ANTROPOMORFISMO E ZOOMORFISMO EM 'VIDAS SECAS'


Ananias Agostinho da Silva
Doutorando em Estudos da Linguagem
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Resumo: Este trabalho analisa e reflete sobre os processos de zoomorfização e antropomorfização das personagens do livro Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Especialmente os processos verbais mentais e a atribuição de adjetivos que caracterizam prototipicamente seres humanos contribuem de forma direta para a construção do processo de humanização da cachorra Baleia. Por sua vez, Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos são animalizados em razão de aspectos como a linguagem rudimentar (composta principalmente de monossílabos e onomatopeias), as desigualdades sociais (ilustradas na obra pelo desejo inalcançável de Sinhá Vitória possuir uma cama igual à de Seu Tomás da Bolandeira), os desmandos de uma autoridade arbitrária (o Soldado Amarelo, o patrão de Fabiano) e, principalmente, as péssimas condições climáticas provocadas pela seca.

Palavras-chave: Antropomorfização. Zoomorfização. Vidas Secas.

Abstract: This paper analyzes and reflects on the zoomorphization processes and anthropomorphization the characters in the book Vidas Secas, by Graciliano Ramos. Especially verbal mental processes and the allocation of adjectives that characterize prototypically humans contribute directly to building the process of humanization of the dog Baleia. In turn, Fabiano, Sinhá Vitória and the two boys are animalistic due to aspects like rudimentary language (composed mainly of monosyllables and onomatopoeia), social inequalities (illustrated in the work by the unattainable desire to Sinhá Vitória have an equal bed to the Seu Tomás da Bolandeira), the excesses of an arbitrary authority (the Yellow Soldier, Fabiano's boss) and especially the appalling weather conditions caused by drought.

Keywords: Anthropomorphization. Zoomorfização. Vidas Secas.

