A CONSTRUÇÃO DO SANTO POPULAR NO CONTO “A HORA E VEZ DE AUGUSTO MATRAGA” DA OBRA SAGARANA


Wellington Costa de Oliveira[1]

Resumo: Este ensaio tem por objetivo analisar a influência do sagrado, da religião e da religiosidade na construção de um santo popular, considerando, como ocorre essa construção e o caminho seguido pela personagem no processo de santificação. Para tanto, apresenta as fontes literárias nas quais Rosa se inspirou para a criação da personagem, que faz uma travessia rumo à salvação da alma. O corpus literário deste ensaio é composto pelo conto “A hora e vez de Augusto Matraga”. O estudo deste conto segue a ordem pecador- penitente - santo, ou seja, um rito de passagem de um estado a outro da existência, observada na vida dos santos ou iluminados que buscam a ascese espiritual. Finalmente, ao longo do caminho percorrido entre conceitos e ideias sobre o sagrado e sua influência na construção da personagem, chega-se ao santo popular construído no conto de Guimarães Rosa.
Palavras-chaves: Literatura Brasileira; Guimarães Rosa; Religião; Sagrado; Esoterismo.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo examinar la influencia de lo sagrado, de la religión y la religiosidad en la construcción de un santo popular, teniendo en cuenta, al igual que en esta construcción y el camino seguido por el carácter en el proceso de la santificación. Presenta las fuentes literarias en la que Rose se inspiró para crear el personaje que hace un recorrido hacia la salvación del alma. El corpus literario de este trabajo consiste en el cuento “La hora y el lugar de Augusto Matraga”. El estudio de esta historia sigue el orden pecador- penitente - santo, es decir, un rito de paso de un estado a otro de la existencia, se ve en la vida de los santos o iluminado buscando ascetismo espiritual. Por último, a lo largo del camino recorrido entre conceptos e ideas sobre lo sagrado y su influencia en la construcción del personaje, que llegue al santo popular construida en Guimarães Rosa cuento.
 Palabras clave: Literatura brasileña; Guimarães Rosa; Religión; Sagrado; Esoterismo.


O pecador

O caminho inicial de Augusto Esteves é marcado pela posse, pelo poder e pelo prazer. A personagem traz presente duas realidades latentes, o bem e o mal. Ao mesmo tempo que compra a Sariema num leilão para ostentar o poder diante dos outros, ele a manda embora logo após. Ao que tudo indica na estrutura do conto, a personagem fora criada sem limites, “sem temor a Deus”.
O excesso faz parte da vida de Matraga: “Mais estúrdio, estouvado e sem regra, estava ficando” (ROSA, 2012, p. 330). O pouco ensinamento sobre religião foi-lhe transmitido pela vó, que desejava que ele fosse padre: “Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha....” (ROSA, 2012, p. 331). Rosa parece beber na filosofia Platônica ao conceber a personagem Matraga, este sujeito dual, incompleto, imperfeito, que vai se reconstruindo à medida que se aproxima do bem. Os pecados que comete são fruto da ignorância, da soberba ou do poder financeiro. Para considerar Augusto Esteves como um pecador é necessário, antes, conhecer o conceito de pecado.
Consoante ao referencial cristão-católico, contido no Catecismo da Igreja Católica (1993), tem-se que o pecado “é uma falha contra a razão, a verdade, a consciência reta; é uma falta ao amor verdadeiro para com Deus e para com o próximo, por causa de um apego perverso a certos bens. Fere a natureza do homem e ofende a solidariedade humana” (CIC, 1849). Nos dicionários da língua portuguesa, o termo pecado é definido como: crueldade, iniquidade, maldade, perversidade, culpa, defeito, vício, deslize, erro, falha e, até mesmo, falta. Contudo, o importante aqui é entender o pecado para além dessa definição, ou seja, entendê-lo como distanciamento de Deus. A personagem Matraga é alguém distante de Deus, não há relato dele participando da missa e da procissão. Sua presença é marcante no leilão depois da reza, comprando a prostituta.
Santo Agostinho (1997) propõe que “A corrupção do corpo que pesa sobre a alma não é a causa, mas a pena do primeiro pecado” (1997, p. 16), nesse sentido, não se pode atribuir a causa do pecado da alma à carne corruptível. É a alma pecadora que irá tornar a carne corruptível, pois o pecado, segundo Agostinho, é fruto do livre-arbítrio. Em outro trecho das Confissões, o filósofo vai afirmar que: “Do mesmo modo a honra temporal e o poder de mandar e dominar encerram também um brilho, donde igualmente nasce a avidez de vingança” (AGOSTINHO, 1980, p. 60). A alma humana é seduzida pelo poder, pela riqueza e pelo prazer. Com a personagem Matraga não seria diferente, como um ser fictício, ele traz em si o desejo pelos prazeres do mundo.
