SÍLVIO ROMERO E LIMA BARRETO: DUAS “MARGINALIDADES” DIFERENTES!


  
Cícero João da Costa Filho
Pós-doutorando em História Social pela FFLCH/USP


Resumo:
Sílvio Romero e Lima Barreto foram dois escritores importantes para a compreensão da história da literatura brasileira. Apesar de nascidos em épocas e contextos diferentes, suas construções são de extrema importância para a interpretação de Brasil. Alguns pontos são comuns a estes dois escritores, cuja maior virtude era a denúncia social. Os dois escritores criticaram um Brasil onde reinava a corrupção dos políticos, a vaidade da elite intelectual, a falta de amor do brasileiro ao seu país, etc.

Palavras- chave: Sílvio Romero, Lima Barreto, Brasileiro, Corrupção, Escritores.    

Abstract:
Silvio Romero and Lima Barreto were two important writers for understanding the history of brazilian literature. Although they born at different times and contexts, their constructions are extremely important for the interpretation of Brazil. Some points are common to these two writers, whose the greatest virtue was a social denunciation. Both writers criticized a Brazil where reigned the corruption of politicians, the vanity of the intellectual elite, the lack of love of the brazilian to his country, etc.

Key-words: Silvio Romero, Lima Barreto, Brazilian, Corruption, Writers.



