ENVOLTO COM PRESERVATIVO: O FALSO MENTIROSO DE SILVIANO SANTIAGO

Karine Bueno Costa
    (UNESPAR-FAFIUV)

“Ficções, artifícios são os nomes mais honestos que a literatura pode assumir”.
Blanchot

“Somos dois e somos o mesmo.”
Borges

Resumo: Com plena consciência da insuficiência linguística que a linguagem possui com o real, em O falso mentiroso, Silviano Santiago apresenta literariamente a problemática que envolve a representação mimética do real na escrita. A partir do jogo entre verdade e mentira estabelece-se toda a narrativa do livro. Perscrutar-se- á, portanto, como esse texto envolto por uma camisinha de Vênus coloca em xeque a questão emblemática que existe entre vida e obra do escritor.
Palavras chave: O falso mentiroso, despersonificação, performance.

A impossibilidade de representação de um eu perpassa todas as páginas do livro O falso mentiroso, de Silviano Santiago. O escritor carioca constata no romance que quando se pretende através da linguagem literária fazer cópia de uma exterioridade um abismo se faz. O real é sempre incomunicável. Contudo, seus resquícios podem ser abstraídos por meio de imagens. É em meio a essa complexidade que a obra se constrói. O personagem principal desafia a impossibilidade e deseja saber sua origem, busca responder a pergunta edipiana: Quem sou eu?
Na ilustração da capa apresenta-se a imagem de um bebê, fotografia esta do próprio autor, Silvino Santiago, o que nos leva a pensar que se trata de uma autobiografia. Como o subtítulo aponta, de memórias do autor. Na contracapa, há uma breve explicação, retirada de uma enciclopédia, para o paradoxo do título. O qual é atribuído a Euclides de Mileto (século IV a. C.), que dizia: “se alguém afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por isso, novamente falsa”.  Diante de tal dilema, perguntamo-nos: Quando alguém diz “eu minto” está sendo mentiroso ou verdadeiro?
É a partir desse jogo entre verdade e mentira que se estabelece toda a narrativa do livro. O personagem-narrador inicia seu relato de vida afirmando que é um ser sem origem, pois diz: “Não tive mãe, não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai. Também não me lembro da cara dele” (2004, p. 9). Logo em seguida, afirma sua maior verdade: “Posso estar mentindo. Posso estar dizendo a verdade” (2004, p.9). Sendo assim, sobra ao leitor acreditar ou não no texto que se segue.
Blanchot, em O livro por vir, diz que: “Ficções e artifícios são os nomes mais honestos que a literatura pode assumir” (2005, p. 138). Portanto, com base nessa afirmação nosso personagem está dizendo uma verdade, por isso, é um falso mentiroso. Para o francês (2005, p. 138), a palavra ‘trapaça’, a palavra ‘falsificação’, aplicadas ao espírito e à literatura, nos chocam, por isso o teórico propõe que pensemos na hipótese do gênio maligno cartesiano: “mesmo que todo poderoso o falsificador permanece sendo uma verdade sólida que nos dispensa de pensar para além dela” (2005, p. 139). Esse é o caso de O falso mentiroso.
            Nas primeiras páginas é possível ainda pensar que se trata de uma autobiografia, porque Samuel Carneiro de Souza Aguiar demora a se apresentar como dono das memórias. Samuel não é, portanto, Silviano. Mas até que ponto isso pode ser verdade não se sabe. Pois muitos fatos narrados pertencem ao real, como alguns dados biográficos do escritor carioca.
Paul de Man, em seu artigo Autobiografia como dês-figuração, publicado originalmente em Moderm Language Notes, 94 (1979), e posteriormente na revista Sopro, em maio de 2012, diz que todo texto que se pretende autobiográfico desfigura-se e: “a autobiografia vela uma des-figuração da mente da qual é ela mesma a causa” (DE MAN, 2012).  Em o falso mentiroso o jogo é entre autobiografia e ficção. Apesar de Santiago colocar alguns dados autobiográficos o faz nas margens ficcionais, ocorre o que podemos chamar de autoficção.  Para Diana Klinger, em Escritas de si, escrita do outro, a autoficção “surge em sintoma com o narcisismo da sociedade midiática contemporânea” e ao mesmo tempo “produz uma reflexão crítica sobre ele” (2007, p. 44). Para ela, na autoficção o que interessa é o “mito do escritor” e não a relação do texto com a vida do escritor (2007, p. 50). Em suas palavras: “A autoficção participa da criação do mito do escritor, uma figura que se situa no interstício entre a ‘mentira’ e a ‘confissão’” (2007, p. 51). Santiago coloca exatamente essa questão em sua obra, o que interessa não é a vida do escritor, mas o mito deste que se constrói na leitura de um relato em primeira pessoa. A pesquisadora, para ilustrar sua teoria utiliza-se da obra de Silviano Santiago. Diz ela sobre O falso Mentiroso:

Este romance me interessa especialmente porque considero que o texto autoficcional implica uma dramatização de que supõe, da mesma maneira que ocorre no palco teatral, um sujeito duplo, ao mesmo tempo real e fictício, pessoa (ator) e personagem (KLINGER, 2007, P. 54).

O personagem Samuel não sabe quem o gerou. Saber sua origem é o maior dilema de sua existência e o motivo de seus torcicolos. Apresenta várias possibilidades para seu nascimento, a primeira é que pode ser filho de pais desconhecidos e, adotado por Donana e Dr. Eucanaã – os quais ele chama de pais falsos. Nessa mesma versão pode ter sido doado ou sequestrado da maternidade e criado pelos pais falsos citados. Em outra versão ele aponta como sendo filho do próprio Dr. Eucanaã, o falso, com uma amante, pois sua mãe, a falsa, Donana, era uma mulher estéril e desejava ter muito um filho homem. Nesta possibilidade de origem surgem várias possibilidades de mães, como a Senhora X e a secretária do pai chamada Tereza, enfim. A terceira versão é um tanto absurda, pois ele nasce de uma almofada que Donana colocava na barriga para simular uma gravidez. É uma possibilidade duvidosa ser gerado de uma falsidade, mas Samuel não a descarta porque apesar de ser mentira pode ser verdade pelo fato de que milagres acontecem. Na quarta versão, ele pode ter ficado órfão e foi adotado pelos pais falsos. Dentre as versões de sua origem, a quinta é reconhecida como a mais inverossímil e por isso ele nunca quis explorá-la, a data desse nascimento coincide com a do próprio Silviano Santiago, 29 de setembro de 1936, com pais residentes em Formigas, como os do próprio autor. Perguntamo-nos: a mais inverossímil não seria então a mais verdadeira? Quiçá.
Impossível saber, a menos que se rompa o preservativo e um “espermatozoide” possa romper a barreira de real e ficção e mostrar a verdade.
Constituído de vários eus, coloca em dúvida sua própria existência: “será que existo?” (2004, p. 59). O personagem perde-se no labirinto que é ele mesmo, e carrega o leitor junto nessa floresta de espelhos: “tudo perfazendo um único corpo. Este corpo aqui de carne e osso, que me escreve pelo uso e abuso da mão direita. Esqueci que era canhoto” (2004, p.180). Jogo de espelho borgiano. O escritor que se olha para o espelho da folha em branco, de canhoto, torna-se destro. Quem afinal é o escritor destas falsas memórias? Silviano canhoto a um passo do espelho ou Samuel destro? É Silviano que escreve Samuel ou Samuel que escreve Silviano?
Como o um espelho. Não se pode atingir, tocar a imagem produzida, o mundo é o livro e este é o mundo, um refletido no outro.  Escrever é uma tentativa de conhecer a si mesmo, porém, não de reconhecer-se, pois por ser um ato de representação, o que se tem do processo mimético é um outro como constituinte e que está disperso no campo da linguagem, dependente de outro para sua realização e interpretação. No texto, “Epílogo em 1ª pessoa: eu e as galinhas-d’Angola”, publicado em O cosmopolitismo do pobre, Silviano Santiago faz uma abordagem sobre seu eu nos seus escritos literários em primeira pessoa:

Sem identidade, sem rosto e sem nome próprio estável, qual é a minha primeira pessoa que, para se exprimir neste preciso momento, devo invocar e convocar? Seria a primeira pessoa que, como querem Jacques Lacan e os psicanalistas, é a primeira na ordem cronológica, ou seja, a primeira pessoa que reconhece a si no ‘estágio do espelho’? Aquela que me colocou de cara no jogo da vida pela imagem do duplo de mim mesmo, isto é, pelo reconhecimento meu de mim no outro especular. Isso a que chamo de ‘minha experiência de vida’ e isso a que chamo de ‘meus escritos’, não seriam uma sucessiva e sempre interrompida e sempre cadeia de escolhas narcísicas de objeto, de manufatura de manequins que, pela leitura e pela identificação a posteriori e, agora, neste meu corpo, são eu não sendo eu? (SANTIAGO, 2008, p. 245). (grifos do autor)

O eu narrativo das memórias segue dizendo: “dizem que sou mentiroso. Não sou. Não vale dizer que sou mentiroso. Provem que sou! Evidências. Não uma série de hipóteses mal-ajambradas pelo olhar da observação cartesiana e maldizente” (2004, p.180). Mentir é o que mais faz Samuel, ou será que diz a verdade? A cada versão que apresenta de sua origem faz o interlocutor da obra acreditar. Envolto por tantas mentiras o leitor fica confuso e perdido no labirinto que se constrói.
Blanchot ao meditar sobre o “Aleph”, de Borges, nos diz que: “A literatura não é uma simples trapaça, é o perigoso poder de ir em direção àquilo que é, pela infinita multiplicidade do imaginário” (2005, p. 140). Sem do assim, a teatralização, o fingimento de Samuel está no campo da verdade, pois é fruto da imaginação, da literatura.
 A obra de Santiago está repleta de encenações. Dr. Eucanaã, por exemplo, finge ser um advogado, porém, é um grande empresário de camisinhas de Vênus, fabrica preservativo e esconde tal fato de sua família e da sociedade, devido às concepções contrárias pregadas pela igreja. É um ator de sua própria vida. É ficção dentro de uma ficção, faz da vida um teatro. Uma figura de grande importância para a filosofia de Dr. Eucanaã é Gabriel Falópio. O qual foi inventor de uma espécie de camisinha peniana, embebida de ervas curativas, precursora da camisinha de Venus, chamada de De Morbo Gallico. Segundo Samuel, este inventor: “Trazia o destino no próprio nome. Estampado nas quatro primeiras letras do sobrenome, f-a-l-o, que poderiam ter sido desmentidas pelas três letras finais, p-i-o, e nunca o foram. Vejam que contra-senso: um falopio!” (2004, p.79-80). Falo e pio, termos voltados para o órgão sexual masculino. Membro gerador de vida e propício à contaminação, porém pode ser impedido de criar e de se contaminar envolto pelo preservativo. No entanto, para criar é necessário contaminar-se com o mundo não existe origem sem entrar em contato com o real. Porém, na arte essa contaminação é mascarada. Protegida pelas palavras.
O preservativo, no livro, não só representa a proteção das doenças venéreas acentuadas nos anos vinte e trinta, como a gonorreia e a sífilis, mas representa uma metáfora para o que separa o real do irreal. Barthes, em O neutro, teoriza sobre o grau zero da escrita. Para Blanchot, o grau zero da escrita de Barthes seria o momento em que a literatura poderia ser agarrada: “Mas, nesse ponto, ela seria somente uma escrita branca, ausente e neutra; seria a própria experiência da ‘neutralidade’ que jamais ouvimos”. Para Barthes é esse neutro, “esse composto, esse oblíquo pelo qual foge o nosso sujeito, o branco-e-preto em que vem se perder toda identidade, a começar pela do corpo que escreve” (2004, p.57). O que está entre o real e o ficcional, a recusa de si, sair pela tangente, seria o neutro. Enfim, as fronteiras entre autor, obra e leitor. Diz ele: “O problema do neutro não é de fato não ter nome, mas ter vários nomes” (BARTHES, 2003, p. 247). 
O desejo do artista é decifrar esse neutro, recusar a camisinha, porque é impossível fazer arte sem imitar o real, e é impossível também este ser pensado sem que seja ficcionalizado, Sem contaminação não sobra legado, resta apenas uma família a menos. Samuel não é a favor da camisinha, despreza-a. Porém, discute a ideia de que a criação nunca será uma verdade, e sim, uma representação, uma cópia, apenas uma tentativa de ser.
O livro sempre será ficcional mesmo que almeje representar o real. Para Blanchot, a diferença entre real e irreal é que: “há menos realidade na realidade, pois ela é apenas a irrealidade negada, afastada pelo enérgico trabalho da negação, e pela negação que é também o trabalho” (2005, p. 040). Por mais que se deseje contaminar para criar, a literatura não rompe a pelica que a separa do real, e será sempre uma realidade negada. E sendo assim, mais real que o próprio real, mais verdadeira: uma falsa mentirosa.
 O livro de Santiago é envolto pelo preservativo. O texto é só texto, não é pele, não entra em contato, não sente. Contudo, essa impossibilidade de contato faz com que se delire, se tenha prazer. Samuel possui um colega na escola, chamado Betinho, que diz para ele: “A camisinha é a foda. (...) A falta de contato da pele com a própria pele – a interposição entre elas da borracha vulcanizada – leva-me ao delírio” (2004, p. 117- 118). E Samuel concorda com a visão do companheiro, diz ele: “Betinho estava certo, era outra pessoa que o arrastava para o gozo e o prazer” (2004, p. 118). Metáfora fascinante para a literatura, pois o real ao tornar-se texto literário torna-se outro, não pode ser o mesmo. Voltando-nos novamente a Blanchot:

Se o mundo pudesse ser exatamente traduzido e duplicado num livro, perderia todo o começo e todo fim, tornar-se-ia o volume esférico, finito e sem limites, que todos os homens escreveram e no qual são escritos: não seria mais o mundo, seria, o mundo pervertido na soma infinita dos possíveis. (Essa perversão é talvez o prodigioso, o abominável Aleph) (BLANCHOT, 2005, p. 140).

Portanto, sempre haverá uma barreira, um abismo entre a vida e obra, entre mundo real e mundo fictício.  A literatura é sempre será uma transa com preservativo, onde infinitas possibilidades de realizações são impedidas de tornarem-se concretas, que permanecem no campo imaginário do de vir a ser.
Por baixo dos panos Dr. Eucanaã atuava, o que fazia, como diz seu filho falso era: “encobrir-se. Deixar encobrir-se. Passar por outro. Passar por ninguém” (2004, p. 102). Esse pai faz o que o próprio autor faz no livro. Seria Santiago o pai de Samuel? Grande possibilidade metafísica. A figura paterna é central na obra, um herói, porém a partir da invenção da penicilina ele passa a ser um anti-herói. Com essa descoberta cientifica a camisinha foi rejeitada e cai em desuso. O pai é então fica pobre, e o herói de “carne e osso” de Samuel passa a ser o cientista inventor da penicilina: “Um homem. Vestido de homem. Pensando como homem. Fazia ciência. Salvava a humanidade. Sir Alexander Fleming” (2004, p. 125). Seu novo super-herói trazia a cura para a contaminação, excluía o uso do preservativo. Embora, no fundo Samuel sabe que seu pai falso foi um visionário, porque anos mais tarde, o uso da camisinha vem à tona, com a contaminação em massa pela AIDS. E: “Falópio, o desgraçado! Seu nome permaneceria ligado às trompas” (SANTIAGO, 2004, p. 125).
Samuel espelhado nos modelos familiar também atua em sua própria vida, que por ironia do destino também é encenada pela mão canhota de Silviano Santiago. No palco da folha, diz ao pai que cursa Arquitetura para agradá-lo, à mãe diz que cursa Direito, mas na verdade, faz Belas artes. Faz da vida um palco de teatro e na faculdade aprende a desenhar o que está em torno, em volta, das figuras. Aprende a arte da xilogravura e passa a imitar os desenhos de Osvaldo Goeldi.  Samuel é a favor da cópia. Aprendeu a ser falso com o pai e a ser imitador com a mãe.
Donanda é oposto de Eucanaã, vivia na igreja e mimando seu filho adorado. Sem querer, ensina Samuel a ser artista, ensina-lhe a arte de camuflar-se, de maquiar-se, enfim, de fingir ser.  De usar preservativos. Nietsche, em o nascimento da tragédia diz que em face dos estados artísticos da natureza “todo artista é um ‘imitador’, e isso quer como artista onírico apolíneo, quer como artista extático, dionisíaco” (NIETZSCHE, 2007, p.29). Samuel não percebe a transformação para imitador:

Quando me dei pela troca, já tinha virado cego, sustentado pelo bastão da pícara-mãe. Ela me conduzia pelas ruas e avenidas da imaginária vida cotidiana. Passei a ser como ela. Totalmente contra a coisa real. A favor de algo extra que você acrescenta à coisa real para que ela, sem se tornar irreal, seja mais bonita, frajola e fofa do que já é” (2004, p.141).


Na tentativa de parafrasear Baudelaire, no texto “Elogio da Maquilagem”, incluso em O pintor da vida moderna, dizemos que tudo o que é natural tende a ser monstruoso, e tudo que é artificial está ligado ao sublime. Para o poeta francês tudo que se encontra nas ações e desejos do puro homem natural é o horror. E tudo o que é belo, nobre, é o resultado da razão e do cálculo, do que não provem da natureza (1996). Como exemplo dessa artificialidade, aponta as práticas femininas, dando ênfase à maquiagem. É como se a mulher, com isso, esforçasse-se para parecer mágica e sobrenatural: “Pouco importa se que a astúcia e o artifício sejam conhecidos por todos, se o sucesso está sempre assegurado e o efeito é sempre irresistível” (BAUDELAIRE, 1996, p. 64). Donana foi a primeira professora:

Desde criança espreitava Donanda diante do espelho da penteadeira. Do lado de fora da suíte paterna. Minha mãe primeira e legítima professora.
Ensinou-me a gostar mais do panqueique do que do rosto limpo.
Mais da cor transparente. Avivada artificialmente pelo ruge e pelo batom.
Mais da transparência do que da cor acabrunhada e baça, oferecida de mão beijada pela natureza.
Mais do uso de esponjas de passar pó-de-arroz e de pincéis que acentuam com rímel a curvatura dos cílios, do que de água e sabão.
Mais de me vestir, do que de me desnudar. Mais de calçar meias e sapatos, do que tirá-los.
Mais da representação do que da realidade. (p.140-141)

Para o autor de Folhes do mal, as mulheres possuem uma centelha desse jogo sagrado, e os verdadeiros artistas são aqueles que sabem, como as mulheres, dourarem-se. Vale a citação longa:

Quem não vê que o uso do pó-de-arroz, tão totalmente anatematizado pelos filósofos cândidos, tem por objetivo e por resultado fazer desaparecer da tez todas as manchas que a natureza nela injuriosamente semeou e criar uma unidade abstrata na textura e na cor da pele, unidade que, como a produzida pela malha, aproxima imediatamente o ser humano da estátua, isto é, de um ser divino e superior? Quanto ao preto artificial que circunda o olho e ao vermelho que marca a parte superior da face, embora o uso provenha do mesmo princípio, da necessidade de suplantar a natureza, o resultado deve satisfazer a uma necessidade completamente oposta. O vermelho e o preto representam a vida, uma vida sobrenatural e excessiva; essa moldura negra torna o olhar mais profundo e singular, dá aos olhos uma aparência mais decidida de janela aberta para o infinito; o vermelho, que inflama as maças do rosto, aumenta ainda a claridade da pupila e acrescenta a um belo rosto feminino a paixão misteriosa da sacerdotisa (BAUDELAIRE, 1996, p.64)

