A TRADUÇÃO COLETIVA DE 'ABRIL DESPEDAÇADO' NO ÂMBITO DO CINEMA LITERÁRIO BRASILEIRO PÓS-RETOMADA


Augusto Rodrigues da Silva Junior
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF)
Lemuel da Cruz Gandara
Mestre em Literatura pela Universidade de Brasília (UnB)
                                                                                  

Resumo: O artigo faz uma análise comparativa entre o romance Abril despedaçado (1978),escrito pelo albanês Ismail Kadaré, e a tradução coletiva homônima, dirigida por Walter Salles, no contexto do cinema literário brasileiro. Analisamos os recursos cinematográficos que permitiram manter elementos potencias para a concepção artística, bem como o vínculo estabelecido entre o filme e a proposta iniciada na Pós-Retomada, momento fronteiriçoque aponta um novo horizonte estético e político para o cinema nacional.
Palavras chave:Abril despedaçado;Cinema literário brasileiro;Tradução coletiva.

Abstract: The paper makes a comparative analysis between the romance Broken April (1978), written by the Albanian Ismail Kadaré, and the homonymous collective translation directed by Walter Salles, in the context of Brazilian literary cinema. We analyzed the cinematographic resources that have safeguarded potential elements for the artistic point of view, and the link established between the film and the proposal initiated by the Post-Retomada, frontier moment pointing a new aesthetic and political horizon for Brazilian cinema.
Keywords: Broken April;Brazilian Literary Cinema;Collective Translation.


Introdução 
A partir da relação interartes instaurada na recepção de obras literárias e nas respostas criativas de leitores que transitam na sétima arte e criam filmes autônomos em um processo dialógico que se torna basilar para o que denominamos tradução coletiva, este artigo se concentra na análise da transposição para o cinema do romance Abril despedaçado (Prilli i Thyer), escrito pelo albanês Ismail Kadaré. Além disso, procuramos situar o filme homônimo realizado por Walter Salles e lançado em 2002 no âmbito da Pós-Retomada do cinema brasileiro. O longa-metragem será comparado com o texto literário fonte levando-se em consideração os múltiplos arranjos do romance de Kadaré organizados em uma obra única, fruto da tradução coletiva. Logo, o corpus será estudado com base na tradução e nas “formas” assumidas pela narrativa: romance (partida) e filme (chegada).

Os apontamentos teóricos de Mikhail Bakhtin serão de grande importância para entendermos esse processo de tradução fundamentado no diálogo. Nessa perspectiva, compreendemos que o enunciado literário (neste caso, o romance), além de estar inserido num diálogo com o outro no contexto de sua primeira recepção, avança no tempo, 23 anos depois, e se insere em outro momento discursivo, num processo de dialogização que vai além do texto escrito e se apresenta habitando o “grande tempo” da cultura – em escritos, romance e roteiro, e como filme. Isso dá continuidade ao diálogo e nos permite realizar “[...] a interpretação como transformação do alheio no ‘meu-alheio’” (Bakhtin, 2003). Essa transformação, nas transposições de obras da literatura para o cinema, pode ser teoricamente estudada como tradução coletiva.

Tradução coletiva e cinema literário brasileiro Pós-Retomada
As traduções interartes abrem espaço para uma profunda reflexão sobre o caráter estético. Gadamer afirma que “toda tradução já é, por isso, uma interpretação, e inclusive pode-se dizer que é a consumação da interpretação, a qual o tradutor deixa amadurecer na palavra o que se lhe oferece” (GADAMER, 1999, p. 560). Percebemos que o tradutor é, antes de tudo, um intérprete, que, antes de o sê-lo, é um leitor. Entretanto, quando esse raciocínio se amplia para alguém que se compromete a traduzir alguma obra literária esteticamente para outro idioma,

não há outro remédio a não ser dar-se conta da distância entre o espírito da literalidade originária do que é dito e o de sua reprodução, distância que nunca chegamos a superar por completo. Neste caso, o acordo não se dá realmente entre os companheiros de diálogo mas entre os intérpretes, que estão realmente capacitados para se encontrar realmente num mundo comum de compreensão. (GADAMER, 1999, p. 560)