A posse dos bens seduz Matraga; possuir lhe dá a sensação de que tudo pode e tudo lhe é permitido, tal como comprar pessoas, espancar, vilipendiar e perder o sentido do sagrado. Como administrador de bens foi péssimo, nunca construíra nada, somente herdara, e o que herdara conseguiu perder. Aristóteles (1991) explicita o caminho para alcançar a felicidade, o bem supremo. Esse caminho, de acordo com a ética aristotélica, pressupõe que as pessoas adquiram o autocontrole sobre o desejo e o excesso. Para Aristóteles, “malbaratar seus bens é considerado uma forma de arruinar a si mesmo” (1991, p. 72).
Situação semelhante pode ser observada na parábola do filho pródigo:
E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades (BÍBLIA, Lucas 15: 13-14).
   O pai ausente, senhor de terras, o poderoso Coronel Afonsão, não preparou seu filho para a vida, para administrar a herança. A prodigalidade de Nhô Augusto o leva à bancarrota e à cegueira, pois mesmo estando falido continua a agir como se não o estivesse, e suas atitudes são de alguém que não passa por problemas financeiros. Nhô Augusto e Saulo, o perseguidor dos cristãos, se assemelham nas atitudes; cegos, eles continuam suas trajetórias no caminho iniciado de posse, de prazer e de poder.
O prazer carnal é uma constante na vida de Nhô Augusto, que, além da mulher tinha outras mulheres na cidade, nas redondezas e na própria fazenda.
Dela, Dionóra, gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda ─ no Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul ─ ele tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as caçadas (ROSA, 2012, p. 330).
Isto vem ao encontro do que se vê na vida de Nhô Augusto, em sua primeira fase de vida, a intemperança direciona seu agir. A esposa relata que “gostava, às vezes; da sua boca, das suas carnes. Só. No mais, sempre com os capangas, com mulheres perdidas, com o que houvesse de pior” (ROSA, 2012, p. 330).
O poder também fascina Augusto Esteves, tanto que perdeu grande parte de sua fortuna na política: “E com dívidas enormes, política do lado que perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede branca” (ROSA, 2012, p.330). O protagonista utiliza o poder financeiro para dominar os mais fracos “Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros...” (ROSA, 2012, p. 326).
Essa trilogia ─ posse, prazer e poder ─ é encontrada também nas Sagradas Escrituras. As tentações de Jesus seguem três padrões que são comuns a todos os homens.
Pode-se afirmar, pelo que se compara, que a vida de Matraga se aproxima da vida de Cristo, ainda que de forma velada. A literatura, em intertextualidade com a religião, faz uma releitura dos acontecimentos, atualizando-os para a vida sertaneja.
A primeira fase da vida da personagem encerra-se com a sua queda no abismo. Essa já anunciada por Rosa no trecho “Quando chega o dia da casa cair — que, com ou sem terremotos, é um dia de chegada infalível” (ROSA, 2012, p. 333). O cair, dentro do horizonte religioso, sempre esteve ligado ao pecado, ao sofrimento, à dor. Em Lucas, se encontra a seguinte passagem: “Eu via Satanás caindo do céu como um relâmpago” (BÍBLIA, Lucas 10: 18). O simbolismo do caimento como se vê é o signo da punição, do sofrimento e da dor. Ao cair, Nhô Augusto passará por tudo isso e, diante da ruína e da dor, ele clama pela morte: “Me matem de uma vez, por caridade, pelas chagas de Nosso Senhor” (ROSA, 2012, p. 337). A morte representa, aqui, o fim de todas as dores e tristezas do ser humano.

O penitente

De acordo com as estruturas antropológicas do imaginário propostas por Durand (2012), a queda está ligada à dinâmica das trevas; cair é uma rememoração da condição de seres terrestres. O autor vai afirmar que tal fato é “a primeira experiência de medo” (2012, p. 112) vivenciada ao nascer. Nesse momento de eversão da personagem, há a desconstrução de todas aquelas características que Rosa descreve no início do conto “Nhô Augusto, alteado, peito largo, vestido de luto, pisando pé dos outros e com os braços em tenso, angulando os cotovelos, varou a frente da massa...” (ROSA, 2012, p. 326). Ao cair começa uma nova fase na vida de Nhô Augusto, a fase de penitência, de ressignificação do agir, do viver. Surge o Nhô Augusto penitente, que busca na religião sentido para viver e agir. De acordo com o Catecismo da Igreja Católica (1993):
Aqueles que se aproximam do sacramento da Penitência obtêm da misericórdia de Deus o perdão da ofensa a Ele feita e, ao mesmo tempo, são reconciliados com a Igreja, que tinham ferido com o seu pecado, a qual, pela caridade, exemplo e oração, trabalha pela sua conversão (CIC, 1422).
A pessoa que busca o sacramento da Penitência precisa consagrar uma caminhada pessoal e eclesial de conversão, de arrependimento. Nhô Augusto rememora a sua vida, o que perdeu, chama pela mãe, pede para morrer, sente saudade da mulher, da filha: “E era como se tivesse caído num fundo de abismo, em outro mundo distante” (ROSA, 2012, p. 339).
