirmou o grande amigo de Neruda, Federico Garica Lorca, “La poesia
no quiere adeptos, quiere amantes”. Diferente de um partido político, a poesia
não necessita de adeptos, ou seja, partidários, simpatizantes, porque ela não é
uma ideologia ou uma fugaz opção – verdadeiramente, ela é um ato de amor, ela
deseja amantes, até porque ela é o canto, o desejo do ser humano pela vida e
pela transformação da realidade. Ela toca os lábios dos inconformados, dos
apaixonados que não aceitam a vida com nuances imutáveis, pois, a poesia, só
ela é que penetra a mais profunda realidade. E só voa mais alto quem já foi
muito fundo, quem não conhece apenas a si mesmo, mas também os outros e por
isso é capaz de tocá-los com as suas palavras. No livro Neruda por Skármeta, o escritor faz uma introdução instigante sobre
este enlace do poeta, seus versos e a política: “Não sei se foi um grande
amante, mas sua poesia fez os casais se amarem. Não sei se foi um grande
político, mas semeou sua palavra em tempos de conflito e com ela animou a
esperança em luminosas cidades de justiça.” (Skármeta, 2005, p.11). Nas
palavras do próprio Neruda (1980, p. 335): “Porém a vida e os livros, as
viagens e a guerra, a bondade e a crueldade, amizade e a ameaça, fizeram mudar
cem vezes o traje de minha poesia.” Por isso, para ele: “Coube-me viver em
todas as distâncias e em todos os climas, coube-me padecer e amar como um homem
qualquer de nosso tempo, amar e defender coisas profundas, padecer os pesares
meus e a condição humilhada dos povos.” (Neruda, 1980, p. 335).
Transfiguração poética
Langlois (1978, p. 131), faz um estudo sobre uma autobiografia poética e
política de Neruda e observa que o fato de Neruda estar envolvido por uma
“ideia política”, essa não serviu para que o tornasse apenas um integrante de
partido comunista mas, de fato, esta experiência contribuiu para “uma
verdadeira transfiguração poética”. Pois, dessa forma, percebemos que a
vivência do poeta durante a Guerra Civil Espanhola não o influenciou apenas nos
relatos testemunhais, mas o lançou também como agente participativo desta luta,
deixando marcas irreversíveis em sua personalidade e em seus versos. Sua
atitude perante as barbáries foi de um sensível artista indignado, assim como
ele mesmo escreve:
Porque de tantas vidas
que tive estou ausente e sou, ao mesmo tempo sou aquele homem que fui. O ego
cruel se abre com a guerra civil espanhola. “À minha pátria cheguei com outros
olhos /que a guerra me pôs / por baixo dos meus.” (Neruda in Langlois, 1978, p.127-28).
Nesse sentido, basicamente, não há
como analisar a vivência do poeta separadamente de sua obra: elas fazem parte
do mesmo cismo, sendo que é este o ponto explorado por Amado Alonso em sua obra
Poesia e estilo de Pablo Neruda, em
que Langlois (1978, p.106-107) ressalta que:
O verdadeiro árduo, ma
simultaneamente útil, e que Alonso fez nesta obra com Neruda, é mostrar a
obscura interseção da experiência e da linguagem, e explicar porque tais
maneiras de sentir o mundo e a vida deviam engendrar tais formas de expressão,
e vice-versa.
Assim, o envolvimento de Neruda com
o Partido comunista, a sua voz atuante na Guerra Civil Espanhola constituiu-se
de uma vivência humana e ideológica que fez com que ele deixasse de ser apenas
um poeta testemunhal para se tornar um “poeta delator”, não um divulgador do
marxismo, até porque não encontramos profundidade desta filosofia em suas
poesias. Portanto, estas denúncias não eram embasadas numa intenção de adquirir
“poder”; afinal, iria um fanático ideológico, um obcecado político se preocupar
com as atitudes drásticas e violentas que eram realizadas a favor de uma
“vitória” esperada? São estes os caminhos obscuros que esta disputa entre
esquerda e direita estavam tomando, quando ele escreve “Tierras ofendidas” de
1937, em España en el Corazón.