O autor nos lança uma série de dimensões do processo tradutório. Temos o acordo feito pelo intérprete com vistas a superar os eventuais problemas na passagem de uma língua para outra – ou, no nosso caso, de uma mediação para uma mídia. Gadamer continua e infere que a tradução não é apenas o ato de reproduzir o “processo anímico original do escrever, mas uma reconstituição do texto guiada pela compreensão do que se diz nele [...] a tradução implica em reiluminação. Quem traduz, tem que assumir a responsabilidade dessa reiluminação” (GADAMER, p. 562).
Ao dispor que o tradutor não está comprometido com a mera reprodução, mas sim com a compreensão do texto em uma atividade que reilumina para outros leitores, Gadamer busca tirar o peso da fidelidade ao texto fonte que esse ato, de forma torpe, cobra a alguns tradutores. Assim, a tradução coletiva cinematográfica é justamente este modus operandi em condição de multiplicidade: são reiluminações que reverberam no todo do acabamento da obra à espera, ainda, do inacabamento, do público, da crítica, da difusão pela televisão etc.Diante desse cenário, não se deve esquecer que o texto literário, além de conteúdo também é forma, fato esse que termina por desafiar qualquer ato tradutor.
A tradução do literário para o cinema exige várias mãos, múltiplas vozes e uma multiplicidade de ações e olhares. Essa ideia da coletividade se deve ao fato de o resultado totalizante de um filme em sua projeção ser composta por várias etapas durante a concepção da obra. É necessário perceber que todos os envolvidos em uma tradução coletiva de uma obra literária reverberam no resultado final. A trilha sonora é resultado de uma leitura musical, a fotografia é uma leitura das cores e luzes, a sonoplastia é uma leitura de/do som, a interpretação é uma leitura corporal – não exatamente para o público, mas para pessoas e máquinas captadoras, o roteiro é uma leitura criativa do texto verbal – seu espelho, seu duplo, sua outra face.
Sendo assim, o filme é o resultado de diversas leituras e vozes que nasceram de um contato íntimo com a obra literária e foram montadas (mais um processo) tendo em vista um resultado homogêneo para a plateia (mais uma etapa). Então, consideramos que a tradução coletiva é o resultado de um movimento dialógico entre discursos em um processo ativo de respondibilidade, implicando: recepção, criação, opções, enformações, estilizações etc.A tradução coletiva coloca em prática o pensamento dialógico de Bakhtin, conforme ele, “cada palavra (cada signo) do texto leva para além dos seus limites. Toda interpretação é o correlacionamento de dado texto com outros textos. O comentário. A índole dialógica desse correlacionamento” (BAKHTIN, 2003, p. 400). Esse pensamento se vincula ao de Gadamer, dessa forma, o filme (como um comentário que traz uma interpretação e uma reposta) se transforma em uma arena discursiva e dialógica onde se encontram o texto, os leitores, os autores e os tradutores. 
Todas essas nuances podem ser apreendidas na recente contribuição entre a literatura e o cinema brasileiro. Apreendemos esse contato interartes como cinema literário. Esse conceito é habitado “por filmes com roteiros originais ou transpostos da literatura que se puseram a problematizar e traduzir no ecram questões que surgiram nas palavras dos escritores” (GANDARA, 2015, p. 13). Esse pensamento na dimensão artística do nosso país pode ser reformulado como cinema literário brasileiro, noção que congrega e problematiza a literatura, seja ela estrangeira ou nacional, no âmbito das obras fílmicas criadas e produzidas no nosso país desde suas origens.
Nas últimas décadas, o cinema brasileiro passou por períodos que marcaram sua história e o definiram para gerações vindouras. Mais recentemente, tivemos o início da Pós-Retomada (2002). Em 2001, com o objetivo de ampliar às produções nacionais que já vinham crescendo na com a estabilidade da Retomada (1992-2002), foi criada a Agência Nacional de Cinema (ANCINE), iniciando seus trabalhos efetivos em 2002. No mesmo passo dessa nova estratégia estatal, também em 2002, mais especificamente em 30 de agosto, o filme Cidade de Deus, tradução coletiva do livro de Paulo Lins, foi lançado nos cinemas. O longa-metragem dirigido por Fernando Meirelles conseguiu um público de mais de 3 milhões de espectadores apenas no Brasil e chamou a atenção internacional, recebendo mais de 30 prêmios pelo mundo e sendo lançado em todos os continentes.
No ano seguinte, o professor Ismail Xavier, no prefácio do livro Cinema de novo: um balanço da retomada, escrito pelo crítico Luiz Zanin Oricchio, percebeu que novos modelos de produção estavam se organizando, “a produção se adensou e coleciona um bom número de títulos de impacto [...], a comunicação com o público, no biênio 2002-03, mostra que não é delírio pensar em novos patamares na relação do cinema com o mercado” (2003, p. 15). A partir daí, no meio acadêmico, começou a circular o termo Pós-Retomada para definir o cinema feito e lançado comercialmente no Brasil depois de 2002.
Assim, percebemos um diálogo político e estético para que surgisse uma nova fase no cinema brasileiro. Em 2002,26 filmes que foram lançados no cinema(dados do Observatório do Cinema e do Audiovisual – OCA). Desse conjunto, Cidade de Deus, O invasor e Abril despedaçado se tornaram obras basilares do nosso cinema e ajudam a compor um panorama de filmes que se vinculam à literatura e elevam o cinema nacional a novos parâmetros, como foi com Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963) e O quatrilho (Fábio Barreto, 1995). Dessa forma, podemos conjecturar algumas ideias sobre aspectos da tradução coletiva do romance Abril despedaçado em um momento de transição do cinema literário brasileiro.