O próprio padre lhe admoesta[2] sobre seus pecados: “Você, em toda sua vida, não tem feito senão pecados muito graves, e Deus mandou estes sofrimentos só para um pecador poder ter a idéia do que o fogo do inferno é!...” (ROSA, 2012, p. 345). Essa quase-morte é uma nova oportunidade para que a personagem mude o destino de sua vida. É uma nova chance dada por Deus para que Nhô Augusto encontre o caminho da salvação. O padre ajuda Nhô Augusto a compreender a dor e como lidar com as experiências de angústia que sombreavam a sua alma. O padre lhe fornece uma gota de esperança “Cada um tem a sua hora e a sua vez: você há de ter a sua” (ROSA, 1996, p. 340).
Como representante oficial da igreja, o padre, através de seus ensinamentos faz uma tentativa de recuperar a fé da personagem na salvação. O padre, lhe diz veladamente que os sofrimentos e tormentos passados nessa vida são passageiros é como “um dia de capina ao sol”. O trio formado pelo padre, a “preta” e o “preto”, nesse momento de dor e sofrimento da personagem, torna-se referencial para a recuperação da carne e do espírito.
Observa-se que ao passar pelo sofrimento, a personagem Matraga começará a valorizar uma vida embasada na fé, na castidade, na esperança de alcançar sua “hora e vez”. Tal opção o distancia muito do homem anterior, que vivia o tempo presente, não se preocupando com o futuro. A partir de agora, vislumbrando o tempo futuro deverá seguir as recomendações cristãs.
Reconhecer-se pecador é o primeiro passo para a mudança de vida. Matraga, ao ouvir os conselhos do padre, questiona se ainda tem salvação: “Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!” (ROSA, 2012, p. 339). O padre percebe esse desejo de mudança de vida de Matraga e reforça a importância de ir para outra localidade, nova vida, novo rumo:
Eu acho boa essa idéia de se mudar para longe, meu filho. Você não deve pensar mais na mulher, nem em vinganças. Entregue para Deus, e faça penitência. Sua vida foi entortada no verde, mas não fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é aboio de chamar o demônio, e o Reino do Céu, que é o que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito! (ROSA, 2012, p. 340).
A possibilidade de mudar para longe, de deixar a vida passada e começar uma nova vida é o primeiro passo proposto pelo sacerdote. Nesse estágio de quase-morte, Matraga encontra um sentido para a vida rezando a jaculatória ensinada pelo padre “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso” (ROSA, 2012, p. 340). O domínio da raiva interior, do sentimento de vingança é fundamental para a conversão de Matraga. Nesse momento da sua vida, a sua busca é a reconstrução e a salvação da alma, uma vez que o corpo, como ele mesmo afirma “estava estragado, por dentro, e mais ainda a idéia” (ROSA, 2012, p. 341). Nhô Augusto, ao partir, leva consigo o “casal de pretos” samaritanos. Nesta passagem, observa-se que Rosa novamente se aproxima do Novo Testamento, e reescreve a parábola do “Bom Samaritano”.  No evangelho de Lucas está escrito:
Um homem descia de Jerusalém para Jericó, quando caiu nas mãos de assaltantes. Estes lhe tiraram as roupas, espancaram-no e se foram, deixando-o quase morto. Aconteceu estar descendo pela mesma estrada um sacerdote. Quando viu o homem, passou pelo outro lado. E assim também um levita; quando chegou ao lugar e o viu, passou pelo outro lado. Mas um samaritano, estando de viagem, chegou onde se encontrava o homem e, quando o viu, teve piedade dele. Aproximou-se, enfaixou-lhe as feridas, derramando nelas vinho e óleo. Depois colocou-o sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e cuidou dele (BÍBLIA, Lucas 10: 30-34).
Rosa mimetiza sua própria versão da parábola bíblica; Matraga é espancado, teve suas roupas rasgadas e foi deixado quase morto. A personagem Serapião assume a posição de bom samaritano e tem piedade dele, cuida das feridas, o leva para casa. Os samaritanos tinham o status de odiados e de indignos, no entanto, a atitude de bondade desse samaritano mostra que é isso que realmente agrada a Deus. O casal doou-se completamente ao homem que necessitava dispondo a ele cuidado e tempo. O sofrimento corporal infringido por seus algozes e a misericórdia encontrada no seio da família no barranco transformam Augusto Esteves em Nhô Augusto. Deve-se também ao casal de velhos a reaproximação de Nhô Augusto da religião católica, influência de sua avó na infância.
Toda essa mudança espiritual pela qual passa Nhô Augusto se dá dentro de um ambiente escuro, iluminado de forma precária por velas. A alma da personagem estava mergulhada na incerteza e o processo regenerativo dos valores perdidos ocorre lentamente; a arrogância cede lugar à humildade, a valentia de outrora abre espaço para o manso trabalhador, a religiosidade, aprendida com a avó e sufocada pelo mundo, reaparece: “E voltou a recordar todas as rezas aprendidas na meninice, com a avó. Todas e muitas mais, mesmo as mais bobas de tanta deformação e mistura” (ROSA, 2012, p. 340). Esse momento na choupana serviu para purificar a personagem e prepará-la para o encontro com Deus.