Em A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica, Clément Rosst diz que: “Por definição, todo empreendimento artístico separa-se da natureza e remete-se ao artifício para criar, isto é, para acrescentar um novo objeto à soma das experiências presentes” (1989, p.87). Perdido de amor edipiano, Samuel copia Donana, faz copias de cópias, sendo no fim, apenas uma cópia. Encontramos nesta ideia de cópia um forte diálogo sobre a tradição para a criação de uma arte, semelhante à antropofagia de Oswald, ou à “vampiragem” que Maria Lucia de Barros, em sua tese Atrás dos olhos Pardos, aponta para a obra de Ana Cristina Cesar[1]. Diz Samuel: “Não gosto de criar nada a partir do zero”. (p.138). Dentro de sua defesa faz uma reflexão do papel do autor na contemporaneidade, de que é preciso sempre recorrer ao que já foi dito, ao que já foi criado para criar, e recriar o novo a partir do velho:

Século 20, século da invenção. Uma pinoia! Ainda irão reconhecer que, por baixo da crosta aurividente da inventividade a todo custo, existe o miolo, assim como por baixo da casca, a polpa do fruto e, ao meio dela, a semente. Essa semente metafórica é o fundo comum que une os artistas brasileiros da nossa época aos de todos os tempos. A semente é única assim como, dizem os teólogos, só é único o Deus verdadeiro. A semente da produção artística é uma planície por onde planam os olhos à cata dos pequenos relevos que sobressaem, se repetem, se repetem, se repetem (SANTIAGO, 2004, p. 219).

Por mais que provenha do já inventado uma cópia não deixa de ser algo novo. Samuel é uma cópia, não é original desde seu nascimento, é cópia de cópia de cópia, como todas as artes, e por esse motivo é original. Diz:

Não sei quando a troca de personalidade se deu. A personalidade do mímico autodidata pela a do embelezador da realidade. Só eu sei o que é ter personalidade zero. Só eu sei o que é ter cegueira falsa, a que constrói a verdade de minhas personalidades postiças. Foram milhares e ainda são. (...) Não podia não ser a favor da cópia. Era a salvação da lavoura” (2004, p.141).