A tradução coletiva de Abril despedaçado
O romance albanês Abril despedaçado é composto por três histórias distintas que acontecem quase simultaneamente nas Montanhas do norte da Albânia, em algum momento da primeira metade do século XX, e se conectam graças aos personagens e às regras do Kanun[1]. A primeira história trata da vendeta entre as famílias Berisha e Kryeqyq. O derramamento de sangue entre elas iniciou há mais ou menos 70 anos, após um dos membros dos Kryeqyq matar um amigo que se hospedara durante uma noite na Kullë – residência construída com pedras nas montanhas albanesas – dos Berisha. Desde então, como prega o Kanun, a família dos Berisha é obrigada a vingar o morto que estava sob sua “proteção”. Por sua vez, os Kryeqyq podem vingar o membro assassinado, o que leva a uma sucessão de tocaias e mortes.
Na primeira história, Gjorg, 26 anos, último filho homem dos Berisha, é incumbido de matar o Zef Kryeqyq, assassino de seu irmão Mëhill. Bessian e Diana Vorps são os protagonistas da segunda história, eles se casaram em Tirana, capital da Albânia, e viajaram em lua mel para as montanhas do norte do país. A terceira e última história é a de Mark Ukacjerra, chamado de feitor de sangue do Kanun. É ele que, na Kullë de Orosh, recebe de Gjorg, Bessian e Diana como hospedes.
A obra fílmica, roteirizada por Walter Salles, Karin Aïnouz e Sérgio Machado, é na focada disputa entre as famílias Breves – irônica opção genealógica-nominal – e os Ferreira por terras no sertão nordestino brasileiro durante a década de 10 do século XX. Após o assassinato de Inácio Breves, filho mais velho da família, Tonho Breves, o filho do meio, para limpar a honra da família, tem o direito de matar o assassino de seu irmão. Para isso, arma uma tocaia e consegue matar seu oponente, Isaias Ferreira. Logo depois, após receber a trégua dada pela família Ferreira, tempo que duraria o espaço entre duas luas cheias, Tonho, intermediado pelo irmão mais novo, Pacu, conhece Clara e Salustiano, artistas de circo que passam pela região. Clara, afilhada de Salustiano, se apaixona por Tonho, que corresponde ao sentimento. Entre os tempos de vingança há um tempo para a arte e o amor. O elemento circense aqui colore o filme, mas, também, é a voz que tira os personagens do foco familiar. Os artistas populares levam Pacu a ter a experiência de/com livro (mesmo sem saber ler) e Tonho vive a experiência da itinerância.
O texto narrado e os diálogos, no filme, se distanciam substancialmente do romance. Em compensação, as imagens procuram resolver esse problema, elas oferecem o que seria mais uma sugestão através de metáforas, de objetos do cenário e de efeitos sonoros do que a reprodução integral de trechos do livro ou a miseenscene que procura ser encenada seguindo as descrições do romance. Talvez esses, entre outros aspectos, influenciaram a escolha do termo “inspirado” para definir o roteiro da obra nos créditos do filme.
A tradução coletiva centra suas atenções na história de Tonho e do irmão Pacu, esse último personagem, o qual é o mais consciente da realidade que o cerca, o peso da tradição familiar e que não existiria (objetivamente) no livro. Em certo momento do filme, Pacu ironiza o nome do vilarejo onde mora, “Riacho das alma”. O menino diz a Salustiano que o riacho “secô, só ficôas almamêmo” (00:29:37). O tom de voz do ator Ravi Ramos Lacerda evoca lucidez não somente sobre o nome do lugar, mas também sobre sua própria família e a condição em que vivem. Além disso, o nome Pacu, segundo Clóvis Chiaradia (2008) no Dicionário brasileiro de palavras indígenas, significa “O comer despertar” em tupi, fato que amplia ainda mais a postura consciente do personagem na narrativa, afinal Pacu já despertou para a inutilidade da disputa entre as famílias.
O filme inicia em finis res justamente com o menino sem nome (como no Vidas Secas, de Graciliano Ramos), apelidado de Pacu, indo ao encontro da morte. Em sua fabulação poética peculiar, ele lembra a história que está, exatamente, prestes a começar. Pensando no dialogismo em sua plena estilização, consideramos que a inclusão dessa criança deu outra dimensão à característica trágica da obra literária. A morte deste “menino mais novo” no lugar do irmão e fora da ordem traçada pela vingança “permitiu” (no plano do enredo e da trama genealógica) que o personagem Tonho escapasse da morte certa. No livro, por sua vez, Gjorg, o persoangem equivalente, não teve a mesma sorte.
Mesmo com o viés dado, na tradução, à história de Gjorg, as outras duas narrativas são reformuladas para funcionarem ativamente na obra cinematográfica. O casal Vorps é reconfigurado como Salustiano e a Afilhada Clara. Já Mark Ukacjerra não aparece enquanto personagem, e sim como ideia.No capítulo 4 do livro, Ukacjerra, em suas reflexões, desnuda o caráter financeiro do Kanun e revela o objetivo final daquele conjunto de leis medievais, que visava quase exclusivamente manter os padrões de vida dos que habitavam a Kullë de Orosh. Mark é a figura máxima de poder sobre o Kanun, “o maior animador de vendetas”. Em várias passagens de sua história, termos como máquina e moinho são empregados. Por exemplo, Mark afirma que o mercado das mortes é “um antiquíssimo moinho que moía noite e dia” (Kadaré, 2007). No filme, as observações que Mark faz e as alusões à engrenagem do Kanun podem ser percebidas, metaforicamente, na bolandeira (fig. 01) que a família Breves usa para moer a cana, e, logo depois, produzir a rapadura.