         Com um toque fino e especial Sílvio Romero e Lima Barreto guardam pontos em comum num Brasil que não parava de se movimentar. Trinta anos separam o nascimento dos dois, mas os escritores combatentes1 guardam semelhanças quando de suas explicações de Brasis. De um lado, um bacharel munido das últimas teorias científicas, ele mesmo afirmava ter sido o primeiro a ter introduzido no Brasil o critério etnográfico; de outro, um pobre mestiço que mesmo nascido na capital das letras, sofreu a exclusão do homem pelo homem. Sílvio lutou ardentemente pela modernização de seu país munido dos preceitos científicos de sua época: as teorias do determinismo, do evolucionismo e do positivismo2. Tentou explicar o atraso de seu país atinando para os elementos raciais e mesológicos em um momento histórico que rumava para a superação do atraso brasileiro. Já Lima Barreto, assim como Sílvio Romero, o modelo de Brasil que aspirava, atinando para os mais variados problemas deste, questionando as condutas das oligarquias, a miséria e o analfabetismo da população, a preocupação das elites com coisas supérfluas, a imitação das idéias estrangeiras, com uma diferença, qual seja: sua vida foi marcada pela exclusão, uma marginalização que marcou toda a sua obra. Como sofreu Barreto, por não ter adentrado os círculos cariocas, devido à incapacidade de um mestiço!
Em 1888, publicava Sílvio sua obra mestra, História da Literatura Brasileira, dando vivas de maneira emocionada à lei Áurea. Barreto era uma criança. O homem simples do norte lutou tenazmente para ver seu país no rol das nações civilizadas, para isso criticou assiduamente o atraso do Brasil, muitas vezes de maneira agressiva aos seus inúmeros adversários. Sílvio Romero era impetuoso, um turbilhão, tipo uma cascavel vindo das paragens do norte3. Lima Barreto só podia guardar lembranças da passagem do império para a república, embora recordasse vivamente da figura de seu pai e de sua professora da escola. O Brasil moderno tão esperado por Sílvio e sua geração, abrindo portas ao funcionalismo público e trazendo ares democráticos foram sentidas por Lima Barreto sob um caráter de exclusão. O menino tipógrafo criticou temas abordados por Sílvio com o mesmo tom de denúncia. Coincidência ou não o pobre mestiço fazia uso de terminologias bem conhecidas por Sílvio como malremédioproblemas1, em sua denúncia de um Brasil republicano, mas sofrendo dos mesmos males de outrora.
Lima Barreto, marginalizado no campo das letras, denunciou temas que o turbulento Sílvio Romero tanto se enfureceu. O bacharel da cidade de Lagarto lutou tenazmente para presenciar a modernização de um país dominado de norte a sul pelas oligarquias, politiquice e falta de amor aos reais problemas do país; já o escritor carioca não teve a oportunidade de adentrar aos círculos literários, muito menos a Academia Brasileira de Letras, sonho de todo escritor! O escritor mestiço foi filho de uma república já denunciada por Sílvio, quando afirmava que “A alma brasileira depois de um ano e meio de Republica, tem a mesma fôrma e conserva a antiga atitude. Nenhum instinto novo revelou, nenhuma aspiração nova abriu para o lado do porvir”.(ROMERO, 1906, p.111)
O que Sílvio tanto criticou e denunciou abertamente, de modo raivoso em seus estudos, Barreto só confirmou o que a geração do escritor sergipano tanto lutara: a república não melhorou a situação do Brasil. Logo viriam os movimentos de contestação, mostrando a pobreza social da maioria da população brasileira. As revoltas da Vacina, de Canudos e a do Contestado, dentre outras, mostrou não apenas a miséria da população brasileira, como também a falta das mínimas condições de higiene. Tudo isto por falta de assistência do poder público. Os dois escritores apontaram os males de um país tão rico, mas ao mesmo tempo pobre. Tanto Sílvio Romero como Lima Barreto sabiam dos problemas brasileiros, um deles, a falta da mínima instrução por parte da população. Para dois nacionalistas, não podia existir algo sério! Pouquíssimas pessoas tomaram conhecimento da instalação da república.
        Sílvio integrou a famosa Geração de 702, denominação composta por escritores que acolhiam os ideais do determinismo racial e geográfico, do positivismo e do evolucionismo. Tais escritores, em sua maioria, defendiam a abolição da escravidão e o regime republicano. O início da produção intelectual de Sílvio data de 1869, quando era aluno da Faculdade de Direito do Recife, quando ensaiava a série de artigos contra a visão romântica de Brasil haurida pelos pais do romantismo brasileiro, como Gonçalves Dias, Magalhães, Sales Torres Homem, etc; Barreto criticava a situação do Brasil republicano, dentre alguns temas a “superstição doutoral” representada pelo poder da nobreza na república dos estados unidos da bruzudanga, em um Brasil onde São Paulo passava a ser o centro mais importante do país. O modernismo das ideias, expressão do crítico literário paraense José Veríssimo, que gestou o bando de ideias novas 3 espalhando-se para o resto do Brasil, divulgando nomes como Taine, Darwin e Spencer agora eram suplantados por um novo modelo de modernidade disputado por Rio e São Paulo. 4
Sílvio era nortista, acostumado e admirador da vida simples do homem do campo, dos tipos sertanejos, criado até os cinco anos no engenho dos avós, escutando o cantar dos pássaros, as toadas dos tangedores de boi, as missas acolhendo comunidades vizinhas, os cambiteiros, etc; Lima Barreto nasceu nos arrabaldes da capital do país onde a elite pouco avistava, estava presa a rua do Ouvidor, espaço de todo o mundanismo chic e reflexo direto de todo o processo de europeização. O que Sílvio denunciou, Barreto sentiu na pele!