Introdução

            No Brasil, dadas as especificidades climáticas e geográficas de algumas regiões, como o nordeste, por exemplo, várias obras de ficção literária têm tomado a seca como plano de fundo de outras histórias. É possível falar, inclusive, em uma literatura das secas, termo cunhado por Tristão de Athayde (1922) para designar um tipo específico de regionalismo sertanejo, caracterizado, principalmente, por tematizar questões e problemas relativos às secas do nordeste.   
            As primeiras figurações ficcionais das secas nordestinas podem ser localizadas em obras românticas, mas precisamente em O sertanejo, de José de Alencar, e em O cabeleira, de Franklin Távora, publicadas na década de setenta do século dezenove. Na primeira obra, mesmo a seca não sendo temática central, descreve-se em riqueza de detalhes a vida do sertanejo, bem como questões ligadas à devastação da natureza e os problemas daí derivados. A segunda obra aborda a temática da seca relacionada ao cangaço nordestino. Távora busca revelar aos brasileiros o nordeste verídico, diferente daquele pintado em outras obras românticas regionalistas, figurando a seca apenas como uma tragédia da natureza.
            Em oitenta nove, deste mesmo século, José do Patrocínio publicou Os retirantes. Diferentemente das outras, nesta obra o autor apresenta as consequências diretas da seca, abordando-a não apenas como um fenômeno climático da natureza, mas também como um fato social. O romance resultou da forte impressão que causaram a José do Patrocínio os fatos testemunhados durante sua viagem ao Ceará em oitenta e oito. O autor viajara como correspondente do jornal Gazeta de Notícias com o propósito de relatar os acontecimentos relacionados àquela seca. O quadro de fome e miséria que encontrou o motivou a escrever um romance cuja ação se passa naquele mesmo momento histórico (SCOVILLE, 2011).
            De modo ainda mais evidente, a temática da seca é tratada no livro As secas, de Rodolfo Teófilo, publicado em noventa. O autor narra o processo migratório de uma família de retirantes para a cidade de Fortaleza, no estado do Ceará, focalizando os diversos problemas sociais e econômicos enfrentados pela família em decorrência da seca de oitenta e sete. Durante o processo de peregrinação, os retirantes parecem sofrer um processo de animalização, em razão da precariedade das situações vivenciadas – chegando ao extremo da autofagia para abrandar a fome.
            Depois do início do século vinte, outras tantas obras literárias de escritores brasileiros trataram da seca do nordeste: Os sertões, de Euclides da Cunha, publicada em mil novecentos e dois, Luzia-Homem, de Domingos Olímpio, publicada em mil novecentos e três, A bagaceira, de José Américo de Almeida, publicada em mil novecentos e vinte e oito, O quinze, de Rachel de Queiroz, publicada em mil novecentos e trinta, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, publicada em mil novecentos e trinta e oito, Grandes Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, publicada em mil novecentos e sessenta e cinco, Essa terra, de Antônio Torres, publicada em mil novecentos e setenta e seis, e algumas outras. 
            Do conjunto dessas obras, convém observar as singularidades de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Inicialmente, o livro não foi escrito como romance, mas originou-se de um conto, Baleia – que, posteriormente, tornou-se um capítulo da obra. Na verdade, todos os capítulos de Vidas Secas foram escritos em ordem diferente da que receberam na edição final do livro, como se fossem textos independentes ou autônomos – alguns deles foram publicados isoladamente, em forma de conto. Mesmo assim, não é difícil reconhecer a unidade e a coerência que a obra apresenta: os capítulos se ligam pela repetição de alguns motivos e temas, como a paisagem árida, a zoomorfização e antropomorfização das criaturas, os pensamentos fragmentados das personagens e seus consequentes problemas de linguagem, dentre outros (MOISÉS, 1969).
Ao contrário de outros romancistas que versaram sobre o tema das secas focalizando os defeitos do flagelo nas populações das extensas áreas críticas do nordeste brasileiro, Graciliano preferiu narrar diversas situações vividas por uma família típica de nordestinos (Fabiano, Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia), vítima não apenas dos rigores do tempo e do clima, mas também das desigualdades sociais, da desonestidade e covardia do patrão e das arbitrariedades de uma autoridade ignorante. Desse modo, Vidas Secas constrói um verdadeiro retrato da dura existência no sertão nordestino em períodos de estiagens.
Dada à relevância de Vidas Secas, pretendemos tomá-la como objeto de análise deste curto ensaio. Especificamente, interessa-nos analisar e tecer considerações sobre dois pontos bastante salientes ao longo dos capítulos do livro: o processo de humanização (antropomorfismo) da cachorra Baleia – embora sendo um animal, é como um membro da família e apresenta as sensações mais humanas de toda a narrativa – e o processo de animalização (zoomorfismo) de Fabiano, Sinhá Vitória e de seus dois filhos: o menino mais velho e o menino mais novo. Esses dois processos são evidenciados na obra em diversos aspectos: a influência do espaço, do meio social, das condições de vida, pelo tempo e, principalmente, pela linguagem dos personagens.
                                                                              
Antropomorfismo: a humanização da cachorra Baleia

Em Vidas Secas, as personagens são confundidas: os humanos apresentam comportamentos e atitudes semelhantes aos de animais e os animais – especialmente a cachorra Baleia – apresentam comportamentos semelhantes aos de humanos. É claro que se trata de uma estratégia literária utilizada por Graciliano Ramos para demonstrar como a seca e as desigualdades sociais empurram as pessoas para uma condição de vida desumana e atroz. A cachorra Baleia, por exemplo, conforme se verá a seguir, vivencia um processo de humanização ao longo das narrativas construídas nos capítulos do livro, especialmente no capítulo de título Baleia.
De modo geral, na literatura, o processo de antropomorfização – atribuição de características de seres humanos a animais – ocorre, principalmente, em gêneros como a fábula, por exemplo. Comumente é possível encontrar textos em que os protagonistas são animais que apresentam comportamentos muito semelhantes aos de pessoas: falam, são bípedes, possuem raciocínio lógico, laboram estratégias, dentre outros. As fábulas do grego Esopo usam extensivamente o antropomorfismo para construir lições de caráter moral ou alegórico em narrativas que possuem animais como personagens protagonistas, como a clássica história de A cigarra e a formiga.
A literatura infantil também faz vasto uso dessa técnica. Os contos populares de Charles Perrault, por exemplo, apresentam em sua gênese personagens que possuem características comumente atribuídas a humanos, como o lobo, do clássico Chapeuzinho Vermelho. Várias outras obras de outros autores carecem de destaque: o Coelho Branco e o Gato de Cheshire, do clássico Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll. Ou ainda: o porco Rabicó, o burro Conselheiro e o rinoceronte Quindim, do Sítio do pica-pau amarelo, de Monteiro Lobato.
Na obra de Graciliano Ramos, o processo de antropomorfização é evidenciado, principalmente, na personagem Baleia. Mesmo sendo um animal, a cachorra é considerada como membro da família e acompanha, inclusive, toda a peregrinação e o sofrimento dos retirantes nordestinos em busca de um lugar melhor para sobreviverem.


Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitória com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás (RAMOS, 2003, p. 13).


Baleia ia atrás de Fabiano e Sinhá Vitória, acompanhando o menino mais velho, que já se mostrava cansado e assustado com a catinga que “estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas”. (RAMOS, 2003, p. 14). O menino começou a chorar e sentou-se acuado no chão, encabulado – empancado como burro de mascate. Fabiano, mesmo indeciso e impaciente, porque seria um peso a mais, teve de levá-lo nos braços: “pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como cambitos” (RAMOS, 2003, p. 14). A partir de então, como que não mais preocupada com o amigo fraco e cansado, Baleia assume um novo posto na comitiva.


Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se detinha, esperando as pessoas, que se retardavam (RAMOS, 2003, p. 15).


Agora, como se fosse a líder do grupo, é Baleia quem parece guiar a família na busca por um lugar melhor na árdua caminhada que estão enfrentando como retirantes no sertão nordestino. Enquanto a família se retardava, por causa da pequena carga que traziam e do peso dos meninos, vez por outra levados nos braços de Fabiano e de Sinhá Vitória, Baleia, que ia agora sempre à frente. Algumas vezes, parava e esperava-os, como quem tivesse a responsabilidade de mostrar o caminho à família de Fabiano e de assegurar que um ou outro não se perdesse no caminho.


E Fabiano se aperreava por causa dela [Sinhá Vitória], dos filhos e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha tinha trazido para eles um preá (RAMOS, 2003, p. 46).


Num momento de extrema dificuldade, como se sentisse responsável pela família, porque fazia parte dela, Baleia caça um preá, para saciar a fome de Fabiano, de Sinhá Vitória e dos meninos. A cachorra age como gente, que se preocupa e planeja uma forma de aliviar o sofrimento da família de retirantes. Há aqui, pois, uma inversão de papeis: o animal de estimação é que alimenta os donos. Noutro momento, ainda no início da peregrinação, quando Sinhá Vitória, de súbito, comeu junto com os filhos e Fabiano as poucas carnes do papagaio que criavam e que morrera de fome na areia do rio, dividiu com Baleia os restos da ave que outrora fora sua amiga.

Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava lembrança disto. [...] [Sinhá Vitória] Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados, numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil (RAMOS, 2003, p. 13-14).


Sinhá Vitória age instintivamente – quase que um ato antropofágico porque o papagaio era como se fosse uma pessoa da família. Não tanto quanto Baleia, mas os acompanhava desde o início da viagem: “Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o papagaio”. Tanto que depois disso, vez por outra, Sinhá Vitória se corroía de remorsos, por causa da morte da ave:


Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro." Era o que sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia como Baleia. Coitado. Sinhá Vitória nem queria lembrar-se daquilo (RAMOS, 2003, p. 45).