Vendo chegar ao fim, o período de provação, parte durante a noite com seus pais adotivos. Essa partida nos remete a pensar na fuga de Maria, José e Jesus da perseguição do rei Herodes aos recém-nascidos, conforme relata a passagem Bíblica. Nhô Augusto é um recém-nascido para a nova vida. O servo sofredor, o cordeiro manso e humilde de coração que vive entre os pobres, que trabalha para a salvação dos pobres. O Augusto arrogante, prepotente, senhor de terras dá lugar ao Nhô Augusto que através da penitencia, da paciência torna-se humilde e manso de coração.
Nessa fase de vida, Nhô Augusto alimenta em si duas virtudes teologais “Fé” e “Esperança”, as quais serviram para responder seu questionamento sobre a possibilidade de ser perdoado, “Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum...” (ROSA, 2012, p. 340). É um ato de fé acreditar na misericórdia divina e na possibilidade de uma nova oportunidade. Observa-se, igualmente, que a Esperança torna-se presente à medida que Deus garante a vitória, a salvação ao pecador arrependido: “Eu vou p’ra o céu, e vou mesmo, por bem ou por mal!... E a minha vez há de chegar... P’ra o céu eu vou, nem que seja a porrete!...” (ROSA, 2012, p. 341).
Essa salvação só será possível se houver a contrapartida da personagem que é seguir o conselho Beneditino do padre “Reze e trabalhe, fazendo de conta que esta vida é um dia de capina com sol quente, que às vezes custa muito a passar, mas sempre passa” (ROSA, 2012, p. 340). A importância do trabalho e da oração para autor é descrita por sua filha Vilma “Os seus princípios fundamentais de vida eram os de sua formação cristã. O amor ao trabalho, o respeito à dignidade humana, a ternura pela vida em todas as suas manifestações” (ROSA, 2008, p. 74).
A expressão reze e trabalhe nos remete a conceito basilar dos beneditinos ora et labora[3], o par trabalho e oração é fundamental para constituição do ser no mundo. Não há salvação sem trabalho, não há salvação sem oração e não há salvação sem a união dos dois. Essa necessidade de conciliar a oração com a ação transforma a personagem, que antes demonstrava uma religiosidade mecânica, em alguém que possui uma religiosidade vivencial.
A mortificação através do trabalho ameniza as tentações e o desejo de vingança. Rosa descreve essa mudança no seguinte trecho “não tinha tentações, nada desejava, cansava o corpo no pesado e dava rezas para a sua alma, tudo isso sem esforço nenhum” (ROSA, 2012, p. 346). Lembrar-se do passado lhe causa pavor “tomara um tão grande horror às suas maldades e aos seus malfeitos passados, que nem podia se lembrar” (ROSA, 2012, p. 341). Nesse momento, pode-se dizer que Matraga começa a alcançar o equilíbrio entre os dois princípios que estão em seu interior: o desejo e a razão, o excesso e a falta. Aristóteles postula que esse equilíbrio seria o justo-meio, principalmente quando relacionado a virtude “Refiro-me à virtude moral, pois é ela que diz respeito às paixões e ações, nas quais existe excesso, carência e um meio-termo” (ARISTÓTELES, 1991, p. 37). Essa virtude postulada por Aristóteles, presente na personagem Matraga revela que o homem é um misto de razão e desejo, o equilíbrio entres essas duas partes recebe a denominação de justo-meio. O agir de Matraga começa a apontar para esse equilíbrio, para esse justo-meio.
Anterior a Aristóteles, o filósofo Sócrates ao discorrer sobre a vida virtuosa, descreve quatro virtudes principais para alcança-la: moderação, coragem, justiça e sabedoria. Dessas quatro virtudes, a moderação, é a responsável pela a harmonia e a paz interna do indivíduo, enquanto limitadora dos desejos e das necessidades da vida sensível. A moderação põe em equilíbrio os desejos e o poder de realizá-los. A personagem Nhô Augusto deve moderar seu coração e agir, para alcançar o que tanto deseja, a salvação da alma. Em outras palavras, deve alcançar o equilíbrio proposto por Aristóteles.
Tendo agora o equilíbrio entre razão e ação, a personagem começa a direcionar sua conduta rumo a um caminho de conversão e santificação. Trata-se do exercício do livre arbítrio humano, ou seja, é a pessoa que escolhe mudar sua conduta, sua ação. No livro do Apocalipse, encontra-se a seguinte passagem “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo” (BÍBLIA, Apocalipse 3: 20, grifo nosso).
Durante a vida de Nhô Augusto, Deus esteve à porta batendo “Quem criou Nhô Augusto foi a avó... Queria o menino p’ra padre... Rezar, rezar, o tempo todo, santimônia e ladainha...” (ROSA, 2012, p. 331). Nessa fase, Nhô Augusto não abre a porta conforme Rosa descreve “Duro, doido e sem detença, como um bicho grande do mato” (ROSA, 2012, p. 330). A todos é dado a capacidade de escolher em qual das duas naturezas se deseja viver: “Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade” (BÍBLIA, Gálatas 5: 13). Quando se escolhe a natureza pecaminosa, inclina-se à carne e às obras pecaminosas. Porém, ao se decidir por uma natureza santa, volta-se às coisas do Espírito, produzindo obras dignas de um verdadeiro filho de Deus.