Assim como o bacharel em poucas páginas respondeu ao questionário de João do Rio, falando de sua educação, de seus pais, dos tempos de meninice no engenho dos avós, e, sobretudo destacando a importância da negra Antônia, pessoa simples e muito religiosa que marcara fortemente sua personalidade, haja vista sua propensão analítica a crítica como ele mesmo afirma; Barreto falara de seu pai, homem farto de leituras, bilíngüe e patriota. Ao ódio de Sílvio que quando criança sofrera maus tratos dos irmãos mais velhos impelindo-o a crítica, Lima Barreto contava suas dores devido ao alcoolismo e morte de seu pai atacado pelo estado mórbido.       
O remediado e filho de avós portugueses que nasceu em Lagarto no ano de 1851, saiu de sua pequena localidade para realizar os preparatórios na capital do império e mais tarde fazer-se bacharel. Escritor tantas vezes conhecido por um caráter tempestuoso conheceria os grandes jornais do Rio, dentre estes, o Jornal do Comércio, dirigido por José Veríssimo, um dos seus grandes inimigos, as panelinhas literárias, a situação do país em meio à grande ilusão de grandeza aparentando aquilo que não somos.
À medida que se instruía mais Sílvio adquiria mais adversários, fosse no campo intelectual ou político, apontando a ilusão de jornalistas, escritores e políticos num Brasil coberto de milhões de analfabetos, alheio a verdadeira política, denominada por Sílvio de politiquice, onde a maioria das pessoas se preocupava somente com a simples subsistência, a política alimentar. O Bacharel não poupou a elite simbólica pelo total desconhecimento dos novos preceitos da Crítica Moderna, instrumento de extrema importância para a compreensão do pensamento de Sílvio Romero5. O escritor sergipano se preocupou com todos os problemas brasileiros, segundo Nélson Werneck Sodré.  
Pensando um país moderno, Sílvio via o atraso do Brasil disseminado por todos os lados. A princípio era o brasileiro portador de um caráter apático devido à colonização portuguesa, raça ibero-latina, que se encontrava ao tempo da colonização em estágio decadente. Acreditando na capacidade racial dos povos brancos, como por exemplo, os povos nórdicos, saxões, bretões, etc, o escritor associava parte do atraso do Brasil diretamente à colonização processada pelos portugueses. Munido da Crítica Moderna, tributária de Taine e orquestrada pela lei evolutiva, Sílvio pensou o Brasil tendo em vista o que lhe oferecia a ciência da época: foi um homem de seu tempo, segundo Antonio Candido.
Traçando um quadro naturalista da literatura brasileira, buscava compreender a história da sociedade brasileira como um todo almejando extrair dos vários campos do conhecimento a exata contribuição de cada área. Nesse sentido, era Sílvio um homem de “espírito geométrico” como nos lembra seu biógrafo Sílvio Rabelo. Aprisionado pelas teorias que pareciam à última verdade científica da época e obcecado pelas classificações, Sílvio muniu-se das teorias científicas da época, especificamente, a Crítica Moderna. A Crítica seria a base de todo o pensamento de Sílvio Romero, esta era a ferramenta pelo qual o escritor via os demais campos do conhecimento. Sílvio era um homem de visão ampla, sua maneira de ver o Brasil era apenas parte de seu olhar totalizante. Bem lembra Antonio Candido que “o intuito de Sílvio Romero foi submeter a cultura do seu país a um processo integral de crítica, a fim de desbastá-las das excrescências incômodas e mostrar-lhes o caminho certo – ambição que pode parecer pueril a quem não estiver familiarizado com a sua alta confiança, e que já vem explícita nos seus primeiros livros”. (CANDIDO, 1945. p. 156)
Buscando compreender o Brasil a par das teorias que pareciam a última verdade da época, Sílvio chamava atenção para as categorias do meio, da raça, do momento histórico, da influência estrangeira, salientando a extrema importância do mestiço, o que para ele era a genuína representação do brasileiro. Não bastasse o revoar das idéias novas que chegaram ao Recife, teve Sílvio que selecionar qual a melhor teoria para explicar o Brasil. Para além de ser Sílvio um homem atento as últimas teorias científicas, sua maior preocupação era encontrar uma teoria que simultaneamente explicasse o atraso do Brasil e lhes oferecesse argumentos sólidos para a construção de um Brasil moderno, sem seus inúmeros problemas. Este foi o maior ideal do escritor.
         Sílvio foi um escritor truculento, polêmico, ora com posições extremamente racistas onde o atraso do país devia-se a colonização portuguesa, responsável pelo surgimento de um caráter brasileiro apático, ora acreditando na superação deste caráter apático por meio da educação.
Ao mostrar seu vasto conhecimento, oriundo de sua enciclopédia européia, Sílvio ia denunciando os problemas brasileiros, enfrentando seus inúmeros adversários, e assim apontando qual o seu Brasil Social. A crítica aos escritores românticos justificar-se-ia pela visão de um Brasil tupiniquim, a velha imagem de Brasil vestida pela índio mania, um Brasil visto de maneira irreal. Um dentre os grandes e inúmeros problemas apontados por Sílvio era a mania de nos passarmos por aquilo que não somos, aumentarmos o tamanho de nossos rios e nossas florestas, e acima de tudo, passarmos uma imagem no exterior que não condiz com o Brasil real, “Ninguém se iluda; este é o Brasil real, cujo verdadeiro estado precisamos conhecer para dele sairmos por meio de forte reação. Não é por baboseiras de Anthouard, Pierre Dénis e outros engasopadores que havemos de saber o que se passa em nossa casa”.(ROMERO, 2001, p.173)
À medida que Sílvio tomava amplo conhecimento a partir das leituras de Comte, Darwin, littré, etc, mais mostrava o escritor combatente que foi: seu início de carreira deu-se justamente por sua contribuição positivista em detrimento do conhecimento de Spencer. Em sua última fase de pensamento foi influenciado pelo conhecimento da Escola de Le Play, e seu discípulo maior Edmond Desmolins, ancorada na análise das formas de organização social e importância das raças, constituída por figuras como Lappouge, Ammom e Goubineau.