Figura 01:A bolandeira em Abril despedaçado (01:07:33)

A bolandeira foi construída e colocada em cena pela equipe responsável pelo desenho de produção do filme liderada por Cassio Amarante. De acordo com Vincent LoBrutto (2002), o desenhista de produção trabalha o roteiro na perspectiva das representadas por meio da paleta de cores, das estruturas arquitetônicas dos cenários, das escolhas das locações. O desenhista de produção é a parte mais importante do departamento de arte de um filme, pois ele é responsável pelo seleção, criação e construção dos cenários, e pela locação e ambientação de um filme (LoBRUTTO, 2002). A partir disso, a escolha da cidade Ri de Contas, na Bahia, como locação do filme, a ambientação das duas fazendas e da cidade de Riacho das Almas, além da decoração do set demonstram a criação de Amarante a partir do livro e do roteiro do filme. Nisso se destaca a bolandeira, artefato que, assim como a mesa das refeições, reúne toda a família e reúne em si as características da personagem Mark Ukacjerra.
 A certa altura do filme, os bois que movem a bolandeira, tão acostumados com aquela rotina de trabalho, movimentam a engrenagem sem que ninguém os comande, como se estivessem alheios ao mundo e centrados apenas naquele ofício árduo. A figura da bolandeira é tão icônica no filme que cabe a ela a função de abertura da obra, momento em que são apresentados os créditos iniciais e a função dos personagens no negócio familiar. A máquina que produz o doce é, na devida proporção, a mesma que ajuda a produzir o amargo, considerando que ela é movimentada para garantir a sobrevivência e a propriedade, condições que, por sua vez, são disputadas através das vendetas entre os Breves e os Ferreiras. Ou seja, a bolandeira é nutrida pelo sofrimento e sacrifico dos bois, o Kanun se movimenta econômica e financeiramente a base do sofrimento e do sacrifício dos montanheses. Essa explicação ajuda a compreender como o personagem Mark Ukacjerra foi traduzido para o filme na forma de ideia e não como outro personagem na trama.
No campo da tradução coletiva, este é um elemento tradutório peculiar se pensado em perspectiva bakhtiniana. Ao invés de representar o próprio personagem-ideólogo a criação cinematográfica opta por colocar a ideia em transformação ao longo da história. A “ideia-ideológica” ganha proporções plenas à medida em que as situações vão se tornando insustentáveis e os dois últimos filhos do Breves respondem de maneira consciente ao destino a eles impostos, como podemos perceber no diálogo abaixo, momento em que Pacu tenta persuadir Tonho a desistir da tocaia:

Pai – O sangue amarelô. Tonho, tu conhece a tua obrigação.
Pacu – Vai não, Tonho.
Mãe – A alma do teu irmão ainda não encontre sossego.
Pai – Ele fez o que tinha que fazer e agora é a vez de Tonho.
Pacu – Vai não.
(00:09:28)

As ações, no filme, se passam debaixo do sol escaldante no nordeste brasileiro, enquanto, no livro, o fim do inverno albanês provoca chuvas finas e quedas de neve que se intercalam durante o dia e a noite. Em relação à geografia, no filme, a superfície é plana, seca e rochosa. Por sua vez, o romance se passa nas montanhas. Embora sejam condições climáticas diferentes no livro e no filme elas, também, coparticipam da força narrativa. No início do filme, Pacu diz que o sol é tão forte a ponto de “às vezes a cabeça ferver igual rapadura no tacho” (00:03:56). Não é à toa que o título da obra na Inglaterra e nos Estados Unidos é Behindthe Sun (Atrás do sol). Esse fato revela que a primeira e notória mudança no processo transposição foi não traduzir o filme para o mesmo contexto climático e geográfico da obra literária, mas sim trazê-la para a atmosfera brasileira. Mesmo em outro país, em outra configuração climática, a atmosfera, nos dois casos, também sopesa na tradição trágica da vingança.
O clima é profundamente captado pelo diretor de fotografia Walter Carvalho. A luz do sol parece incontrolável e, à noite, a lua cheia distante pouco clareia os ambientes. O sol atravessa as portas, janelas e frestas da fazenda dos Breves, como podemos ver na figura 02. Ao mesmo tempo que ilumina, também castiga e faz com que o sangue das camisas dos mortos amarele mais depressa.


Figura 02: A sala de produção da rapadura iluminada pelo sol (00:04:06)

A fotografia de um filme é uma escrita com a luz. Nesse sentido, Carvalho é traduz o texto literário em iluminação. Segundo Edgar Moura (1999), as imagens que imaginadas pelo leitor de um romance são uma essência para o trabalho do fotógrafo, pois é partir “dessas primeiras imagens que começará a nascer o conceito visual do filme”. Essa reflexão efetiva o lugar de Walter Carvalho como leitor e, depois, como tradutor do visual das imagens imaginadas por ele e dialogadas com os outros leitores/tradutores no processo de tradução coletiva do inverno albanês para o sol do nordeste brasileiro.
Para encaminhar o desfecho desta discussão, o tempo estilizado pode esclarecer as aproximações até então delineadas. A obra literária se inicia no dia 17 de março, o ano não é especificado, mas os indícios levam a crer que seja na primeira metade do século XX, mais especificamente depois da invenção do avião, já que este veículo é mencionado duas vezes no livro. Por sua vez, o filme se inicia em fevereiro de 1910, o dia não é confirmado. Este mês refere-se ao período que marca a tocaia feita por Tonho e a morte de Pacu – situações inseridas no tempo entre uma lua cheia e outra.
Nessa discussão sobre o tempo, é interessante comparar o raciocínio feito, nas duas obras, sobre o tempo de vida que resta a Gjorg e Tonho. No livro, o narrador diz:

Trinta dias murmurou. Sempre encolhido, na penumbra, como um bandoleiro. O tiro do fuzil na cerca da Estrada Grande cortara de um golpe a sua vida em duas: a parte dos vinte e seis anos até então e a parte de trinta dias que começava agora – de 17 de março até 17 de abril. Depois viria o esvoaçar de morcego, que ele já não contava (Kadaré, 2007)

Na tradução, o Velho cego, avô de Isaias Ferreira, em uma conversa após o velório e o almoço, antes de dar a trégua entre as duas luas e amarrar a fita negra no braço direito do rapaz, diz a Tonho

¾ A tua vida agora tá dividida em duas: os 20 anos que tu já viveu e o pouco tempo que te resta para viver. Já conheceu o amor? Nem vai conhecer. Tá vendo aquele relógio ali? Cada vez que ele marcar mais um, mais um, mais um ele vai tá te dizendo: menos um, menos um, menos um...(00:27:25)

Por mais que haja notáveis diferenças entre livro e tradução coletiva a idade (Gjorg, 26 anos, e Tonho, 20 anos), a voz que fala o texto (narrador no livro e Velho cego no filme) , a mensagem sobre o pouco tempo que separa os personagens da morte, permanece inalterada. Entretanto, vale ressaltar que, no livro, o tiro de fuzil serve como metáfora para representar os dois momentos da vida de Gjorg. Em contrapartida, na obra fílmica, além do texto dito pela personagem do Velho cego, é acrescentado um efeito sonoro: no momento em que se inicia o diálogo entre os dois, o som dos ponteiros do relógio de parede da casa dos Ferreira aumenta, e esse mesmo som cresce à medida que o Velho cego traz o relógio, símbolo de morte e vingança, para o seu discurso.
Diante de tantas mudanças na tradução coletiva, destacamos um aspecto que se manteve inalterado no processo: a camisa ensanguentada ao vento (fig. 03). A relação entre o morto e a camisa, o fato de a mãe poder lavar a camisa manchada de sangue apenas um dia depois da vingança, bem como o poder que o espectro da camisa tem sobre os vivos, não foram alteradas no momento de tradução coletiva. No livro, o narrador afirma que “quando as manchas de sangue da camisa começam a amarelar, era indício seguro de que o morto se sentia atormentado pela demora da vendeta” (Kadaré, 2007, p. 19); no filme, o pai apenas diz “o sangue começou a amarelar” (00:01:35).


Figura 03: A camisa ensanguentada ao vento(00:01:35)

A camisa manchada com o sangue do morto é um elemento do figurino. Esse artefato, segundo Marcel Martin (2005), é um elemento fílmico não específico, pois pode ser apropriado por outras artes como o teatro. Entretanto, quando usado no contexto do filme, o figurino significa algo que também movimenta a narrativa cinematográfica. De acordo com a teoria de Martin, os figurinos idealizados por Cao Albuquerque para Abril despedaço representam características simbólicas, já que “têm como missão traduzir simbolicamente os caracteres, os tipos sociais e o estado de alma das personagens” (2005). Albuquerque não buscou traduzir em figurinos uma época datada no tempo, e sim questões de cunho emocional. Ou seja, além do desassossego do morto no pós-morte, a camisa traz consigo o dever da vingança para Tonho, que, por sua vez, leva à manutenção das tocaias e à ruina dos Breves.
Na parte final do livro, Gjorg, lutando contra o tempo para chegar em casa antes de Bessa terminar, resolve parar diante de uma cachoeira e contemplá-la: “quando se aproximou e a viu, deteve-se maravilhado. Jamais em sua existência vira uma cachoeira tão fascinante” (Kadaré, 2007, p. 165). A cachoeira foi a última coisa bela que Gjorg vira em vida, logo depois é assassinado. No filme, Tonho, após a morte do irmão e o abandono do lar, contempla o mar (fig. 04). Essa imagem ganha significado profundo para Tonho. Pacu, que morrera no lugar do irmão, amava o mar mesmo sem ter o conhecido, fato bem marcado na história inventada e intitulada: A Sereia e o Menino.