O arrepender-se, de acordo com religião católica, é um ato próprio da pessoa. Jesus, por exemplo, apela às pessoas: “arrependei-vos e crede no Evangelho” (BÍBLIA, Marcos 1: 15). Paulo nos escreve que Deus “notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam” (BÍBLIA, Atos 17: 30). Ao mesmo tempo, há diversas passagens do Novo Testamento assinalando que Deus é que sai em busca do humano chegando a escandalizar aqueles que se consideravam puros e santos. Deve-se levar em conta que com o Novo Testamento, há uma nova lei a ser seguida, a lei do amor.
Quando Deus se torna humano, na pessoa de Jesus Cristo, acontece o anúncio da Boa Nova, onde Deus é o Deus do amor incondicional e da misericórdia irrestrita. Tal situação torna-se um escândalo para a época de Jesus, como aceitar um Deus que veio para aquele que estava perdido, que sai em busca da ovelha perdida, que se alegra com a volta do filho pródigo, que come com os pecadores, que conversa com as mulheres e crianças e acima de tudo não exige nada em troca. O evangelista Marcos deixa isso bem claro quando escreve: “Não vim chamar os justos, mas os pecadores” (BÍBLIA, Marcos 2: 17). Sendo assim, a personagem Augusto Esteves, se enquadra perfeitamente nessa nova proposta de Jesus.

O santo

A trajetória em direção à santidade da personagem acontece dentro da dinâmica da religião. A palavra religião, do latim religione, possivelmente se prende ao verbo re-ligare, ação de ligar.  A religião pode, assim, ser definida como o conjunto das atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais.
A palavra “santo” que é a tradução mais próxima da palavra hebraica, constantemente, é utilizada para especificar e separar religioso do mundano, o puro do impuro, o sagrado do profano. Já no início do conto, a palavra é utilizada com esse sentido “— Respeito, gente, que o leilão é de santo!” (ROSA, 2012, p. 326), “— Sino e santo não é pagode, povo!” (ROSA, 2012, p. 327).
A santidade também assume o significado de separação do uso comum, de afastar-se do mundo e ir ao encontro dos valores divinos e de Deus. A santidade não é um atributo de Deus, mas sua natureza essencial, nesse sentido não é exterior a Ele. A santidade vem Dele. Partindo do princípio que Deus nos criou “imagem e semelhança” (BÍBLIA, Gêneses 1: 26), chega-se à conclusão que Ele é Santo, nós devemos ser santos também. A medida que a essência dessa santidade é o próprio Deus, entra em cena a questão do livre-arbítrio, em que Deus convida a pessoa a ser santa como ele é Santo. Ele deixa livre cada pessoa para que faça as suas escolhas. A personagem Matraga é livre para seguir seu caminho no meio desse mundo corrompido pelo pecado, pelo exibicionismo, o hedonismo e a ganância.
O acaso, ou o destino, força Nhô Augusto a uma luta árdua e heroica para se livrar dos “pecados capitais”: soberba, ganância, luxúria, gula, ira, inveja e preguiça, sem se livrar deles não poderá chegar ao limiar da santidade. Para uma vida de santidade, é necessário o contato diário com a palavra de Deus, pois ela nos exorta, ilumina e fortalece na luta contra o pecado. É através da oração ensinada pelo padre que Matraga irá ter contato com essa palavra “Jesus, manso e humilde de coração, fazei meu coração semelhante ao vosso” (ROSA, 2012, p. 340). O trabalho é também uma fonte de santificação do homem. O trabalho que santifica é aquele feito por amor a Deus, e não apenas para ganhar o sustento. São Paulo disse: “Tudo quanto fizerdes, por palavra ou por obra, fazei-o em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (BÌBLIA, Colossenses 3: 17). Para ser santo, Nhô Augusto deve aprender primeiro a moderar seu coração, suas atitudes e seus pensamentos.
Nesse aspecto, a vida de Francisco de Assis se aproxima muito da personagem Matraga, como sinalizou Galvão (1978) e, agora, Nikos Kazantzákis (1983), no trecho: “De quanto mais baixo a partida, mais alta a ascensão. O mérito supremo do cristão militante não reside em sua virtude, mas no combate que trava para transmudar em virtude o que é impudor, covardia, descrença e malícia” (1983, p. 06). O mesmo se observa no diálogo entre Nhô Augusto e Mãe Quitéria “─ Mas será que Deus vai ter pena de mim, com tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto pecado mortal?!” (ROSA, 2012, p. 339). Em ambas situações, temos uma alma que se revela, que se mostra ao interlocutor.