Muitos foram às críticas de Sílvio movidas aos escritores apadrinhados nas panelinhas literárias do Rio. O polêmico Sílvio não pouparia os mais prestigiados nomes da crítica como José Veríssimo e Machado de Assis. Ao primeiro votou-lhes as mais baixas qualidades, o “crítico das tartarugas” que pouco entendia da nova receita para interpretar o Brasil. O desastrado pescador de gererê, linha e tarrafa não passa de “magra chotona que por vezes cai no chão”. Ao célebre Machado de Assis são conhecidas as fortes críticas ao mestiço que “repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que deixa-nos a impressão d'um perpétuo tartamudear” (ROMERO, 1897.p. 83)
Muitos eram os problemas brasileiros e buscava Sílvio o remédio. A educação repararia o caráter apático do brasileiro e Sílvio tomaria como exemplo a educação inglesa, instalada no campo, para despertar o caráter de iniciativa. O caráter brasileiro precisava urgentemente ser alterado para só assim está o brasileiro preparado para as “lides” do dia a dia. Sílvio insistia no caráter brasileiro ligado a raça portuguesa. Precisava o país de uma nova maneira de ensino, contrário ao ensino das escolas e seminários imperiais que entravava e sequer despertava o livre pensamento. Daí o ataque do bacharel a metafísica agenciadora de toda visão irreal, somente possível devido ao ecletismo de Cousin e espiritualismo de Jouffroy. Era Sílvio um homem cartesiano e embalado pelos teóricos com suas formulações científicas!
Segundo o escritor sergipano os escritores nacionais e estrangeiros que analisavam o Brasil desconheciam os novos preceitos da Crítica Moderna. A História literária de Sílvio era senão um calhamaço de informações figurando nomes das mais variadas áreas do conhecimento. Por meio de uma síntese generalizante, síntese esta elaborada pelos grandes escritores em seus países, Sílvio viu o Brasil sob vários pontos de vista, mas conforme um único olhar: o olhar da Crítica Moderna.
Nos trabalhos do polígrafo vemos o gosto pela classificação, a busca constante pelo início da História literária brasileira, a preocupação e a admiração pelo trato com as fontes e verdade dos fatos, o interesse na identificação do escritor “nacional” que deve ser apreciado como representante da nação e a extrema preocupação com a formação do país enquanto nação. Politicamente o Brasil era dominado pelas diversas oligarquias, impedindo cada vez mais o conhecimento do Brasil. O próprio povo reforçava este estado de coisa, uma vez que não se interessara pelos reais problemas nacionais concernentes a política do país. Economicamente não tinha o Brasil um produto estável diante da longa dependência com relação à metrópole. Toda essa situação era senão reflexo da falta de amor ao país. Sílvio era um fervoroso nacionalista, como a maioria dos homens de seu tempo!
         No campo literário não eram os escritores e os poetas da corte melhores que os escritores de outras províncias do estado, inclusive, os de Sergipe. Sílvio denunciava a corrida dos homens de letras pela carta de bacharel, o que facilitava a entrada no funcionalismo público. Mas, o Brasil de Sílvio não foi o país vivenciado de Lima: era simplesmente a mesma Bruzudanga! O Brasil pensado por Sílvio e que fez deste um verdadeiro combatente, reiterando várias vezes sua missão de construir um Brasil melhor, só descortinou a desilusão de um homem dentre tantos, quando da instauração da república, equacionada pela célebre expressão de Aristide Lobo: esta não era a república dos nossos sonhos!
O que Sílvio, e em parte sua geração tanto lutou6, Barreto sentiu, vivenciando o morticínio de Canudos e a desatenção as populações sertanejas que tanto chamou a atenção do primeiro. O que Sílvio lutou para implantá-la, Barreto colheu seus piores frutos. As leituras que fizeram moda a época de Sílvio, enaltecendo ânimos e arregimentando nossos bacharéis doutores na busca por um Brasil moderno teve em Lima Barreto um movimento inverso.
Escritor combatente que sempre buscou falar a verdade na busca para subtrair seu país ainda preso a uma estrutura colonial, recorreu Sílvio aos paradigmas científicos de sua época, influenciado pelas teorias do cientificismo europeu. Já Barreto, denuncia de maneira contudaz e irônica, não mais a partir das leituras que pregavam a evolução e a seleção do mais apto, mas de pensadores que davam sentido ao seu “eu” frustrado e inquieto, devido a sua marginalidade.
  Se Sílvio recordava do questionário respondido a João do Rio, Barreto não esquecia em seu Diário Íntimo sua passagem pela Faculdade de Direito Largo do São Francisco. Ao conservadorismo do ensino tão combatido por Sílvio, que veio culminar com o conhecido caso de sua defesa de teses em 1875, Barreto não se eximiu da denúncia de um ensino retrógrado, porque baseado pela metafísica ensinada nas escolas e seminários brasileiros.
Embora não fosse um escritor aprisionado pelo fetiche científico da época, Barreto combate muitas temáticas que chegam a se confundir com as posições de Sílvio. Se o romancista e jornalista carioca não foi um homem de “espírito geométrico”, buscando de maneira fremente classificar as ciências, o ensino brasileiro, o que competia a esta ou aquela área, reforçava as mesmas críticas já salientadas tenazmente por Sílvio. A falta de preparo dos professores das faculdades de Direito juntamente com o poder da carta de bacharel foram temas comuns entre os dois escritores. Sílvio é a “voz de canhão”, o “turbilhão” 7, a “fera sempre ferida”; Barreto é mais comedido, mas não menos crítico. Se não bastassem as regalias oferecidas pela carta de bacharel, a busca pelo pergaminho era reforçada pela própria população analfabeta que cada vez reforçava o poder do doutor na nobre República da Bruzudanga8. Outras eram as preocupações dos futuros bacharéis brasileiros bem notados por Barreto. A carreira de bacharel era a mais procurada, porque significava poder e não preocupação com o conhecimento, pois 