Baleia, mesmo tendo se alimentado dos restos mortais da ave, preferia “não guardar lembrança disto”. Não reprovou a atitude de Sinhá Vitória. Parecia preferir entender que se tratava de uma “necessidade”. E a família estava acima de tudo, era seu dever protegê-los – inclusive conseguir alimentos para saciar a fome de todos: além do papagaio e do preá, Baleia embrenhou-se várias vezes no mato para caçar uma novilha de raposa, mesmo que tenha sido inutilmente, porque o cercado de macambira não lhe permitia movimentar-se com a velocidade e destreza necessárias.
Quando a família alcança e se instala em uma fazenda aparentemente abandonada, onde vivenciam raros momentos de satisfação e prazer, é possível perceber que Baleia é o ente mais bem tratado do grupo, com mimo e bajulação. Na saída da igreja, de um dia que foram para missa, os meninos sentem logo falta de Baleia, porque não está esperando-lhes na porta, mas não sentem falta do pai, que estava arrumando confusões com o Soldado Amarelo. Ora, Baleia “era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras” (RAMOS, 2003, p. 34).
É no capítulo de título Baleia que melhor se verifica o processo de humanização da cachorra Baleia. Trata-se de capítulo que narra tragicamente a morte da cachorra: “Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas” (RAMOS, 2003, p. 86). A verdade é que Baleia não mais conseguia se alimentar e nem beber água por causa das chagas que feriram sua boca. A doença se agravasse a cada dia. Baleia sem melhora alguma. Como quisesse aliviar o sofrimento da companheira, Fabiano resolveu matar a pobre cachorra com sua espingarda de pederneira. Entendia a morte como um escapismo do sofrimento enfrentado – quase uma eutanásia. À Sinhá Vitória e aos meninos não agradava a ideia. Esses dois foram forçosamente impedidos pela mãe de avistarem os minutos derradeiros da amiga, mas insistiam irresolutos: “Vão bulir com a Baleia?”, porque “tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano”. Sinhá Vitória também parecia não agradar-se daquela situação, “tinha o coração pesado”, mas tentava conformar-se: “naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa. Pobre da Baleia.” (RAMOS, 2003, p. 87).
Como se fosse gente, Baleia parecia adivinhar que algo de errado estava para acontecer: “a cachorra espiou o dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as pupilas negras.” (RAMOS, 2003, p. 87). Baleia parece agir com inteligência racional, porque calcula meticulosamente cada movimento de Fabiano e mesmo os movimentos que ela precisa fazer para se defender do provável risco que se anuncia. Por isso, fica a espreita, como quem se esquiva de um perigo eminente, mas de maneira desconfiada porque parece ser difícil aceitar e acreditar que seu dono lhe cause algum dano.
Quando sofre o tiro disparado por Fabiano, Baleia apresenta atitudes e vive sensações muito semelhantes às de um humano:


E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobrisse de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha folhas secas e gravetos colados às feridas, era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se, endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase imperceptíveis. (RAMOS, 2003, p. 88-89).


Mesmo com um medo terrível e perdendo muito sangue, sem compreender o gesto de Fabiano, Baleia foge em desespero. Não se trata de puro instinto, porque apesar de contrariada, por causa da dor provocada pela carga de chumbos que lhe atingiu o traseiro, Baleia avalia que lugares são mais favoráveis para esconder-se de Fabiano e de sua arma mortal. Andando de dois pés como gente, a cachorra busca deitar-se na barroca próxima às raízes dos juazeiros, onde se cobria de poeira para evitar as moscas e os mosquitos sobre suas chagas. Não é atoa, pois, a escolha por esse lugar para espojar-se no momento de maior dor e aflição: lá, era possível espalhar poeira sobre a ferida provocada pelo tiro, como quem quisesse estancar o sangramento que lhe tirava, gota por gota, a vida. Não conseguindo alcançar a cova pretendida, Baleia entrega-se a dor e ao sofrimento e começa a devanear, como faz um ser humano em momentos de grande aflição e agonia:

 
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha, fraco e havia nele partículas de outros viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinham fugido (RAMOS, 2003, p. 89).


Baleia tenta entender o que estava acontecendo consigo. Tenta olhar para si como se fosse outrem – um olhar exotópico. Mas o devaneio lhe prejudica o raciocínio. Sonha com preás e tenta sentir o cheiro deles, mas seu paladar desconhece qualquer gosto de sua comida predileta – os preás. Baleia morre sonhando com um mundo cheio de preás:


Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes (RAMOS, 2003, p. 91).