Na vida de Francisco o quesito liberdade de escolha é bem marcante. Francisco livremente busca viver como Cristo viveu. Escolhe a dama pobreza como esposa e a personifica. Para ele, a pobreza não é um atributo, ela é uma irmã, uma senhora. Há uma diferença crucial entre Francisco e Matraga que alguns pesquisadores não se voltaram: um se faz pobre por amor de Cristo, o outro foi feito pobre à força. Porém, partindo do princípio que Deus subverte a ordem natural das coisas para confundir os sábios, dessa forma a semelhança entre os dois personagens, entre os dois caminhos são evidentes
Matraga, ao negar a lei que rege o agir de Joãozinho Bem-Bem, torna-se um mártir, assim como muitos que foram elevados à categoria de santos pelo Catolicismo. Um santo que passou por isso foi João Batista que ser recusara a calar a lei do Senhor e a comprometer-se com o mal, “deu a sua vida pela justiça e pela verdade” (BÍBLIA, Marcos 6: 17-29), e foi assim o precursor do Messias também no martírio. João foi batizado no próprio sangue aquele a quem fora concedido batizar o Redentor do mundo. Ser mártir é colocar a própria vida nas mãos de Deus, doar-se ao ponto de morrer em defesa da fé. Boff escreve que “O mártir aceita a dor, o sofrimento e eventualmente a perseguição e a própria morte como preço a pagar por causas e bens para os quais vale a pena jogar a vida” (BOFF, 1997, p. 121).
O caminho percorrido por Nhô Augusto culmina com a sua santificação através do martírio. Considera-se que “O martírio é a fidelidade à lei santa de Deus, testemunhada com a morte a fim de que o esplendor da verdade moral não seja ofuscado nos costumes e na mentalidade das pessoas e da sociedade” (PAULO II, 1993, p. 87). Galvão vai dizer que “Matraga atravessa minuciosamente todo o processo de santidade, mas os esforços para ser um asceta contrariam sua índole. Ele é um guerreiro, e é como guerreiro que irá se tornar santo” (2008, p. 72). Mais uma vez Matraga se mostra acima da lei, transgredindo-a supera a si mesmo e morre como santo.
Como último ato antes de morrer a personagem abençoa a filha e perdoa a mulher que lhe abandonara “─Põe a benção na minha filha... seja lá onde for que ela esteja... E, Dionóra... Fala com a Dionóra que está tudo em ordem!” (ROSA, 2012, p. 369). Essa atitude vem ao encontro da passagem descrita por Mateus em seu evangelho: “Se perdoardes aos homens suas ofensas, o Pai celeste também vos perdoará” (BÍBLIA, Mateus 6: 14). Pode-se inferir que nesse momento a personagem também está fechando esse círculo que ficou aberto por não vingar a traição da esposa.
Rosa, no conto, descreve, passo a passo, o caminho percorrido pela personagem rumo à santificação, e assim também o faz um hagiógrafo quando escreve a vida de um santo para ser canonizado. Em ambos os escritos temos três momentos marcantes, a exaltação da vida pecadora, a conversão através da penitência e por último a morte. Ao longo do caminhar, os fatos vão demonstrando que há uma mudança no agir da personagem e há uma passagem. Galvão ao falar sobre esse caminho traçado por Rosa sobre a conversão presente na obra a vê como um arquetípico, muito comum a vidas dos santos. Em suas palavras:
como epifania, ou iluminação súbita que como um relâmpago abre os olhos do pecador e o encaminha para a salvação, aparece invariavelmente ao longo dos séculos, em toda hagiografia a que o cristianismo nos habituou. As histórias maravilhosas de pessoas más que, de repente, por milagre da graça de Deus, se tornam boas e se entregam à penitencia por seus pecados, atravessa toda a crônica, assinalando as vidas de incontáveis mártires (GALVÃO, 2008, p. 132).
A vida inicial é transmutada em outra vida. Se, num primeiro momento, Augusto Esteves possuía uma necessidade enorme de se entregar aos prazeres mundanos - mulheres, jogos, bebidas - por força do destino, ou do acaso, sua vida sofre uma reviravolta, a ponto de quase perde-la. Trata-se de reconstruir a vida e de mudar os hábitos. Seu corpo está ferido, marcado e flagelado. Sabe que melhor seria morrer, pois não se sente nem homem, sem homência, sem posse, sem mulher e duvidando até da própria salvação: “— Desonrado, desmerecido, marcado a ferro feito rês, mãe Quitéria, e assim tão mole, tão sem homência, será que eu posso mesmo entrar no céu?!... (ROSA, 2012, p. 345).
Otto chama de “sentimento de criatura” o reconhecer-se pequeno, fraco, pecador diante do numinoso. A personagem assume-se como profana e ao assumir essa condição de acordo com Otto “inclui não apenas os seus atos, mas toda a sua existência como criatura frente àquilo que está acima de toda criatura” (OTTO, 2007, p. 91). Para Piazza a consciência de culpa nasce no homem quando se confronta com o Sagrado, concomitantemente se sente impotente, culpado e merecedor de auxílio, pois percebe que sozinho não conseguirá superar as dificuldades e a própria natureza.