Todas as variedades do doutor acreditam que os seus privilégios, honras, garantias e isenções, como se diz nas patentes militares, se originam do saber, da ciência de que são portadores; entretanto, entre cem, só dez ou vinte sabem razoavelmente alguma coisa. São mais sempre, além de medíocres intelectualmente, ignorantes como um bororó de tudo o que fingiram estudar. Aquilo que os antigos chamavam humanidades, em geral, eles ignoram completamente. Não são falhas, que todos têm na sua instrução; são abismos hiantes que a deles apresenta. (BARRETO, 1923, p.6)

Um dos pontos comuns entre Sílvio e Lima era a crítica à “república dos bacharéis”. Tanto Sílvio como Barreto sabiam do peso da carta de bacharel, da importância desta por que abria as portas ao funcionalismo público num estado onde o público confundia-se9 com o privado. Sílvio temia o mandonismo local operado pelas oligarquias regionais num Brasil republicano; Barreto falava de um Brasil onde a maior oligarquia era o Rio. Nascido no subúrbio carioca, Lima Barreto sofreu a exclusão por ser de origem negra. Por conta da cor sentiu-se injustiçado no “cortiço de vespas”, no maior espaço “civilizado” do Brasil da época10. Como Sílvio, que na maioria das vezes em seus artigos antepunha suas justificativas, Barreto sentia-se perseguido por não pertencer à elite brasileira que creditava a cor o maior distintivo. Seus escritos são a maior demonstração da injustiça sentida pelo jornalista que não conseguiu ascensão social por não ser branco.
Lima Barreto retratou a marginalidade não apenas dos negros, mas de todos aqueles que não integravam a elite carioca. Marginalizado por conta da cor, embora com plenas condições de adentrar a maior instituição de letras do país, toda a obra do mulato carioca é marcada pela dor, sofrimento e pelo sentimento de injustiça. Ao mundo excludente da elite política que adentrou o regime republicano, Barreto denunciou a condição daqueles que jamais alcançariam a estabilidade econômica.
         O negro que cedo fora amanuense e tipógrafo retratou a dificuldade para os que vêm de uma classe subalterna e sentem totalmente desamparados na Capital Federal. Lima Barreto denunciou o que já era comum no Brasil de sua época. Se no início do século XVIII como nos lembra Nelson Werneck Sodré “aparece pela primeira vez, a importância, ou pelo menos a valia da instrução, do saber que está nos livros, da cultura individual – e a curiosidade também” (SODRÉ, 1969, p.137), facultando o “interesse” do conhecimento pelas leis, o que era indispensável para se pensar um novo Brasil, Barreto salientava a existência de dois mundos no país: o mundo de uma elite de tradição rural e o mundo de uma massa despossuída e analfabeta. Aversa ao trabalho manual, traço da “aristocracia” brasileira onde um escravo podia aspirar à condição de fidalgo, o que caracterizou a ilustração brasileira fora a tendência pragmática do conhecimento. Por aqui, nada de “ginástica da alma”, mas sim algo que surtisse resultado prático. Assim, buscavam-se cursos que facultasse ao emprego público, solidificando a corrida ao anel de rubi, ao pergaminho, causando uma verdadeira superstição doutoral.