Interessante observar que à Baleia são atribuídos processos mentais e atitudes comumente atribuídos aos humanos. Baleia sente desgostos, alegrias, dores, prazeres, vontades. Desenvolve sentimentos de carinho e afeição pelos meninos, por Fabiano e por Sinhá Vitória – tanto que os protege em todas as situações calamitosas impostas pela seca e pelos desmandos do patrão de Fabiano. Processos mentais de cognição e percepção são atribuídos a Baleia: acreditava, admitia, achava, estranhou, sabia, sentia, percebeu, franziu, pensou. Por tudo isso, é possível dizer, pois, que Baleia não é apresentada em Vidas Secas como um simples animal, mas é tratada como gente – é, inclusive, tida como mais humana do que Fabiano e os dois meninos, como se verá no tópico seguinte. 

Zoomorfização: a animalização de Fabiano e dos meninos

Em oposição ao que acontece com Baleia, Fabiano e os meninos vivenciam um processo de zoomorfização em Vidas Secas. De modo geral, entende-se zoomorfização como o mesmo que animalização, isto é, o processo pelo qual se atribuem características de animais a um ser humano – o homem é, pois, tratado e comparado como animal. De acordo com Castro (2000, p. 109):


Transformação de seres humanos em animais. Os retirantes, na busca de sustento e de um lugar estável para viver, beiram a perfeição instintiva dos animais. A animalização a que são submetidos é, na verdade, uma tentativa de representação dos limites superiores do homem, uma avaliação de sua capacidade de sobrevivência em ambientes agressivos.


            Esse processo se verifica, na literatura brasileira, em obras naturalistas, como nos romances O mulato, O homem e O cortiço, de Aluízio Azevedo. Influenciado pelos ideais de Charles Darwin, que acreditava ser o homem um ser instintivo, condicionado pelo meio em que vive, os personagens de Aluízio Azevedo são comparados a animais em suas atitudes e comportamentos. Na poesia, Manuel Bandeira empregou essa técnica no poema O bicho, no qual o personagem busca restos de comida nos lixos de uma rua de um bairro carioca, como se fosse um animal – um cão, um gato, um rato. O poema evidencia, pois, as desigualdades sociais e econômicas de uma cidade urbana brasileira.
Em Vidas Secas, a zoomorfização foi utilizada como um recurso estilístico para demonstrar a condição miserável em que se encontravam as personagens, provocada principalmente pela seca. A família de retirantes nordestinos é obrigada a viver de acordo com seus instintos e impulsos, peregrinando de um lugar para outro, alimentando-se do que encontravam no caminho (preás, novilha de raposa), como se fossem mesmo animais.
Fabiano, por exemplo, é a quase todo instante apresentado como se fosse um bicho, porque é tratado como rude e ignorante. No capítulo de título Fabiano, o personagem introduz um monólogo interior – às vezes parece mais um diálogo com o próprio narrador do romance – tentando reconhecer-se como homem:


- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
- Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
- Um bicho, Fabiano.
Era. (RAMOS, 2003, p. 18-19).


Instaura-se um jogo de linguagem entre as expressões homem versus bicho. Fabiano não se reconhece como homem. Tenta convencer-se de que é apenas um bicho. Um cabra. Mas era forte: conseguia resistir à calamidade da situação. Não era um bicho qualquer: era o bicho Fabiano. Era vergonhoso ser um homem naquele estado medonho: sem terra, sem casa, sem comida. Mas não um bicho. 


Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. (RAMOS, 2003, p. 19).


            Fabiano teve problemas com o patrão, com o soldado amarelo, não conseguia desenvolver afeto e carinho pelos meninos, pouco falava com Sinhá Vitória. De fato não gostava de gente: tinha sérias dificuldades para socializar-se. Preferia os animais: andava sempre com Baleia, cuidava do gado quando assumiu a vida de vaqueiro, gostava dos cavalos. Além disso, assim como os animais, que reproduzem um número pouco variado de sons, Fabiano possuía uma linguagem mirrada: o vocabulário era marcadamente composto de monossílabos, os quais não passavam de murmúrios que representavam sua indigência verbal.


[...] às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopéias. Na verdade, falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 2003, p. 20).