Nesse aspecto, segundo Piazza “Quando algo lhe provoca a sensação de se achar diante de um ‘valor absoluto’, como ato reflexo, o homem percebe a sua precariedade física e a sua inconsciência moral. É uma experiência a que não pode escapar, se for sincero consigo mesmo” (PIAZZA, 1976, p. 73). É na confissão dos pecados que encontra força para mudar seu destino e para reescrevê-lo. Com o passar do tempo recupera a força do corpo e aprende a fazer o bem às pessoas. Na verdade, o tempo, o trabalho e a oração lhe trazem o equilíbrio necessário para prosseguir em sua jornada.
Pelo viés religiososer santo seria morrer para o mundo e viver para Deus. O morrer aqui entendido como aquela morte praticada no sentido religioso que é separar-se do mundo, santificar-se. Nesse sentido, Nhô Augusto, para fazer valer a esperança de ter sua hora e sua vez, deve submeter o corpo ao trabalho, deve ter uma prática de vida diferenciada, exigente e ritual, visando à salvação. Em outras palavras, deve negar a si mesmo, negar seus prazeres, negar seu egoísmo e conseguir viver de forma exemplar. Pela via religiosa, Nhô Augusto tenta romper com a ordem vigente, vislumbrando outra realidade, a futura.
Com o passar do tempo, Nhô Augusto começa a sentir que Deus lhe alivia o peso dos pecados, “Deus está tirando o saco das minhas costas, mãe Quitéria! Agora eu sei que ele está se lembrando de mim” (ROSA, 2012, p. 347). Em outro trecho Rosa escreve:
uma vez, manhã, Nhô Augusto acordou sem saber por que era que ele estava com muita vontade de ficar o dia inteiro deitado, e achando, ao mesmo tempo, muito bom se levantar. Então, depois do café, saiu para a horta cheirosa, cheia de passarinhos e de verdes, e fez uma descoberta: por que não pitava?!... Não era pecado... Devia ficar alegre, sempre alegre, e esse era um gosto inocente, que ajudava a gente a se alegrar (2012, p. 347-348).
Boff escreve que “Um ser humano que cultiva esta re-ligação não se sente perdido, nem angustiado, nem desesperado. Tudo o que acontece faz sentido” (BOFF, 1997, p. 157). A personagem transpõe o período de sofrimento, de penitência e começa a redescobrir a essência das coisas que o cerca. Estabelecendo uma nova ligação entre ele e o mundo que o circunda, pouco a pouco vai caminhando rumo a transcendência, a redenção. Observa-se que não apenas no sentimento de anseio religioso que o elemento fascinante adquire vida para a personagem. Em outro trecho, Rosa, descreve esse fascínio:
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu o mundo: um sol, talqualzinho a bola de enxofre do fundo pote, marinava céu acima, num azul de água sem praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um desperdício de verdes cá em baixo ─ a manhã mais bonita que ele já pudera ver (ROSA, 2012, p. 357).
A própria natureza se torna esse elemento fascinante que, na contemplação, consegue preencher e satisfazer a alma de modo tão inefável. Na verdade, a mudança de vida de Matraga, vem acompanhada do redescobrir a beleza das coisas visíveis. O astro rei que tanto o castigara durante os dias de capina e trabalho, agora se revela em todo seu esplendor e beleza. A personagem está ressignificando o mundo, interagindo com a natureza e modificando suas percepções do mundo e das pessoas.
No entanto, Nhô Augusto precisa dar mais um passo em sua vida, para ter sua hora e a sua vez, não pode se acomodar a essa vida tranquila, decide partir para cumprir sua missão. Ele parte montado num jumentinho e tal situação traz à cena a importância desse animal. É nele que Jesus entra na cidade de Jerusalém.
Assim como na vida dos santos, as tentações estão presentes, na vida de Nhô Augusto não seria diferente.  A sua nova vida seria abalada por fatos inesperados, o Tião da Teresa lhe traz notícias sobre a mulher, a filha e Quim Recadeiro:
Tião de Thereza ficou bobo de ver Nhô Augusto. E, como era casca-grossa, foi logo dando notícias que ninguém não tinha pedido: a mulher, dona Dionóra, continuava amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até de casamento de igreja, por pensarem que ela estava desimpedida de marido; a filha, sim, é que fora uma tristeza: crescera sã e se encorpara uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vida, seduzida por um cometa [...] O Quim tinha morrido de morte-matada, com mais de vinte balas no corpo, por causa dele, Nhô Augusto (ROSA, 2012, p. 344).
 O passado que deixara para traz torna-se presente, mas não ao ponto de abalar sua nova condição de vida, porém, o encontro com o grupo de jagunço no povoado do Tombador lhe tenta profundamente. Desse encontro, também fruto do acaso, nasce uma amizade profunda. Nhô Augusto nesse momento é tentado a entrar para o bando e poder vingar a desonra sofrida, ele rejeita. Ao pensar sobre a proposta fala “Mas, qual, aí era que se perdia, mesmo, que Deus o castigava com mão mais dura...” (ROSA, 2012, p. 355). Reforçando a conversão da personagem Rosa escreve “— Agora que eu principiei e já andei um caminho tão grande, ninguém não me faz virar e nem andar de-fasto!” (ROSA, 2012, p. 356).