Muitos de seus quadros foram atribuídos ao próprio Goeldi e foram parar nas grandes galerias de artes plásticas como parte de um período obscuro da fase de Goeldi por não conterem assinatura, como se o pintor estivesse em conflito com sua própria personalidade.  E na verdade, o real pintor sempre esteve nesse conflito. Com essa prática Samuel ganha muito dinheiro e passa a sustentar seus pais falsos e sua família, Esmeralda e seus dois filhos.
Há três personagens que possuem um papel fundamental para a formação do pintor e escritor de memórias: Zé Macaco, seu amigo de escola, Esmeralda, a namorada muda e futura esposa, e Mário o mentor. Zé macaco, era com quem o narrador praticava música com puns no banheiro da escola, o amigo era perfeito, era original, tinha melodia, a condição financeira é que o impedia de brilhar. Samuel aprendeu muitas coisas com seu amigo que morreu precocemente, uma delas foi que: “Nenhum homem é perfeito. Somos todos cópias do original que se desfez” (2004, p.35). No capítulo reservado para falar de Zé Macaco, está a parte do livro de cunho mais erótico, há troca de segredos entre os dois. Zé Macaco revela o caso que tem com o barbeiro, diz ele a Samuel: “Afino o instrumento pelo prazer e o afio pelos trocados” (2004, p.37), é um dos personagens mais picarescos da narrativa.
A namorada Esmeralda é também uma figura importante. Podemos encontrar nela uma alusão a Mario de Andrade, quando Macunaíma diz: “Não vim ao mundo para ser pedra”. (1984, p. 131). A namorada representa a arte, a lapidação que ocorre no que é considerado artístico. Para Samuel a história de Esmeralda é a história de uma pedra em estado bruto e que aos poucos foi se lapidando pelos problemas da vida enfrentados. Esmeralda é sua pedra no meio do caminho. Pergunta: “Será que os pais ao lhe darem o nome na pia batismal, souberam que a filha seria pedra para o resto da vida?” (2004, p.199). Põe assim, em dúvida a existência de sua mulher e ao mesmo tempo coloca a mulher como uma arte em estado de transformação.
Samuel também teve um mentor, que o incentivava em sua arte, este sabia de suas mentiras, mas a relação dos dois era fria, sem muito contato. O mentor parece ser mais um fluxo de consciência, um jogo borgiano com seu outro diante do espelho.
Traumatizado por não saber de sua verdadeira origem, Samuel tem ataques de torcicolo, dores no pescoço e faz terapia. Decide escrever suas memórias aos sessenta e três anos com base em anotações de seu diário íntimo.  Em sua escrita não há uma sequência cronológica e muito menos delimitações de espaço dentro do livro, levando o leitor pra lá e pra cá, como Mário de Andrade em Macunaíma. Seria então, o mentor Mário, Mário de Andrade?  Eis a contaminação sem uso de preservativo.
Traumatizado por não saber de sua verdadeira origem, Samuel tem ataques de torcicolo, dores no pescoço e faz terapia. Decide escrever suas memórias aos sessenta e três anos com base em anotações de seu diário íntimo.
Nesse fato encontramos um dos pontos cruciais para pensarmos o que separa o real e a ficção. Em “O diário íntimo e a narrativa”, inserido na obra O livro por vir, Blanchot (2005) diz que: “Escrevemos para salvar os dias, mas confiamos sua salvação à escrita, que altera o dia” (BLANCHOT, 2005, p. 275). Ao tornar-se linguagem o que era a vida real torna-se uma vida imaginária. O visível torna-se invisível ao ser dado como literatura. Um preservativo. Samuel narra em primeira pessoa do singular querendo narrar no plural:

Não sei por que nestas memórias me expresso pela primeira pessoa do singular. E não pela primeira pessoa do plural. Deve haver um eu dominante na minha personalidade. Quando escrevo. Ele mastiga massacra os embriões mais fracos, que vivem em comum como nós dentro de mim (2004, p.136).

É muitos, é milhares de “espermatozoide” dentro de um preservativo. Há várias vozes na narrativa, às vezes, é alguém que fala sobre Samuel, aparentemente parece ser Samuel falando de si próprio, mas pode ser também Silviano como autor intrometendo-se na obra. O narrador mesmo explica esse jogo borgiano:

Às vezes fala o outro de mim. Às vezes o terceiro de mim e ainda o quarto- aquele cuja biografia escamoteei, lembram-se? E até o quinto – o inverossímil formiguense, antes referido. A lei nunca fez o cidadão. Sempre refutei as provas levantadas contra a minha sinceridade. Apresentadas e rebatidas no tribunal da consciência (ele existe! E ela também) (2004. p.180-181).

            Como trabalha com memórias os clássicos brasileiros deste gênero não poderiam ficar fora de sua obra. Com personagens picarescos que se assemelham a Leonardo, de Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antonio de Almeida. O livro também é cheio de recortes e feito de fragmentos, à la Oswald de Andrade, dialogando com o lado cinematográfico das Memórias Sentimentais de João Miramar. E como não poderia faltar com estilo extremamente machadiano: “meu camaradinha e irmãozinho de fé...” (2004, p.192). Conversa com o leitor: “Não adianta me maltratar. Maltrate o livro. Espere pelo pior. Daqui a dois capítulos te reencontrarei com duas pedras na mão e com língua afiada” (2004, p. 151). Prossegue com a conversa mais duvidosa da literatura contemporânea:

O escrito que você lê, caro leitor, é a mensagem esperançosa que jogo ao mar envolto por esta camisinha inflada, a que chamo livro. Ela protege as folhas e as palavras impressas das águas do tempo que, sem direção predeterminada, bóiam a caminho de mãos caridosas. As tuas (2004, p.215).