A dificuldade da fala é, pois, outro elemento animalizador de Fabiano. Essa dificuldade tem influências profundas nas relações sociais que desempenha na obra: “submisso e alheio aos seus direitos, o personagem nunca se faz entender e vê suas esperanças frustradas” (RIBEIRO, 2003, p. 07). O desenvolvimento de uma linguagem bem articulada e complexa é o elemento distintivo do homem dos demais animais e lhe permite ascensão social. Como Fabiano não consegue articular bem as palavras tem sua comunicação prejudicada, logo, sua condição social também é afetada, dada a dificuldade de interagir com outros sujeitos para, por exemplo, lutar por melhores condições de vida. Trata-se de uma visão determinista sobre a realidade: tudo no universo está submetido a leis necessárias e imutáveis, inclusive o comportamento humano é determinado pela natureza, de forma que o sentimento de liberdade não passa de ilusão subjetiva (RUSS, 1991). Ora, é, pois, a seca que determina a situação miserável em que vivem Fabiano e sua família.
A mesma coisa acontece com os meninos, especialmente com o menino mais velho, que parece herdar biologicamente do pai a dificuldade de manejo com as palavras:


Como não sabia falar direito, o menino balbuciava expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros dos animais, o barulho do vento, o som dos galhos que rangiam na caatinga, roçando-se. Agora tinha tido a ideia de aprender uma palavra, com certeza importante porque figurava na conversa de sinha Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao irmão e à cachorra. [...].
- Inferno, inferno. (RAMOS, 1992, p. 59).


É como se se instaurasse um ciclo vicioso interminável, no qual os problemas com a linguagem vão sendo repassados ou aprendidos de uma geração para a outra. Os meninos parecem, pois, possuir a mesma inabilidade com a linguagem que o pai, resultado da escassez de comunicação entre os membros da família. São poucos ou quase inexistentes os diálogos travados entre Fabiano, Sinhá Vitória e os meninos. As poucas vezes em que os meninos questionam a existência de alguma coisa ou interrogam sobre o significado de alguma palavra, como ocorre com o termo inferno, eram repreendidos com um “cocorote” – uma pedagogia da repressão. Por isso o livro é cheio de monólogos interiores: a descrição realizada pelo narrador dos gestos e pensamentos confusos das personagens. Tratam-se de momentos em que elas questionam sua existência e a existência das coisas, por meio de uma reflexão particular profunda, apesar não muito bem elaborada, porque também tinham dificuldade de articular pensamentos mais complexos.
Interessante apontar que, diferentemente de Baleia, os meninos não possuem nomes próprios. São tratados pelo narrador e pelos próprios pais apenas pelo substantivo comum menino, acrescido de locução adjetiva especificadora: mais velho e mais novo. Isso, geralmente, acontece com os animais que, na maioria das vezes, não possuem nomes próprios, mas são tratados pelo substantivo genérico que nomeia sua espécie.
Em muitos outros momentos do romance os meninos são comparados a animais:


- Safadinhos! Porcos! Sujos como...
Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos como papagaios. (RAMOS, 2003, p. 44).
Rodeou o chiqueiro, mexeu-se como um urubu, arremedando Fabiano. (RAMOS, 2003, p. 50).
Tinha um vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera no tempo da seca. (RAMOS, 2003, p. 59).