O propósito de vida de Nhô Augusto é a salvação e ele está firme nesse projeto. Nesse ponto, percebe-se a semelhança entre Nhô Augusto e Francisco de Assis. Ambos se negam a voltar à vida de pecado que viveram. Francisco de Assis prefere ser deserdado pelo pai, a viver no pecado. Assim como o santo, Nhô Augusto está ligado à natureza, aos animais. Aprecia a beleza da revoada de pássaros, do nascer da manhã. Ele está irmanado e integrado a natureza, mas, ao mesmo tempo, sente que já está na hora de dar mais um passo rumo a salvação, entende que seu tempo naquele sítio já havia se cumprido. Por isso, deixa o casal de negros que foram, para ele, como pai e como mãe, e parte para o norte.
Para cumprir seu destino, ele monta num jumento que lhe guia às cegas pelo caminho. Chega, por fim, ao arraial do Rala-Coco, onde encontrará novamente seu amigo Joãozinho Bem-Bem.
Segundo a doutrina católica, no início do cristianismo, o martírio era o selo de total submissão ao Cristo, portanto, ser santo era morrer, não só por Cristo, mas como Ele, de tal forma que, santidade e martírio tinham, basicamente, o mesmo significado para o imaginário cristão, daquela época. Dessa forma, assim como Cristo morreu pela humanidade e nos deixou a seguinte mensagem “Se alguém quiser salvar a sua vida, perdê-la-á, e quem perder a sua vida por amor de mim achá-la-á” (BÍBLIA, Mateus 16: 25). Matraga morre por aquela família de desconhecidos, e ao morrer é reconhecido como santo: “Traz meus filhos, para agradecerem a ele, para beijarem os pés dele!... Não deixem este santo morrer assim...” (ROSA, 2012, p. 369).
Na verdade, Rosa sacraliza o espaço sertão e santifica os personagens, seu ato responsivo é mostrar um sertão diferente daquele relatado por Euclides da Cunha, um sertão cheio de veredas, vida, de sofrimento e redenção. Segundo Bolle, esse olhar oposto de Rosa sobre o sertão ocorre justamente pelo fato que Euclides olha do alto, Rosa olha de baixo “...o ensaísta-engenheiro sobrevoa o sertão como num aeroplano, o romancista caminha por ele como por uma estrada-texto. Ou então ele atravessa o sertão como um rio” (BOLLE, 2004, p. 76).
A santidade é construída ao longo da vida, ao longo da jornada. Em um ambiente violento, profano, dominado pelo medo, o autor do conto constrói uma personagem que vai da queda à ascensão.  Galvão percebe na escrita de Rosa, algo próprio dos ritos de iniciação na perspectiva cristã e transcreve as etapas que compõem esse rito da seguinte forma: “A uma vida de pecado se sucede uma morte aparente, seguida por uma ressurreição para uma nova vida, prefiguração da passagem da vida terrena para a vida eterna através da morte do corpo e salvação da alma” (2008, p. 77). A jornada feita por Matraga insere seu nome no rol dos santos populares, ou seja, pessoas que são veneradas como santas pelo povo, ainda que não figurem no cânone católico.
Até o momento, o caminho percorrido pela personagem demonstra uma mudança significativa e radical em sua conduta. Essa mudança deve-se à religiosidade ainda em construção e aos conflitos internos e externos pelos quais passou ao longo da narrativa. Deste ponto em diante, a busca pela santidade vai se configurando com maior intensidade, a personagem parte traçando o seu próprio percurso e alcança sua “hora e vez”. A sua morte, indica o nascimento de um novo santo.


Conclusão

Uma das conquistas aqui atingidas foi compreender a influência da religião, da religiosidade e do sagrado na obra de Rosa. O sagrado ressignifica o agir do homem perante a Deus, ao mesmo tempo em que a religiosidade estabelece a relação do homem com o mistério. A possibilidade de se construir um diálogo entre a obra literária com outros textos, como as Sagradas Escrituras, proporcionou uma experiência ímpar para se compreender o sentido da santidade, do sagrado, na obra de Rosa. Esse contato com a vida dos santos, com relatos sobre a busca de Deus, com as teorias sobre o sagrado e o profano, foi pertinente para fundamentar a análise e alcançar o objetivo proposto de tornar uma personagem fictícia em santo.


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[1] Licenciado em Letras pela Universidade Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), com especialização em Língua Portuguesa. Mestre em Ciências Humanas, na área de Literatura, cultura e fronteiras do saber, pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).Lattes: http://lattes.cnpq.br/1782691040321923.
[2]Admoestar se refere a reprimenda que se faz a alguém sobre incorreção ou inconveniência de seu comportamento, sua maneira de ser (HOUAISS, 2001, p. 87).
[3]A Regula Benedicti foi composta em 529 para a abadia de Monte Cassino, na Itália, por São Bento de Núrsia (480-543) (DIAS, 2011, p. 20), a regra preceituava a pobreza, a castidade, a obediência, a oração e o trabalho, bem como a obrigação de hospedar peregrinos e viajantes em seus mosteiros, dar assistência aos pobres e promover o ensino.