Samuel faz o inverso de Brás Cubas, não inicia pelo fim de sua vida suas memórias, pois se quer tem origem. Por isso inicia pelo fim do próprio livro de Machado de Assis, pois Samuel não provém de nenhum legado, é sem origem, sem família, resultado das últimas palavras de Brás: “- não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”. (1992, p.176). Alguns capítulos antes da revelação de sua verdadeira origem desculpa-se com o leitor:

Peço-lhe desculpa, caro leitor, por tê-lo feito sucumbir ao feitiço da linguagem. Por tê-lo feito escravo do próprio e do figurado. Por fazê-lo acreditar na língua portuguesa (...). Neste livro. Paisagens linguísticas comoventes foram montadas contra o pano de fundo de requintados cenários de musical da Broadway. (...) A linguagem figurada se descortina pela janela do trem que viajamos. (...) Que as paisagens linguísticas encham os olhos e os ouvidos de entusiasmo. E o paladar de delicioso e refrescante sabor de hortelã-pimenta. Que nos façam esquecer cenários e salões (2004, p.176).

E na última página do livro a verdade é revelada. Mas será possível ainda acreditarmos nela? Toda a história narrada não passa de uma mentira, e por ser assim, torna-se uma das maiores verdades. Pois é uma verdade poética. Diz Samuel, quer dizer, Silviano, ou melhor, ambos talvez. Tudo nos é revelado por uma desconstrução catártica do real, com uso de preservativo:

Desde meu duplo (triplo, quadrupolo e até quíntuplo) nascimento, soube que tinha vindo ao mundo com um propósito- o de botar no mundo uma família a menos.
Chega de mentiras.
Não serei um pai falso, como o doutor Eucanaã.
Não me casei com esmeralda. Não tive filhos com ela.
Se me colocarem contra a parede deste relato, confessarei que tive dois filhos virtuais.
Não poderia tê-los tido. Não os tive. Inventei-os
Inventar não é bem o verbo. Gerei-os em outro útero. Com a mão esquerda (sou canhoto) e a ajuda da bolinha metálica da caneta bic. Com tinta azul lavável. Inseminação artificial.
O resto, pa-ra-rá, pa-ra-rá, pa-ra-rá...
Fim.
Lego ao mundo as minhas telas.
Á história, uma família a menos (2004, p.222).

Não há pele a pele, foi gerado artificialmente, não provem do natural, é resultado de uma mão canhota e da “caneta bic”. Haverá sempre o neutro na obra literária, a essência do imaginário, o que impede Godot de chegar, K. de alcançar o castelo, Aquiles de ganhar da tartaruga, enfim, a outra pele: o preservativo.

REFERÊNCIAS
ASSIS, M. de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1992.
ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 20ed. Belo Horizonte: INL, 1984.
BAUDELAIRE, C. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1996.
BARTHES, R. A morte do autor. In ______. O rumor da língua. Trad. Mário Laranjeira. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
______. O neutro. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BLANCHOT, M. O Livro por vir. Trad. Leila Perrone–Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
DE MAN, Paul. Autobiografia como Des-figuração. Tradução de Joca Wolff. Sopro, Florianópolis, n. 71, mai. 2012.
KLINGER, D. Escritas de si, escrita do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007.
NIETZSCHE, f. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: companhia das Letras, 2007.
SANTIAGO, S. O cosmopolitismo do pobre: Crítica literária e crítica cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.
______. O falso mentiroso: memórias. Rio de Janeiro: Rocco, 2004.
ROSSOT, C. A antinatureza: elementos para uma filosofia trágica. Trad. Getúlio Puell. Rio de Janeiro: Espaço e tempo, 1989.
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[1] O termo “vampiragem” é usado por Maria Lucia de Barros, em sua tese Atrás dos olhos Pardos, para caracterizar a escrita da poeta carioca Ana Cristina Cesar. A obra da poeta é de extremo diálogo com a tradição, “suga” de outros escritores o material para seus poemas.