“Essa abuzão doutoral, além de impedir a inovação, pondo todas as inteligências num mesmo molde, instalando nelas preconceitos intelectuais obsoletas; além de tudo isso, com o nosso, ensino superior, feito em pontos manuscritos ou impressos, em cadernos e outros bagaços, muito exprimido, das disciplinas do curso, sem professores atentos ao progresso do saber professado por eles e, por eles encarado no dia que recebem o decreto de nomeação — causa toda a nossa estagnação intelectual, desalenta os mais animosos, não dá vontade ás inteligências livres para o esforço mental e vamos assim ficando como os chineses, parados intelectualmente, mas sempre cheios de admiração pelos grotescos exames de Cantão”. (BARRETO, 1923, p. 12)

  

        A fala de Barreto parece a de Sílvio quando tratava a situação do ensino brasileiro, pregando a reforma do ensino e a condição dos professores. Assim como Sílvio denunciou reiteradamente a falta de conhecimento da elite brasileira, constituída por bacharéis, médicos e jornalistas, com relação ao conhecimento da Crítica Moderna, não tão diferente era o quadro denunciado por Barreto frente uma nobreza doutoral na República dos Estados Unidos da Bruzudanga.
Sílvio ofereceu um panorama da sociedade brasileira da época em seu O Brasil Social; afirmando que “o Brasil Social é que deve atrair todos os esforços” (ROMERO, 2001, p.85), Barreto esboçava sua denúncia por meio de seu personagem Major Quaresma. Apaixonado pelo Brasil, conhecedor dos cronistas e dos primeiros historiadores, como Rocha Pita e Cardim, Barreto chama atenção para a importância da cultura popular, de modo específico, da modinha.
         Assim como Sílvio, o major Quaresma amava as coisas brasileiras e buscava o que há de singular no país, pois só assim seria possível conhecer o Brasil. Conhecer bem o Brasil, para denunciar e esperar um novo Brasil resume o maior objetivo dos dois escritores. Refletindo cerca de trinta anos para escrever sobre seu país, mostrando uma inconteste paixão a este em meio a livros e mais livros, o major Quaresma dava importância a modinha cantada por Ricardo Coração de Leão. O que Sílvio Romero mais queria era perscrutar a influência da cultura popular na formação nacional, assim como a influência das raças.
         Para os dois escritores era imprescindível o conhecimento do país frente à situação de então. Se no período monárquico o “atraso” se dava por conta da manutenção da escravidão, com a instauração da república o quadro do país não melhorou. Argumentava Sílvio que o Brasil não era tão grande como queria nossa elite intelectual e política que mostrava no exterior um Brasil de Haia, uma mania de “passarmos pelo que não somos”. (ROMERO, 2001, p. 121). Assim como o crítico sergipano desejava descrever o Brasil real, apontando os males para propor o melhor remédio, o romancista e jornalista tinha uma postura semelhante. A paixão e o heroísmo do Major Quaresma pelo seu país devia-se às leituras dos grandes escritores da história do Brasil, leituras também de Sílvio Romero. O Brasil retratado em Triste Fim de Policarpo Quaresma é um Brasil grande, com um rio enorme, que é o Amazonas, com bons poetas e escritores românticos.11 O Brasil visto por Sílvio, apesar de não ser o Brasil mostrado no exterior, não deixa de ser grande como o Brasil de Barreto. Na verdade, Silvio é um polemista nato que viveu um momento onde as polêmicas eram parte integrante da atuação jornalística, inseparável da atuação letrada, fosse esta qual fosse, ao passo que Barreto é um romancista que esboça sua crítica de modo diferente.
         A preocupação de Sílvio era falar a verdade, fazer justiça diante de temas pertinentes ao Brasil, daí seu arroubo e seu comportamento tempestuoso ao longo de sua vida literária. Como Sílvio, que lia tudo que lhe caía às mãos para traçar o quadro real do Brasil, Barreto criava um personagem denunciador da situação republicana amparado pelo conhecimento de causa. Tanto em Sílvio como em Barreto o amor a pátria, seguido do conhecimento do que era o Brasil real são traços peculiares de suas denúncias. Ao pragmatismo de Sílvio que se baseou nos preceitos da Crítica Naturalista12, donde cita os mais eminentes críticos mundiais visando a identificação dos males e respectivos remédios, Barreto cobriu-se de um vasto leque de autores para conhecer o Brasil de seu tempo. Afinal de contas, do que adiantava tantas leituras, se não levasse ao conhecimento do país?
  Sílvio não era um escritor de analisar artisticamente as coisas, o que não significa que não tenha se preocupado com aspectos pertinentes a “deusa da arte”, mas sim um escritor que apoiado num grande leque de autores da Crítica Moderna buscou sustentar seus argumentos. Somente conhecendo o Brasil seria possível alterar o que tanta incomodava Sílvio Romero e Lima Barreto.
Sílvio Romero sempre se justificava quando escrevia seus livros ou artigos. Dizia-se sempre caluniado, já sabia dos embates que teria pela frente acerca deste ou daquele tema, fosse por conta de seu estilo ou por sua postura agressiva. Na verdade, embora fosse de temperamento tempestuoso, como nos lembra Araripe Júnior, Sílvio era bonachão e um homem da verdade, que não media palavras quando se tratava de assuntos pertinentes aos rumos da nação. Não podemos associar como recorre insistentemente os críticos de Sílvio toda sua vasta produção a este caráter tempestuoso, mas em nenhum momento pode ser desprezado o turbilhão que foi o crítico sergipano, o qual dizia que não escrevia para agradar. Na farta produção do autor da História da Literatura Brasileira, os aspectos do Brasil da época são todos negativos. Para além da imagem fantasiosa do país, inúmeros eram os problemas do país.
De forma breve podemos aludir às críticas do bacharel.
         Num país onde existiam cerca de 12 a 15 milhões de brasileiros vivendo em situação de miséria, onde a preocupação maior era com a sobrevivência, muitos trabalhavam para sustentar os detentores do poder, no caso, os políticos; o ensino da forma como estava organizado não capacitava o amor a pátria; a corrupção política operacionalizada pelas oligarquias perdurava de norte a sul do país; a elite brasileira desconhecia o aparato teórico para mudar toda essa situação; os políticos não apenas desconheciam os reais problemas nacionais como nada faziam para alterar o quadro; ao longo da história do Brasil nunca se explorou um produto do país, daí a defasagem do câmbio. Diante de tantos problemas, perguntava Sílvio o que fazer para alterar este quadro negro do Brasil. O mais agravante era que este estado de coisas era reforçado por uma população analfabeta que por total desconhecimento não amava o país, e como conseqüência, não se interessava pelos seus problemas.
  Lima Barreto denuncia de forma contundente embora irônica o quadro social e político da república. Não podia deixar de aludir à situação das letras no Brasil, embora reconhecesse a dificuldade em se tratando da formação de uma História da Literatura Brasileira. Como Sílvio, em busca daquilo que dava sustentação à nação brasileira, Barreto chamava atenção para a importância da literatura oral, confrontando a literatura “oficial” realizada por literatos carregando em suas bagagens a apresentação em conferências, poesias citadas nas salas, discursos pronunciados em casamentos, em banquetes presenciados por figurões, tudo regado a fantasias, etc.
Barreto iniciava de maneira irônica uma de suas obras mais conhecidas. Predominava no Brasil a “escola literária”, não que todos fossem os escritores deste “rito”, mas poucos eram os que se interessavam pelas coisas do Brasil e que por isso se aprofundavam nas questões importantes. A falta de interesse pelos problemas brasileiros e a corrida pelo diploma junto as Faculdades de Direito ainda eram sentidas:

Quando (em! gera!) vão estudar medicina, não e a medicina que eles pretendem! exercer, não é curar, não é ser um grande medico, é ser doutor; quando se fazem oficiais do exercito ou da marinha, não é exercer as obrigações atinentes a tais profissões, tanto asisiiml que fogem de executar o que é próprio a elas. Vão ser uma ou outra cousa, pelo brilho do uniforme (mülam sel-o para ter a gloria que as letras dão, sem querer arcar coto as dores, com' 0 esforço excepcional, que elas exigem em troca. A gloria das letras só as tem, quem a elas se dá inteiramente; nelas, como, no amor, só é atoado quem se esquece de si inteiramente e se entrégftcota fé cega.13 (ROMERO, 1922, p.15)


A corrida para obter a carta de bacharel ainda persistia, o que tirava o foco de outros campos do saber, saberes estes que serviriam para o conhecimento do país, ao ponto que prevalecia a opção pelo bacharelado quando o formado já possuía uma formação superior, pois esta levava as estruturas funcionais do estado. Daí é que Lima Barreto denunciava que,

A maioria dos candidatos ao doutorado é de meninos ricos ou parecidos, sem nenhum amor ao estudo, sem nenhuma vocação nem ambição intelectual. O que eles vêem no curso não é o estudo sério das matérias, não sentem a atração misteriosa do saber, não se comprazem com a explicação que a ciência oferece da natureza; o, que eles, vêem é o titulo que lhes dá namoradas, consideração social, direito a altas posições e os diferencia do filho de seu Costa continuo de escritório do poderoso papai. (BARRETO, 1923, p.6)