Figura 04: Tonho contempla o mar (01:31:21)

O mar, para Tonho, representa o próprio Pacu e seu sacrifício. No universo do personagem, a morte do menino que sonha com o mar permitiu que Tonho continuasse vivo, se livrasse da maldição genealógica e, ainda, numa longa tradição de narrativas de retirantes, seu encontro com o mar significa o prenúncio de algo positivo e vital. Essa narrativa de retirantes comprova que o filme Abril despedaçado traz para a Pós-Retomada elementos da tradição cinematográfica brasileira de Vidas secas, Deus e o diabo na terra do sol (Glauber Rocha, 1964), Bye ByeBrazil (Cacá Diegues, 1980), A hora da estrela (Suzana Amaral, 1985), Central do Brasil (Walter Salles, 1997) entre outros que filmaram os despertares e deslocamentos de personagens que estão às margens dos grandes centros urbanos.

Considerações finais
Os pontos aqui comparados e discutidos auxiliam no entendimento da tradução coletiva. A questão não é a impressão de distanciamento entre o livro e o filme, mas as soluções encontradas que estabelecem o diálogo entre as obras. Na estilização de sentimentos e ideias, na aura facultada pela imersão no universo literário, emergem ideias e imagens em situação de reprodutibilidade técnica. As ideias do livro em outra forma artística e numa cultura e espaços distantes retratam o homem humano e seus destinos nem sempre construídos por eles mesmos.
O cinema literário brasileiro, nesta via de dupla respondibilidade entre palavras e recursos, permite que a teoria da tradução coletiva avance nas reflexões entre o movimento e o fenômeno que leva obras literárias para o cinema não como uma simples adaptação que pretende representar a obra em outra mídia, mas como resposta no plano dialógico conduzida por leitores-tradutores ativos. Essa releitura criativa, realizada por vários profissionais do cinema, materializa múltiplas visões do romance, lido por meio das imagens e traduzidas pela linguagem cinematográfica. Fato que cria, assim, uma tradução audiovisual para as cenas, as ideias e as palavras da literatura dentro do cinema literário brasileiro Pós-Retomada.

Referências bibliográficas
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BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CHIARADIA, Clóvis. Dicionário de palavras brasileiras de origem indígena. São Paulo: Limiar, 2008.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
GANDARA, Lemuel da Cruz. Jane Austen no cinema literário: tradução coletiva e dialogismo no grande tempo das artes. Dissertação (Mestrado em Literatura). Universidade de Brasília, Brasília, 2015. Disponível em: http://repositorio.unb.br/handle/10482/18009. Acessado em: 30 de junho de 2015.
GANDARA, Lemuel da Cruz; SILVA JR. Augusto Rodrigues. O cinema literário brasileiro: Abril despedaçado, uma tradução coletiva. Disponível em: <http://projetos.extras.ufg.br/>. Acessado em: 16 de junho de 2014.
KADARÉ, Ismail. Abril despedaçado. Trad. Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
LoBRUTTO, Vincent. The filmmaker’s guide to production design. Nova York: Allworth Press, 2002. 
MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Brasiliense, 2005.
MOURA, Edgar. 50 anos de luz câmera e ação. São Paulo: Senac, 1999.
XAVIER, Ismail. In ORICCHIO, Luiz Zanin. Cinema de Novo: Um Balanço Crítico da Retomada. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2003.

Referência fílmica
ABRIL DESPEDAÇADO. 2002. Direção: Walter Salles. Brasil, França e Suíça. 35mm.Tempo de duração: 105 minutos.







[1] O Kanun é um conjunto de leis tradicionais que rege o modus vivendi dos montanheses da Albânia desde o século XV. Até a primeira publicação editorial dos códigos, no século XX, eles eram passados para as gerações futuras através da oralidade. O Kanun é composto por 1.262 códigos e influência diretamente a igreja, a família, o trabalho e a relação com os bens materiais. Esse conjunto de leis rege, também, os montanheses da Sérvia, de Montenegro, de Kosovo e da Macedônia. As vendetas praticadas conforme o código foram registradas até o início da década de 90 do século XX. A dificuldade em extinguir as leis mortais do Kanun se deve ao fato de as montanhas serem um lugar de difícil acesso para a justiça do Estado. (Lima, 2008).