Para descrever os meninos e suas atitudes, Graciliano Ramos recorre a metáforas que estabelecem comparações entre os meninos e animais: porcos, urubu, papagaio. Esse aspecto corrobora para o processo de animalização desses personagens: são tratados no romance como inferiores à cachorra Baleia, seja na inteligência ou mesmo na caracterização realizada.
Sinhá Vitória difere dos demais personagens. Ela parece ser a mais inteligente de todos da família, porque sabe fazer contas e falar palavras difíceis. Além disso, é a única que ambiciona um futuro menos miserável do que a vida de retirante – mesmo que os seus sonhos sejam simplórios e acanhados: possuir uma cama de lastro de couro, igual à de Seu Tomás da bolandeira: “Porque não haveriam de ser gente, possuir uma cama igual à de Seu Tomás da bolandeira?” (RAMOS, 2003, p. 122-123). Para ela, a realização deste sonho significaria a ascensão social que tanto almeja: a cama macia representa a tranquilidade de um lar próprio e a fartura de alimentos. 
Apesar disso, em algumas situações apresentadas no romance é possível perceber que Sinhá Vitória vivencia o processo de animalização. Logo no início da narrativa, quando decide comer o papagaio que criavam e que lhes acompanhara na peregrinação, Sinhá Vitória age quase que instintivamente: “Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era mudo e inútil” (RAMOS, 2003, p. 11). Ou ainda quando Sinhá Vitória lambe o sangue o focinho da cachorra Baleia para alimentar-se do sangue do preá que sujava as narinas da cachorra: “Sinhá Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava proveito do beijo.” (RAMOS, 2003, p, 14).
Especialmente nesses dois casos, evidencia-se a condição miserável de Sinhá Vitória. Ela é forçada a agir por instinto, tal como fazem os animais, quando não estão em situações confortáveis de existência. Além das condições desumanas em que vivia, a ausência de diálogo, a escassez de linguagem e a dificuldade de comunicação e interação são também marcas do processo de animalização da personagem Sinhá Vitória.
A verdade é que, em maior ou menor grau, todos os personagens da família de Fabiano vivenciam situações em que são tratados ou apresentados como se fossem animais. Todos eles estão expostos às mazelas provocadas pela seca e, portanto, vivem como se fossem nômades, retirando-se, de tempos em tempos, de um lugar para outro em busca de melhores condições de vida.

Considerações finais

As considerações realizadas ao longo desse texto e as referências realizadas à obra de Graciliano Ramos evidenciam os dois processos de (des)construção das personagens adotadas pelo autor em Vidas Secas: antropomorfismo e zoomorfismo. Especialmente os processos verbais mentais e a atribuição de adjetivos que caracterizam prototipicamente seres humanos contribuem de forma especial para a construção do processo de humanização da cachorra Baleia. Por sua vez, Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos são animalizados em razão de aspectos como a linguagem rudimentar (composta principalmente de monossílabos e onomatopeias), as desigualdades sociais (ilustradas na obra pelo desejo inalcançável de Sinhá Vitória possuir uma cama igual à de Seu Tomás da Bolandeira), os desmandos de uma autoridade arbitrária (o Soldado Amarelo, o patrão de Fabiano) e, principalmente, as péssimas condições climáticas provocadas pela seca.
Essa inversão de personalidades provoca uma confusão entre as personagens, instaurada a partir da relação homem versus bicho. Trata-se de recurso literário utilizado por Graciliano Ramos para sublinhar traços característicos do regionalismo presente em sua obra. O autor demonstra como o fenômeno da seca marginaliza a família de retirantes, que iniciam uma saga pelo nordeste em busca de melhores climáticas e, consequentemente, melhores condições de vida. Compreende, pois, uma forma de denúncia social e crítica ao Brasil, que parecia está dividido entre o progresso (o moderno) e o atraso (o sertão). A visão desencantada do escritor revela uma melancólica empatia por aqueles seres barbarizados que assistiam à marcha do progresso quando não eram atropelados por ela (MELARD, 1976).

Referências

ATHAYDE, T. Anuário do Brasil. Porto: Renascença Portuguesa, 1922.

CASTRO, D. A. Roteiro de leitura: Vidas Secas de Graciliano Ramos. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 2000.

CANDIDO, A. Ficção e confissão: ensaios sobre Graciliano Ramos. São Paulo: Editora 34, 1992.

LANDIM, T. Seca: a estação do inferno. Fortaleza: UFC / Casa José de Alencar, 1992.

MALARD, L. Ideologia e realidade em Graciliano Ramos. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.

MASSUD, M. Pequeno Dicionário de literatura. São Paulo: Cultrix, 1969.

RIBEIRO, E. S. A humanização da cachorra Baleia vs. a animalização de Fabiano: uma análise descritiva da tradução do livro Vidas Secas para o cinema. In: Revista Eletrônica Darandina, UFJF, nº 2, 2003.

RUSS, J. Dictionnaire de Philosophie. Paris: Bordas, 1991.

SCOVILLE, A. L. M. L. Literatura das secas: ficção e história. 2011. 241 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2011.