O escritor de herança negra nascido numa realidade pobre sabia que o mundo literário lhes era fechado e assim apontou o ensino deficitário, único meio de ascender socialmente e levar uma vida estável. Nos livros de Lima Barreto, assim como vários romancistas da época, vemos o Brasil ser reduzido ao mundo civilizado da corte, para onde se dirigiam escritores de todo o Brasil buscando a estabilidade da vida por meio da “atividade literária”, numa clara constatação de dois mundos. Quem se dirigia ao Rio buscava a salvação do dia a dia pelas letras. Era mediocridade demais para um jovem talento apaixonado pelo Brasil, um homem que conhecia seu país a partir dos grandes escritores, reduzir-se a medíocre e parada vida de funcionário público.
Lima Barreto era simpático as classes pobres de seu país, militou junto ao partido socialista influenciado que foi pela Revolução Russa e sentiu a dor da exclusão por nunca ter adentrado os salões e rodas literárias. Teve uma vida marcada por dores, frustrações e o fardo da cor,

“discriminado, solitário e sofrido, sua obra, repleta dos vários desabafos comoventes aqui registrados, atesta que ele construiu sua literatura como um grito de dor e revolta contra a sociedade que o fez sofrer. A violência da sociedade contra o individuo, ao excluí-lo - pela discriminação e pelo preconceito – da possibilidade do exercício pleno de suas potencialidades e desejos, alcança um nível emblemático em Lima Barreto”. (MACHADO, 2002, p.64)


         A república não trouxe dias melhores, a carestia de vida só acirrava os conflitos sociais: o rico se tornava mais rico e o pobre ficava mais pobre. Um país tão grande como nos mostrava o Major Quaresma, onde não precisávamos visitar outros países porque nosso país possuía uma enorme riqueza natural, onde produzíamos tudo para o “estômago mais exigente”, estava muito mal administrado politicamente e o conhecimento sofria a instrumentalização das mais variadas formas de corrupção política. Que diriam hoje estes dois escritores num país que para mais ou para menos foi formado sob uma estrutura política, onde o Estado era senão a formulação jurídica política de uma elite enriquecida pela atividade agrária onde as diversas formas de escravidão eram a pedra de toque do estado nacional brasileiro?!


BIBLIOGRAFIA
1 Utilizamos expressões dos autores em itálico para reforçar nossas idéias.
2 Expressão bem conhecida para designar o grupo heterogêneo dos autores influenciados pelas idéias do positivismo, determinismo e evolucionismo. Vale lembrar que os autores integrantes da Geração de 70 não nasceram rigidamente na mesma data, uns nasceram antes e outros bem depois. Tal designação serve para orientar o grupo de leitores, jovens estudantes, intelectuais, e políticos, que compactuavam no combate a ordem imperial. Ver ALONSO, Ângela. Idéias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil - Império. São Paulo: Paz e terra, 2002
3 Expressão bem conhecida utilizada por Sílvio Romero para se referir ao espírito moderno das novas idéias do cientificismo europeu divulgadas naEscola do Recife.
1 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
2 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil. 1870-1930. São Paulo: Cia das Letras, 1993.
3 MENDONÇA, Carlos Sussekind de. Silvio Romero: sua formação intelectual (1851 -1880). São Paulo: Ed. Nacional, 1938.
4 VERÍSSIMO, José. História da literatura Brasileira. São Paulo: Editora Letras &Letras, 1998.
5 RABELLO, Sylvio. Itinerário de Silvio Romero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
6 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4ed. São Paulo: Brasiliense, 1995.
7 CANDIDO, Antonio. Introdução ao método crítico de Silvio Romero. São Paulo: Tese/FFLCHH, 1945.
8 BARRETO, Lima. Os Bruzudangas. Rio de Janeiro: Jacinto Ribeiro dos Santos, 1922.
9  HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª ed São Paulo:Companhia das Letras,1995.
10 NETO, A.L. Machado. Estrutura social da república das letras: sociologia da vida intelectual brasileira. 1870-1930. São Paulo: Edusp / Grijalbo, 1993.
11 BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais,1915.
12 ROMERO, Sílvio. Estudos de Literatura Contemporânea. (edição comemorativa). Rio de Janeiro: Imago Editora; Aracaju; Sergipe: Universidade Federal de Sergipe, 2002. (1ª. Ed. 1884)