E nesta luta contra a barbárie nazista, representante da extrema-direita,
Neruda não se cala quando denuncia os destroços causados pelos bombardeios –
quem sofria as consequências não eram os detentores do poder e sim o povo, que
lutava como podia e morria quando menos esperava. Os ataques, como vimos, eram
feitos em dias de sol, quando menos se esperava, e vidas eram destruídas na
claridade do dia. E o poeta o denuncia poeticamente: portanto, como podemos
chamar esse clamor de propaganda política? Como podemos dividir este poeta?
Qual seria a experiência de um verdadeiro ser humano sensível perante tanta
violência? Será que esta indignação é apenas fruto de uma ideologia política? É
refletindo sobre estes questionamentos que podemos perceber a presença humana
do poeta perante as terríveis destruições, através de sua própria poesia, como
esta a seguir, “Madrid, 1937”, em España
en el corazón:
Não há nesta cidade,
Onde está o que eu amo,
Não há pão nem luz: um cristal frio cai
Sobre secos gerânios. De noite sonhos negros
Abertos por obuses, como bois sangrentos:
Nada na alba das fortificações
Apenas um carro quebrado: musgo, já silêncio de idades
Em vez de andorinhas nas casas queimadas,
Dessangradas, vazias, em portos até o céu:
Começa o mercado a abrir as portas esmeraldas,
E as laranjas, o pescado,
Cada dia atraídos através de sangue,
Se oferecem às mãos da irmã e da viúva.
Cidade em luto, escavada, ferida,
Rota, golpeada, esburacada, cheia
De sangue e vidros partidos, cidade sem noite, toda
Noite e silêncio e estampido e heróis,
Agora um novo inverno mais nu e mais só,
Agora sem farinha, sem passos, com lua
De soldados
A tudo, a todos
Sol pobre, sangue nosso
Perdido coração terrível
Sacudindo e chorando. Lágrimas como bolas pesadas
Caíram na tua escura terra fazendo barulho
(Neruda, 2004, p.117)
Consideramos assim, que é um
equívoco ao afirmarmos que Neruda se utilizou da poesia para divulgar a
ideologia comunista, ou propriamente a filosofia marxista. Quando o poeta
escreve España en el corazón, seu
livro mais violento e apaixonado, sua intenção não era reforçar fanaticamente o
ideal do comunismo, mas, como já citamos nos escritos anteriores, ele via nesse
partido um caminho para a justiça e a igualdade. Sua preocupação não era com a
propaganda política e sim com o sofrimento do povo inocente que estava sendo
bombardeado, destruído por uma elite despreocupada com o interesse destes, e
que privilegiavam apenas intenções particulares, como podemos perceber na sua
poesia “Almería” (Neruda, 2004, p.95):
Um prato para o bispo, um
prato triturado e amargo, um prato com restos de ferro, com cinzas, com
lágrimas, um prato submerso, com soluços e paredes caídas, um prato para o
bispo, um prato de sangue da Almería. [...] um prato para o coronel e a esposa
do coronel, numa festa de guarnição, em cada festa, sobre os juramentos e os
cuspes, com a luz de vinho da madrugada para que o vejais tremendo e frio sobre
o mundo.
Sim, um prato para todos
vós, ricos daqui e de lá, embaixadores e ministros, comensais atrozes, senhoras
de confortável chá e pronúncia: um prato destroçado, transbordado, sujo de
sangue pobre, para cada manhã, para cada semana, para jamais, um prato de
sangue de Almería, diante de vós, sempre.
Muitos lutam com armamentos e
bombas, Neruda lutou com uma arma maior: a Poesia. Na Guerra Civil Espanhola,
com España en el corazón – e como
faria décadas depois, no conflito civil chileno com Incitação ao Nixoncídio, o
poeta dá seu testemunho libertário. Nesse último livro, aliás, ele faz uma
introdução decisiva explicando que: “A História tem provado a capacidade
demolidora da poesia e dela faço uso sem nenhuma cerimônia.” (Neruda, 1980, p.
IX).
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